terça-feira, 25 de março de 2008

Carta

Srª Dona Morte,

Tomo esta liberdade em lhe escrever para lhe fazer um pedido. Não se trata de um pedido qualquer, pois não ousaria ocupar-lhe o seu precioso tempo, tão necessário no desempenho da sua infindável missão, com um assunto de somenos importância, arriscando-me mesmo, quem sabe, a um exemplar castigo supremo.

Não, não se trata de lhe pedir que adie esse encontro que tem marcado comigo na sua agenda secreta, ou talvez não tenha qualquer encontro marcado e decida, a cada dia ou a cada momento que passa, com quem se encontrar a seguir. Em qualquer dos casos, sei-o bem, seria de todo inútil fazer-lhe tal pedido e, por isso mesmo, não ousaria incomoda-la apenas por esse motivo.

Não, também não se trata de lhe pedir informações sobre a data prevista para esse nosso encontro, tentando dessa forma saber acerca da sua proximidade ou distância, pois viver com essa informação não seria viver.

É, portanto, outra a natureza do pedido que venho fazer-lhe. O que lhe venho pedir é um pouco mais de equidade entre esse seu papel de encontrar e este outro, o meu, de encontrado. Não lhe peço que altere a sua agenda ou, se for esse o caso, que altere os critérios com que a cada momento decide com quem se vai encontrar. Peço-lhe sim a recíproca capacidade de também eu poder marcar o fatídico e final encontro consigo, podendo, dessa forma, antecipa-lo se esse for o meu desejo.

A Srª Dona Morte argumentará, certamente, que essa é uma capacidade de que já disponho, pois não faltam por ai formas e mecanismos que permitam a um comum mortal fazer valer a sua vontade em se encontrar consigo. De facto não faltam pontes, edifícios, escarpas, e outros locais com altura suficiente, e dos quais se possa mergulhar na sua direcção. Também não faltam os comboios, os carros e os camiões, e outras ferozes máquinas capazes de fazer cumprir esse objectivo. Não faltam, ainda, as farmácias com os farmacêuticos de serviço sempre prontos para, nas suas avidezes de comerciantes, venderem, sem necessidade da supostamente necessária receita médica, as substâncias apropriadas para atingir o fim em causa.

O problema, Srª Dona Morte, é que os homens e mulheres, cansados de verem completamente ignorados e recusados todos os pedidos que repetidamente lhe fazem para adiar encontros, ocuparam-se no desenvolvimento de uma ciência a que chamaram medicina, e com a qual, através de complexos malabarismos, lá vão conseguindo importantes adiamentos. Ora, acontece que esta mesma ciência é, por vezes, usada como instrumento de verdadeira tortura, prendendo à vida pessoas que, privadas do necessário uso das suas capacidades motoras, se vêm impossibilitadas de recorrer aos mecanismos acima referidos.

A Srª Dona Morte poderá sugerir que peça aos ilustres representantes políticos deste país, para que façam aprovar a necessária legislação no sentido de tornar legítimo o recurso à eutanásia, permitindo, desse modo, a um mortal impossibilitado de se encontrar consigo pelos seus próprios meios, a possibilidade de o fazer recorrendo a uma caridosa ajuda externa.

Saiba, no entanto, que esta não seria tarefa fácil. Seria, antes de mais, necessário convencer os referidos políticos a incluírem nas suas agendas este assunto, o que, por si só, seria uma grande conquista, pois não pode ser dado como certo o desejado retorno em índices de popularidade ou no número de votos conquistados em época de eleições. Por outro lado, seria necessário ultrapassar a feroz oposição das instituições religiosas, as quais, com o argumento da salvação, não hesitariam em fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para impedir a aprovação de tal legislação, como se fossem elas e não eu as legítimas proprietárias deste corpo ateu.

Pelas razões apresentadas peço-lhe, Srª Dona Morte, se alguma vez a chamar, por favor venha.


Atenciosamente,

O Devaneante do Cantinho

sábado, 15 de março de 2008

Caprichos do Acaso - parte III

(continuação de Caprichos do Acaso - parte I e parte II)

Durante toda a semana não se tinha falado de outra coisa. Tinham sido incontáveis os debates promovidos pelos vários órgãos de comunicação social, tentando explorar ao máximo o filão mediático resultante da terceira repetição da mesma sequência no sorteio do loto.

Eram também incontáveis as diferentes teorias para explicar o sucedido. Desde os que afirmavam a pés juntos que a única explicação era a da existência de uma fraude, até aos que acreditavam tratar-se de um sinal divino da proximidade do fim do mundo. Havia também, mas em menor número, os que acreditavam tratar-se de uma mera coincidência.

No entanto, as longas e minuciosas investigações, feitas pelos peritos e pelas autoridades, nada conseguiram encontrar que sustentasse a tese de fraude. Também as autoridades do país vizinho, chamadas a investigar o sorteio feito nas instalações da entidade promotora do loto local, nada conseguiram encontrar que pudesse indiciar algo de anormal.

Ao longo da semana foi anormalmente elevada a afluência de fiéis aos locais de culto de várias religiões, para onde convergiram em massa todos aqueles que, receando a eminência do fim do mundo, se tentavam redimir dos pecados cometidos.

