tag:blogger.com,1999:blog-15002569127057564322024-03-13T06:46:09.833+00:00Cantinho dos devaneios... um lugar confortavelmente desconfortável... um lugar secretamente público, onde todos poderão vir espreitar, mas que não se espera venha a ser muito espreitado... enfim, um cantinho...Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.comBlogger56125tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-57314564024097118502009-03-16T02:09:00.001+00:002009-03-16T02:17:42.598+00:00Fio de memória #1<p class="MsoNormal">As memórias puxadas por este fio foram gravadas há muitos anos, num tempo e numa região em que se usavam termos que foram caindo em desuso. Felizmente outros fios se puderam puxar para trazer as memórias que permitiram escrever o pequeno glossário que poderão encontrar no final do texto.</p> <p class="MsoNormal">As memórias que o fio puxou já não posso garantir que se tenham passado todas no mesmo dia, sei apenas que foram puxadas por um burrinho que há muito partiu para o céu dos burros. Sim, porque se houver céu para os homens não se entende como poderia não o haver também para estes pacíficos animais...</p> <p class="MsoNormal" style="text-align: center;" align="center">***</p> <p class="MsoNormal">A camioneta deixou-nos no sítio do costume, na zona mais central da aldeia.</p> <p class="MsoNormal">Todos os dias da semana, com a excepção do domingo, a mesma camioneta, conduzida pelo mesmo motorista, nos apanhava ainda antes das oito da manhã para, depois de fazer mais duas paragens em aldeias próximas, nos deixar em frente ao colégio mesmo a horas de entrar para a primeira aula do dia. O trajecto inverso iniciava-se mais de cinco horas depois e a chegada à aldeia acontecia já depois das duas da tarde.</p> <p class="MsoNormal">Ao contrário do habitual, ninguém me esperava em casa nesse dia, mas o recado dado de manhã, antes da saída para apanhar a camioneta, não deixava margem para descuidos ou atrasos, por isso tratei de me pôr rapidamente a caminho.</p> <p class="MsoNormal">Apenas alguns minutos depois, ultrapassado o portão do quintal, dirigi-me ao esconderijo onde, desde sempre, era costume deixar a chave da porta quando todos os habitantes da casa se ausentavam. Histórias de ladrões havia-as, como havia as histórias de bruxas e de maus olhados, mas aquela era gente de bem e confiava-se nos vizinhos como se confiava numa mãe. Não era, por isso, de estranhar que aquele esconderijo fosse bem conhecido dos vizinhos.</p> <p class="MsoNormal">Já dentro de casa, encontrei o prato no cimo de uma panela de ferro junto às cinzas ainda mornas do lume já sem vida. Do conteúdo do prato o fio não trouxe memória, nem isso deve interessar ao caso.</p> <p class="MsoNormal">Com a barriga mais composta, e depois de ter devolvido a chave ao esconderijo, dirigi-me ao palheiro. À minha direita um burro de pêlo branco olhava-me com as orelhas espetadas para a frente, numa inconfundível expressão de curiosidade.</p> <p class="MsoNormal">De um pau imediatamente à direita da porta retirei o cabresto e dirigi-me ao burro. Este, adivinhando a quebra no seu descanso, recolheu as orelhas completamente para trás, numa clara expressão de desagrado. Indiferente a este sentimento, e sabendo que as manifestações de desagrado se ficariam pela expressão de orelhas recolhidas, enfiei a parte de baixo do cabresto pelo focinho do animal, fiz-lhe passar as orelhas pela parte de cima e apertei a fivela por debaixo do pescoço.</p> <p class="MsoNormal">Depois coloquei uma manta bem direita nas costas do animal, evitando deixar dobras que pudessem causar-lhe desconforto, e por cima desta coloquei a albarda. Depois fui buscar as engarelas e coloquei-as por cima da albarda e, finalmente, coloquei a cilha apertando-a bem para segurar tudo no lugar, mas não demasiado para não o magoar. Peguei num dos lados das engarelas e abanei-as para me certificar que tudo estava seguro. Estava.