Srª Dona Morte,
Tomo esta liberdade em lhe escrever para lhe fazer um pedido. Não se trata de um pedido qualquer, pois não ousaria ocupar-lhe o seu precioso tempo, tão necessário no desempenho da sua infindável missão, com um assunto de somenos importância, arriscando-me mesmo, quem sabe, a um exemplar castigo supremo.
Não, não se trata de lhe pedir que adie esse encontro que tem marcado comigo na sua agenda secreta, ou talvez não tenha qualquer encontro marcado e decida, a cada dia ou a cada momento que passa, com quem se encontrar a seguir. Em qualquer dos casos, sei-o bem, seria de todo inútil fazer-lhe tal pedido e, por isso mesmo, não ousaria incomoda-la apenas por esse motivo.
Não, também não se trata de lhe pedir informações sobre a data prevista para esse nosso encontro, tentando dessa forma saber acerca da sua proximidade ou distância, pois viver com essa informação não seria viver.
É, portanto, outra a natureza do pedido que venho fazer-lhe. O que lhe venho pedir é um pouco mais de equidade entre esse seu papel de encontrar e este outro, o meu, de encontrado. Não lhe peço que altere a sua agenda ou, se for esse o caso, que altere os critérios com que a cada momento decide com quem se vai encontrar. Peço-lhe sim a recíproca capacidade de também eu poder marcar o fatídico e final encontro consigo, podendo, dessa forma, antecipa-lo se esse for o meu desejo.
A Srª Dona Morte argumentará, certamente, que essa é uma capacidade de que já disponho, pois não faltam por ai formas e mecanismos que permitam a um comum mortal fazer valer a sua vontade em se encontrar consigo. De facto não faltam pontes, edifícios, escarpas, e outros locais com altura suficiente, e dos quais se possa mergulhar na sua direcção. Também não faltam os comboios, os carros e os camiões, e outras ferozes máquinas capazes de fazer cumprir esse objectivo. Não faltam, ainda, as farmácias com os farmacêuticos de serviço sempre prontos para, nas suas avidezes de comerciantes, venderem, sem necessidade da supostamente necessária receita médica, as substâncias apropriadas para atingir o fim em causa.
O problema, Srª Dona Morte, é que os homens e mulheres, cansados de verem completamente ignorados e recusados todos os pedidos que repetidamente lhe fazem para adiar encontros, ocuparam-se no desenvolvimento de uma ciência a que chamaram medicina, e com a qual, através de complexos malabarismos, lá vão conseguindo importantes adiamentos. Ora, acontece que esta mesma ciência é, por vezes, usada como instrumento de verdadeira tortura, prendendo à vida pessoas que, privadas do necessário uso das suas capacidades motoras, se vêm impossibilitadas de recorrer aos mecanismos acima referidos.
A Srª Dona Morte poderá sugerir que peça aos ilustres representantes políticos deste país, para que façam aprovar a necessária legislação no sentido de tornar legítimo o recurso à eutanásia, permitindo, desse modo, a um mortal impossibilitado de se encontrar consigo pelos seus próprios meios, a possibilidade de o fazer recorrendo a uma caridosa ajuda externa.
Saiba, no entanto, que esta não seria tarefa fácil. Seria, antes de mais, necessário convencer os referidos políticos a incluírem nas suas agendas este assunto, o que, por si só, seria uma grande conquista, pois não pode ser dado como certo o desejado retorno em índices de popularidade ou no número de votos conquistados em época de eleições. Por outro lado, seria necessário ultrapassar a feroz oposição das instituições religiosas, as quais, com o argumento da salvação, não hesitariam em fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para impedir a aprovação de tal legislação, como se fossem elas e não eu as legítimas proprietárias deste corpo ateu.
Pelas razões apresentadas peço-lhe, Srª Dona Morte, se alguma vez a chamar, por favor venha.
Atenciosamente,
O Devaneante do Cantinho