Entre os que acreditavam tratar-se de uma coincidência, e nos quais se incluía o perito promovido a comentador televisivo, circulavam os argumentos já anteriormente utilizados: que a probabilidade era muito baixa, mas não era nula… que qualquer outra combinação de outros três sorteios seria igualmente improvável… que o mundo não era mais do que uma grande sucessão de acontecimentos improváveis…

Na mais completa ausência de evidências da existência de fraude, a entidade promotora do jogo decidiu que o sorteio seguinte se faria nas condições normais, ou seja, nas suas instalações, com a sua tômbola, com as suas bolas, e à hora habitual. Naturalmente, o sorteio seria supervisionado por um grande batalhão de observadores, atentos a qualquer sinal que pudesse indiciar alguma forma de vício.

E assim, à hora marcada e com um número sem precedentes de espectadores, se inicia o novo sorteio. A imagem começa por mostrar demoradamente as bolas cuidadosamente ordenadas e com os números bem visíveis. Depois o ângulo abre para mostrar a tômbola ainda parada e que, breves segundos depois, começa a girar. As bolas caem dentro da tômbola onde se vão entrechocando até que uma delas inicia o seu movimento em direcção à primeira posição da calha… é o um…

O mundo ficou ainda mais suspenso… parecia inevitável a repetição daquela mesma sequência das três semanas anteriores! Os que defendiam a tese de fraude apressaram-se a chamar de incompetentes os investigadores, pois era inadmissível que não tivessem ainda desvendado o caso… Os que acreditavam na eminência do fim do mundo apressaram-se a retomar as suas preces, na convicção de estarem a presenciar mais um sinal divino…

A segunda bola inicia o trajecto da tômbola para a segunda posição na calha, onde se imobiliza ao lado da primeira, é o quarenta e um…

Nos bastidores do sorteio os responsáveis da entidade promotora do jogo, juntamente com o batalhão de observadores, respiraram de alívio e de um momento para o outro o ambiente, que se havia tornado tenso com a saída da primeira bola, desanuviou-se. Pelo mundo fora só alguns fiéis mais fervorosos pareceram ficar desiludidos por não se repetir aquele sinal considerado divino, como se ansiassem que o mundo estivesse mesmo à beira do fim.

Entretanto uma nova bola toma o seu lugar na calha, é o quarenta e dois… pouco depois junta-se-lhe a bola treze… depois a cinco… depois a seis… e, finalmente, a bola suplementar, a vinte e três.

Em sua casa, o perito comentador televisivo olha intrigado para a sequência de números, entretanto transcritos para um pedaço de papel, na mesma ordem em que tinham sido sorteados. De súbito levanta-se do sofá, dirige-se ao quarto do filho adolescente e pega na calculadora abandonada em cima da secretária. Liga a calculadora, carrega em duas teclas e fica a olhar alternadamente para o mostrador da calculadora e para o pedaço de papel com a sequência sorteada…

Sorriu e falou em voz alta:

“Mais uma chave improvável… tão improvável quanto qualquer outra, mas…”

Olhou de novo para a sequência…

Pitágoras que diria Pitágoras se fosse vivo e tivesse presenciado o sorteio de hoje?...”

FIM

sábado, 8 de março de 2008

Caprichos do Acaso - parte II

(continuação de Caprichos do Acaso - parte I)

Foi notícia de abertura do noticiário. Não por falta das habituais notícias sobre guerras, atentados, desastres, escândalos, desfalques, ou outras igualmente capazes de prender a atenção dos espectadores. Não pela falta de fenómenos novos ou bizarros, mas pelo bizarro fenómeno da repetição de um acontecimento já anteriormente acontecido.

O mesmo jornalista que na semana anterior tinha transmitido com alguma indiferença a notícia do primeiro acontecimento, usa agora o mesmo estilo com que costuma informar acerca das mais importantes notícias:

“Pela segunda semana consecutiva o sorteio do loto ditou exactamente a mesma chave. Os números de um a sete voltaram a sair, rigorosamente por esta ordem, repetindo o sorteio de há uma semana. Esta insólita repetição vem levantar fortes suspeitas de fraude e, por isso mesmo, foi já mandado instaurar um rigoroso inquérito para apurar eventuais irregularidades.”

Lá passaram, de novo, as imagens do sorteio, desta vez abreviadas aos momentos em que as várias bolas rolam da tômbola para a calha onde tomam o seu lugar, perfeitamente ordenadas de um a seis, com a bola sete a tomar posição exclusiva reservada ao número suplementar.

Seguiram-se imagens de um comunicado à imprensa, feito pelo responsável da entidade promotora do jogo, onde se anuncia o levantamento imediato do rigoroso inquérito necessário ao apuramento de eventuais irregularidades.

O jornalista anuncia a presença de um perito, chamado a comentar o sucedido, a quem pergunta:

“É possível, num sorteio que se supõe aleatório, haver semelhante repetição?”

“Bem, essa pergunta é bastante mais complexa do que imagina… É que, ao contrário do que possa parecer, os conceitos ‘possível’ e ‘aleatório’, não são de fácil definição.