</p> <p class="MsoNormal">Finalmente libertei-o da corda que o prendia na manjedoura, puxei-o para fora do palheiro, e conduzi-o para junto da pedra que serviria de altura para mais facilmente conseguir passar a perna por cima da albarda e montar o animal.</p> <p class="MsoNormal">Fechadas todas as portas, lá segui caminho montado no burro, com as pernas penduradas à frente das engarelas. Em cerca de meia hora chegaria ao meu destino, onde um pequeno rebanho de três cabras seria deixado à minha guarda, para que os meus tios, aos cuidados de quem estava entregue, pudessem dedicar-se ao resto da lida da horta.</p> <p class="MsoNormal">O fio puxado não trouxe memórias claras da viagem até ao destino, nem do que lá se terá passado durante parte da tarde, talvez porque a memória do que se passou a seguir seja mais forte que todo esse resto.</p> <p class="MsoNormal">A certa altura uma das cabras começou a berrar, e em pouco tempo pude ver algo que nunca tinha podido ver pelo facto de quase sempre acontecer durante a noite, o nascimento de dois cabritinhos.</p> <p class="MsoNormal">Chagada a hora do regresso a casa, sobre as engarelas, que em situações normais seguiriam carregadas com os mais variados produtos da horta, foram apenas colocados dois pequenos molhos de erva acabada de cortar e que serviria de alimento nocturno às cabras e ao burro. Esta pouca carga não se destinava a poupar o burro, mas sim a permitir que eu, ao contrário do que era normal nestes regressos a casa, pudesse seguir montado e entregue à nobre missão de levar na minha frente os cabritos recém-nascidos.</p> <p class="MsoNormal">Com os cabritos a chamar pela mãe, e com a mãe a berrar ao lado do burro e de olhos postos nos seus filhotes, foi com um grande orgulho que, naquele dia quase noite, entrei na aldeia e percorri as ruas até ao palheiro.</p> <p class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: center;" align="center">** Glossário **</p> <p class="MsoNormal"><b style="">Albarda</b> - Espécie de sela feita de pano e de pele, e cheia com palha. Utilizada nos burros e nas mulas para permitir o transporte de pessoas e de carga. Protege o traseiro de quem assim quiser viajar, e protege as costas do animal da carga e dos traseiros dos passageiros.</p> <p class="MsoNormal"><b style="">Cabresto</b> - Utensílio feito com tiras de pele e utilizado para colocar na cabeça do burro, permitindo controlar o animal, quer quando se circula a pé, quer quando se segue montado nele.</p> <p class="MsoNormal"><b style="">Cilha</b> - Faixa larga de couro que, passando por debaixo da barriga do animal, serve para segurar a albarda, não permitindo que ela oscile ou caia.</p> <p class="MsoNormal"><b style="">Engarelas</b> - Armações de madeira ou de ferro, constituídas por duas partes simétricas unidas por cordas ou por correntes, e que se colocam no dorso dos animais de carga, sobre a albarda, de forma que as duas partes fiquem suspensas de ambos os lados do animal, permitindo a colocação de carga. Em algumas regiões as engarelas são conhecidas por cangalhas.</p>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com18tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-54553631844959907132009-03-14T13:31:00.002+00:002009-03-14T13:39:11.300+00:00Compasso de esperaInfelizmente esta que terminou foi uma semana de intenso trabalho, e por isso não consegui fazer a prometida transcrição daquele primeiro fio de memória para palavras escritas. Depois de um necessário e merecido descanso, espero encontrar, ao longo do que resta do fim de semana, um período de serenidade e de isolamento para cumprir a promessa. Até já...Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-73560641091291642522009-03-09T01:52:00.002+00:002009-03-09T01:57:37.301+00:00Fios de memória<p class="MsoNormal">Acontece-me, por vezes, virem-me à memória imagens distantes de situações vividas há já bastante tempo. Depois, a partir dessas primeiras, outras segundas se lhe seguem e depois terceiras e quartas, e assim sucessivamente até que alguma coisa à minha volta me faz acordar desse sonhar acordado e me traz de volta à realidade. É como se as memórias estivessem ligadas por um fio invisível que ao ser puxado trouxesse agarradas, umas após as outras, aquelas imagens de outros tempos.</p> <p class="MsoNormal">Por vezes o fio de memória tem uma base comum que me faz saltar de uma recordação para a outra. Uma situação, um local, uma pessoa, ou simplesmente um sentir, são o suficiente para trazer à superfície imagens, directa ou indirectamente, associadas a essa mesma situação, pessoa ou sentir.</p> <p class="MsoNormal">Outras vezes as imagens sucedem-se sem que exista essa tal base comum, ou talvez seja mais correcto dizer que ela existe e que apenas não me é aparente.</p> <p class="MsoNormal">Há ainda os casos em que, como referia a amiga <a href="http://www.blogger.com/profile/07726943939532867045">lélé</a> num <a href="http://postasdelado.blogspot.com/search?q=sair+das+lembran%C3%A7as">texto recente</a>, o fio de memória me conduz por recordações adulteradas, ou mesmo completamente forjadas, como se as imagens de um sonho tivessem conseguido atravessar a fronteira entre esse mundo, supostamente imaginário, e este outro, supostamente real.</p> <p class="MsoNormal">E no meio de todas essas recordações, puxadas por esse fio invisível, surgem-me por vezes imagens que estavam esquecidas nas profundezas da memória há tanto tempo que é inevitável ficar maravilhado...</p> <p class="MsoNormal">Daqui em diante, sempre que um destes fios de memória não me parecer demasiado desinteressante ou impróprio, aqui o partilharei com quem vier espreitar neste cantinho. O primeiro desses fios já foi puxado, falta agora transcrever em palavras as imagens que ele me trouxe.</p>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-60038466590248874342009-03-04T22:40:00.001+00:002009-03-04T22:42:26.663+00:00Brincar com o tempo<p class="MsoNormal">Vim só avisar que, terminado o devaneio sobre a viagem de um certo <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/search/label/O%20viajante">viajante</a>, neste cantinho se vai continuar a brincar com o tempo. Não para já, que não seria prudente abusar assim dele repetidamente, uma e outra vez, em seu tão curto espaço, mas num futuro não muito distante. Para já - forma de expressão, pois não deve entender-se que este para já signifique que seja, literalmente, para já, mas mais para um dos próximos dias - para já, dizia, será tempo não de com ele brincar, mas de brincar com outros devaneios. Um fio de memória começou a ser puxado... veremos o que ele nos traz...</p>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com9tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-45241982324891196522009-02-25T15:00:00.003+00:002009-02-25T15:00:00.999+00:00O viajante – parte IX<p class="MsoNormal">(Continuação de <i style="">O viajante – Partes </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-i.html"><i style="">I</i></a>,<i style=""> </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-ii.html"><i style="">II</i></a>,<i style=""> </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-iii.html"><i style="">III</i></a>, <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/02/o-viajante-parte-iv.html"><i style="">IV</i></a>, <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/02/o-viajante-parte-v.html"><i style="">V</i></a>, <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/02/o-viajante-parte-vi.html"><i style="">VI</i></a>, <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/02/o-viajante-parte-vii.html"><i style="">VII</i></a> e <i style=""><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/02/o-viajante-parte-viii.html">VIII</a></i>)</p> <p class="MsoNormal">Sabia que a leitura daquela carta lhe traria sofrimento, mas lentamente, ainda indeciso sobre o que fazer, foi rasgando um dos lados do envelope. Depois, já com o envelope aberto, hesitou de novo mais alguns segundos antes de meter dois dedos dentro do envelope para alcançar a folha de papel e puxá-la para fora. Fez uma nova hesitação e abriu, finalmente, a folha e olhou para aquelas linhas manuscritas.