O que é, afinal, um acontecimento aleatório?... um acontecimento que é influenciado por alguma forma de caos, contrariando a visão daqueles que acreditam num universo determinístico?... ou um acontecimento que simplesmente não conseguimos prever, dado o elevado número de condicionantes e de factores em jogo?

E onde está a fronteira entre o possível e o impossível?... Richard Feynman, prémio Nobel da Física em 1965, desenvolveu uma teoria em que defende que nada é impossível, e que mesmo o acontecimento mais bizarro tem alguma probabilidade de se verificar.

Portanto, e para evitar ficar aqui indefinidamente a divagar sobre estes assuntos, que a maior parte dos telespectadores acharia profundamente maçadores, vou limitar-me a analisar a situação numa perspectiva meramente probabilística.

E, do ponto de vista probabilístico, o facto de uma chave ter sido sorteada uma vez não implica que ela não se possa repetir uma segunda vez. Em cada sorteio cada chave é tão provável quanto qualquer outra, ou talvez seja mais correcto dizer que é tão improvável quanto qualquer outra. E como cada sorteio é completamente independente dos anteriores, nada impede a existência de repetições.

O número de sequências possíveis em dois sorteios de loto é demasiado grande, bastará dizer que se trata de um número com vinte e quatro algarismos para se ter uma ideia. Estou a referir-me ao número de sequências possíveis e não ao número de chaves, pois a situação que está em análise é a da dupla extracção da bola um até à bola sete, exactamente por esta ordem. Se estivesse a referir-me às chaves, a ordem não seria relevante e portanto a análise seria diferente.

Ora, nesse número de possíveis sequências apenas uma corresponde à sequência que se verificou nos dois últimos sorteios. Consequentemente a respectiva probabilidade era muito pequena…”

O jornalista, ávido por uma revelação bombástica, procura saltar rapidamente para as conclusões: “Ou seja, o mais provável é haver alguma anomalia, ou algum tipo de fraude, para que se tenha verificado esta repetição?”

“Não, não, de modo algum! O que eu disse relativamente à sequência que se verificou é válido para qualquer outra sequência, pois todas elas são igualmente improváveis… na verdade a sequência verificada no conjunto das duas últimas semanas era tão provável, ou improvável, quanto a sequência das duas semanas que lhe precederam.”

O jornalista, muito pouco convencido com as afirmações do perito, ou talvez desiludido por não ter podido revelar a inevitabilidade de uma fraude, dá por terminada a entrevista e avança para outros elementos de reportagem.

Ao longo da semana os apostadores premiados, em muito menor número que o habitual, pois ninguém esperava a repetição dos mesmos números, lá foram reclamando os respectivos prémios. Um dos dois apostadores premiados com o primeiro prémio na semana anterior, e que tinha insistido em repetir a mesma chave tal como vinha fazendo desde a primeira vez que jogara, foi o único totalista premiado.

Os apostadores habituais e os ocasionais lá foram registando as suas apostas para o sorteio seguinte, tal como vinha acontecendo desde a primeira semana em que se tinha iniciado este jogo.

Nas instalações da entidade promotora do jogo, a tômbola foi posta à prova incessantemente, com extracções atrás de extracções, na expectativa de encontrar algum padrão, algum vício, ou algum indício. As chaves assim obtidas foram sendo minuciosamente registadas por uma equipa de auditores, de peritos e de inspectores da polícia. No entanto, a análise estatística dos resultados obtidos revelou uma distribuição uniforme pelos vários números, consistente com o que seria de esperar de um processo que se pretendia aleatório.

Considerando que as investigações em curso não tinham, ainda, tido o tempo necessário para produzir conclusões definitivas, a entidade promotora do jogo decidiu pedir ajuda à entidade congénere do país vizinho, para fazer nas respectivas instalações a extracção seguinte.

E foi assim que, após a extracção normal do jogo local, a tômbola do país vizinho foi de novo preparada para aquele inédito sorteio. Chegado o momento, o processo de extracção é iniciado e as bolas vão saindo, cada uma na sua vez: bola um… bola dois… bola três… bola quatro… bola cinco… bola seis… bola sete.

(Continua)

quarta-feira, 5 de março de 2008

Carrossel

Mais uma volta se completou e uma nova percorreu já os primeiros graus, neste carrossel infindável que um dia terá fim. Um fim talvez próximo, ou talvez distante... Desejavelmente distante, mas só se a roda puder rodar livre e se forem poucas as areias da engrenagem.

Não que os 360 graus da volta completa sejam um acontecimento especialmente notável que mereça comemoração... apenas um marco que permite incrementar a contagem das voltas completas... até porque o fim, quando chegar, indiferente aos graus percorridos dessa volta que será a última, só por infeliz acaso coincidirá com o fim de uma volta e o inicio da seguinte.

Das voltas passadas fica um número e uma memória. Nas voltas futuras encontram-se os sonhos... os que para sempre serão sonhos por concretizar, os que se concretizarão mesmo não tendo sido sonhados e, certamente, também alguns pesadelos...

Vivam as voltas futuras!... Vivam-se as voltas futuras!