</p> <p class="MsoNormal">A carta pareceu-lhe estranhamente curta. Pensou que ela não tivera, talvez, a coragem para se alongar muito em explicações que sabia que ele teria obrigação de compreender. Na verdade não eram necessárias muitas palavras para dizer que se vira obrigada a procurar uma nova felicidade e para lhe pedir que entendesse a decisão dela e não a procurasse... e o fecho da carta, desejando-lhe que fosse feliz, também não necessitaria mais de duas ou três linhas de texto.</p> <p class="MsoNormal">Com a carta aberta na mão olhou pela janela para contemplar aquela belíssima paisagem durante mais alguns segundos. Depois fez uma inspiração profunda e dispôs-se, finalmente, a ler a carta.</p> <p class="MsoNormal"><i style="">“Meu amor, passam-se hoje exactamente seis meses desde a data em que tu não regressaste. Têm sido tempos muito difíceis para mim e para as nossas meninas. Não que elas tenham consciência do que se passa, mas têm imensas saudades tuas e não param de perguntar por ti.”<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal">Os olhos encheram-se-lhe repentinamente de lágrimas. Parou de ler, largou a carta em cima da mesa, recostou-se na cadeira com as mãos nos olhos e chorou como chora um homem. Um choro silencioso, mas um choro abundante, arrancado não do fundo dos olhos mas do mais profundo das entranhas. Tinha estado a tentar conter aquelas lágrimas desde que tomara consciência da situação em que se encontrava, mas agora não podia aguentar mais, por isso deixou de lutar, deixou de engolir em seco, e deixou que elas corressem livremente.</p> <p class="MsoNormal">Claro que tinham saudades, aquelas duas meninas adoravam-no, e ele adorava-as a elas. Mas a saudade delas já estaria curada por esta altura, enquanto a dele lhe ardia agora no peito com uma intensidade avassaladora.</p> <p class="MsoNormal">Perdeu a noção de quanto tempo ficou ali, e perdeu a noção da quantidade das lágrimas libertadas. Finalmente retirou lentamente as mãos dos olhos, e voltou a olhar para a sala e para a paisagem exterior, ainda com a visão perturbada pelas últimas lágrimas que tinham ficado prisioneiras nos olhos, impedidas de seguir o caminho das restantes.</p> <p class="MsoNormal">Pegou num dos guardanapos de papel e limpou os olhos, a boca e o nariz, e bebeu mais um pouco água para limpar o gosto salgado que sentia nos lábios e na boca. Depois respirou fundo e voltou a pegar na carta abandonada em cima da mesa.</p> <p class="MsoNormal"><i style="">“O mundo inteiro não tem parado de falar no teu caso, o que só contribuiu para agravar este sofrimento meu. Os primeiros quatro meses foram os mais difíceis, ainda aturdida pelos acontecimentos e incapaz de pensar e de raciocinar correctamente.<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal"><i style="">Depois fui recuperando um pouco a calma e o discernimento e tudo ficou mais calmo e sereno quando finalmente tomei a minha decisão.”<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal">Claro, a tomada da decisão devia ter sido muito difícil, mas depois de tomada tudo terá ficado mais calmo. O sofrimento terá ficado ainda durante muito tempo, mas também esse terá acabado por ser ultrapassado.</p> <p class="MsoNormal"><i style="">“De acordo com os peritos que analisaram a cápsula de dados, recuperada junto daquele planeta de onde partiste para algum lugar incerto do universo, o sistema de teletransporte da tua nave terá tido uma falha grave. O teu regresso à Terra só poderá acontecer se tiveres tomado a decisão de usar o sistema de teletransporte alternativo, com as inevitáveis consequências que isso implica.<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal"><i style="">Os peritos não foram capazes de determinar a que local do espaço foste parar na sequência da avaria, por isso, assumindo que vais regressar, é impossível saber quando isso vai acontecer. <o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal"><i style="">E assim tenho vivido nestes meses, prisioneira da incerteza de uma decisão que tu tomaste há seis meses atrás, mas que permanece escondida numa descontinuidade do tempo entre o momento em que a tomaste e um futuro que não sei quando chegará, ou se chegará.<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal"><i style="">Esta incerteza foi, precisamente, o factor de maior sofrimento para mim e o que me levou a tomar esta decisão. Simplesmente não poderia continuar a viver nesta incerteza!”<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal">Claro que não podia... Por muito que isso lhe custasse aceitar, sabia que as coisas não se poderiam ter passado de maneira diferente. Apesar de saber aquilo com que contava, não estava preparado, por isso baixou a carta e voltou a olhar para a rua, através da janela, tentando encontrar naquela paisagem idílica a coragem necessária para ler o último parágrafo.</p> <p class="MsoNormal">Respirou fundo uma vez mais e voltou a levantar a mão esquerda com a qual segurava a carta, finalmente disposto a terminar a sua leitura.</p> <p class="MsoNormal"><i style="">“Parto hoje com as nossas filhas. Parto numa nave não muito diferente da tua. Nela faremos pequenas viagens no tempo, voltando a uma órbita em torno da terra a cada seis meses. Em cada regresso farei uma breve comunicação com a Terra, para fazer um ponto de situação, antes de partir para nova viagem de igual duração. Interromperei esta sequência quando ouvir a tua voz. Não conseguimos e não queremos viver sem ti! Até já!...”<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal">FIM</p>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com10tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-9848350416192306952009-02-20T17:00:00.001+00:002009-02-20T17:00:02.233+00:00O viajante – parte VIII<p class="MsoNormal">(Continuação de <i style="">O viajante – Partes </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-i.html"><i style="">I</i></a>,<i style=""> </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-ii.html"><i style="">II</i></a>,<i style=""> </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-iii.html"><i style="">III</i></a>, <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/02/o-viajante-parte-iv.html"><i style="">IV</i></a>, <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/02/o-viajante-parte-v.html"><i style="">V</i></a>, <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/02/o-viajante-parte-vi.html"><i style="">VI</i></a> e <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/02/o-viajante-parte-vii.html"><i style="">VII</i></a>)</p> <p class="MsoNormal">A expressão dela tornou-se um pouco mais sombria. Fez uma pausa antes de responder:</p> <p class="MsoNormal"><i style="">“Os seus pais partiram já há mais de dez anos, primeiro o seu pai, depois a sua mãe, menos de um ano depois.”<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal">Depois voltando a um discurso mais animado, <i style="">“Mas os seus irmãos continuam vivos e prometeram que se recusariam a receber a morte enquanto o senhor não voltasse”</i>.</p> <p class="MsoNormal">Enquanto escutava aquelas palavras um sorriso amargo desenhou-se-lhe nos lábios, ao mesmo tempo que uma lágrima lhe caia pela cara. Sabia que seria assim, que os pais não poderiam ter uma vida suficientemente longa para ainda estarem vivos naquela altura, mas esta confirmação provocou-lhe um aperto no coração, como se a notícia fosse totalmente inesperada. Teria, certamente, mais motivos para sentir o coração apertado nos dias seguintes...</p> <p class="MsoNormal">Ela, percebendo o efeito das notícias que tinha acabado de dar, prosseguiu:</p> <p class="MsoNormal"><i style="">“Julgo que agora mesmo devem estar precisamente a reunir-se nesse local onde costumam encontrar-se nas datas que lhe referi.”<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal"><i style="">“Mas como? Eles já sabem que eu regressei?”<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal"><i style="">“Sim, várias dezenas de antenas estavam apontadas para o espaço à espera de receber o seu sinal de SOS. Por esta altura a notícia do seu regresso já circula em todos os meios de comunicação. Os peritos tinham previsto que o seu regresso aconteceria entre as sete horas de ontem e as vinte e três de amanhã, por isso havia muita gente na expectativa à escuta do seu sinal.”<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal"><i style="">“O meu regresso foi previsto?... como?...”<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal"><i style="">“Alguns anos depois da sua viagem foi feito um esforço para encontrar o seu rasto. Nessa altura havia já algumas teorias sobre o local para onde o sistema de teletransporte o teria levado na altura em que avariou, baseadas nos dados de telemetria encontrados na cápsula que deixou antes da tentativa de regresso.<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal"><i style="">Tendo como base essas teorias, e procurando tirar partido do facto de a sua nave emitir um sinal de rádio a cada minuto, foram colocadas várias antenas bastante sensíveis em locais do espaço onde se considerou que esses sinais poderiam estar prestes a chegar.”<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal">Claro, como não tinha pensado nisso!? A nave emitia, de facto, um sinal de rádio a cada sessenta segundos. Codificada nesse sinal era enviada a informação sobre a data e a hora a bordo da nave. Uma vez que estes sinais de rádio viajavam à velocidade da luz, algumas antenas bem posicionadas haveriam de, eventualmente, captar algum desses sinais. Bastaria que duas antenas colocadas em dois locais distintos detectassem o sinal para permitir o cálculo do ponto de origem do sinal, usando um processo de triangulação.</p> <p class="MsoNormal"><i style="">”Foi necessário esperar alguns anos, julgo que quatro, para que uma dessas antenas recebesse os primeiros sinais. Depois, com base nessa informação, foi relativamente fácil reposicionar as outras antenas, e em menos de seis meses foi possível determinar com bastante exactidão o local de onde se teletransportou pela última vez. Com base nessa informação foi feita uma estimativa da data da sua chegada.<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal"><i style="">Desde então tem havido alguns especialistas a contestar estas previsões e a apresentar teorias alternativas, mas, como acabamos de verificar, estavam enganados.”<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal">Teve vontade de lhe perguntar pela mulher e pelas filhas, mas por alguma razão ela tinha evitado falar-lhe nelas, por isso olhou de novo a carta em cima da mesa. Ela, apercebendo-se disso, achou que seria melhor deixá-lo a sós. Sorriu-lhe e disse-lhe <i style="">“Se precisar de alguma coisa chame-me”</i> antes de se retirar da sala.</p> <p class="MsoNormal">(Continua)</p>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-64845193267292950632009-02-18T15:33:00.003+00:002009-02-20T19:13:34.218+00:00O viajante – parte VII<p class="MsoNormal">(Continuação de <i style="">O viajante – Partes </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-i.html"><i style="">I</i></a>,<i style=""> </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-ii.html"><i style="">II</i></a>,<i style=""> </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-iii.html"><i style="">III</i></a>, <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/02/o-viajante-parte-iv.html"><i style="">IV</i></a>, <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/02/o-viajante-parte-v.html"><i style="">V</i></a> e <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/02/o-viajante-parte-vi.html"><i style="">VI</i></a>)</p> <p class="MsoNormal">Pegou no envelope e ficou ali a olhar para ele durante algum tempo. Imaginava o que estava escrito naquela carta e por isso mesmo ponderava se queria abri-la, ou se preferia ignora-la. Certamente ela teria decidido escrever-lhe quando, depois de se ter cansado de o esperar, se decidira a refazer a sua vida. Naquela carta encontraria as justificações que já imaginava, e as quais compreendia perfeitamente. Encontraria também o pedido para ele não a procurar, evitando assim abrir as feridas mal curadas daquela espera e daquela decisão que fora obrigada a tomar...</p> <p class="MsoNormal">Foi interrompido nestes pensamentos por alguém que batia à porta da sala. Antes que pudesse mandar entrar já a porta se abria, mostrando-lhe a cara da mulher que vira sentada do lado de fora.</p> <p class="MsoNormal"><i style="">“Desculpe incomodá-lo, mas achei que talvez quisesse tomar alguma coisa, uma água ou um sumo... e uns bolinhos...”</i> e ficou a olhar para ele, com um sorriso simpático no rosto.</p> <p class="MsoNormal">A intensidade do turbilhão de emoções por que tinha acabado de passar tinham-no levado a ignorar os sinais do seu próprio corpo. Precisou, por isso, de alguns segundos para raciocinar sobre a oferta que acabara de lhe ser feita. <i style="">“Sim, de facto uma água seria bem vinda... e talvez aceite também alguns desses bolinhos... fiquei curioso para saborear o resultado destes quase quarenta anos de evolução na arte da confeitaria...”</i></p> <p class="MsoNormal">Ela sorriu mais abertamente e entrou na sala, dirigindo-se a uma porta na parede do lado esquerdo. De dentro do armário retirou dois copos, duas garrafas de água, alguns pacotes com imagens de frutas, algumas embalagens pequenas de diversos tipos, e alguns guardanapos de papel. Depois, recuperando o sorriso simpático entrelaçou as pontas dos dedos e, olhando-o de frente, disse-lhe: <i style="">“Se precisar de mais alguma coisa não hesite em chamar-me.”</i></p> <p class="MsoNormal">Ia já junto à porta quando ele falou: <i style="">“Sabe quem eu sou?”</i></p> <p class="MsoNormal">Ela voltou-se para ele e respondeu: <i style="">“Claro que sim. O senhor é uma das pessoas mais conhecidas da actualidade.”</i></p> <p class="MsoNormal"><i style="">“A sério?... e eu que, por momentos, achei que se poderiam ter esquecido de mim!...”<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal">Ela entretanto tinha-se aproximado de novo e olhava-o agora com uma cara mais séria.</p> <p class="MsoNormal"><i style="">“De modo nenhum, o senhor teve um papel importantíssimo no desenvolvimento dos sistemas de teletransporte e foi o primeiro homem a ser teletransportado para fora do nosso sistema solar. Depois, nessa mesma viagem, teve um problema com o sistema de teletransporte e foi obrigado a usar o sistema alternativo, o que implicou uma viagem no tempo de mais de trinta e oito anos. Acabou de chegar dessa viagem.<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal"><i style="">Além disso, o senhor continua a ser uma das poucas pessoas que teve a possibilidade de viajar no tempo.”<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal"><i style="">“Como assim?... foi detectado algum problema com essa tecnologia?”<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal"><i style="">“Não, pelo contrário, a tecnologia funciona muitíssimo bem, mas os responsáveis mundiais consideraram que seria perigoso permitir esse tipo de viagens, devido aos potenciais problemas na coordenação e na recepção desses passageiros no momento do regresso, e ao perigo de muitas pessoas importantes e poderosas viajar para o futuro, criando problemas de vazio no presente. Por isso foram aprovadas leis proibindo esse tipo de viagens.”<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal">Ele ficou ali a olhar para ela, sem saber o que dizer, enquanto mastigava o conteúdo de um dos pacotes que ela lhe tinha colocado em cima da mesa. Foi ela quem retomou a palavra:</p> <p class="MsoNormal"><i style="">“A sua viagem teve início a vinte e dois de Abril, desde essa altura que esta data e a data de vinte e dois de Outubro são assinaladas, especialmente pelos seus amigos e familiares que continuam a reunir-se no terminal de onde partiu para essa viagem.”<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal"><i style="">“Duas vezes por ano?... não chegaria uma?...”<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal"><i style="">“A seu tempo compreenderá as razões”, </i>disse sorrindo. <i style="">”Os principais dinamizadores desses encontros começaram por ser os seus pais e os seus irmãos, aos quais se juntaram os seus amigos.”<o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNormal"><i style="">“Os meus pais e os meus irmãos...”</i> fez uma pausa <i style="">”que é feito deles?”</i></p><p class="MsoNormal">(<a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/02/o-viajante-parte-viii.html">Continua</a>)<br /></p>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com8tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-6205675877860708462009-02-12T05:33:00.003+00:002009-02-18T15:40:43.868+00:00O viajante – parte VI<p class="MsoNormal">(Continuação de <i style="">O viajante – Partes </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-i.html"><i style="">I</i></a>,<i style=""> </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-ii.html"><i style="">II</i></a>,<i style=""> </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-iii.html"><i style="">III</i></a>, <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/02/o-viajante-parte-iv.html"><i style="">IV</i></a><i style=""> </i>e <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/02/o-viajante-parte-v.html"><i style="">V</i></a>)</p> <p class="MsoNormal">Após alguns segundos de desorientação apercebeu-se do que se estava a passar. Percebeu que nenhuma força puxava a nave para cima, em vez disso a mesma aceleração puxava-os, a ele e à nave, para baixo. Tinha acabado de ser teletransportado do local onde se encontrava, em órbita com o Sol, directamente para algum lugar na Terra e o que sentia era apenas a força da gravidade. </p> <p class="MsoNormal">Sentiu alguma agitação no exterior da nave. A cara de um homem surgiu-lhe na janela à sua esquerda, perscrutando o interior da nave e, finalmente, fixando o olhar nele. Depois o homem fez-lhe sinal com a mão para que saísse da nave.</p> <p class="MsoNormal">Moveu-se muito lentamente. Apesar de ter passado apenas alguns dias na situação de imponderabilidade, o súbito retorno à gravidade normal da superfície da Terra fazia com que se sentisse muito pesado e desajeitado.</p> <p class="MsoNormal">Abriu a porta e saiu lentamente da nave. O homem que vira pela janela afastava-se para um dos lados da sala, enquanto por uma porta aberta à sua frente um outro homem, vestido de forma mais distinta que o anterior, se dirigia a ele mostrando um largo sorriso. “<i style="">Capitão, é uma enorme honra recebê-lo de volta aqui na Terra</i>”. Fez uma pausa enquanto lhe estendia a mão aberta que ele se apressou a apertar, balbuciando um tímido e quase imperceptível “<i style="">Obrigado</i>”.</p> <p class="MsoNormal">“<i style="">Sou o responsável actual da Agência Espacial e foi com grande entusiasmo que recebi a notícia de que tinha sido detectado o seu sinal de SOS. Como deve saber, muito tempo se passou aqui na Terra desde a sua viagem pioneira. Muito se escreveu e se especulou a seu respeito ao longo destes anos, mas a maioria dos peritos, e das pessoas em geral, sempre acreditou que o senhor haveria de regressar um dia</i>.”</p> <p class="MsoNormal">Tentou encontrar algumas palavras para responder, mas nada lhe ocorreu naquele momento. Alimentava ainda a vaga esperança de que não se tivessem, afinal, passado tantos anos, e de que o computador e o sistema de teletransporte a bordo da sua nave tivessem errado o cálculo da data de chegada. Mas não, tudo indicava, pelo discurso daquele homem, que se tinham passado aqueles anos todos. E com a perda desta última réstia de esperança, fugiam-lhe também as palavras.</p> <p class="MsoNormal">“<i style="">Imagino a forma como se sente</i>...” Continuou o homem, sentindo o embaraço em que ele se encontrava. Depois, encarando-o com uma expressão mais séria, prosseguiu, “<i style="">Imagino que não seja fácil entender que se tenham passado quase quarenta anos aqui na Terra, quando para si se passaram apenas alguns dias. Mas não se preocupe, vai ter algumas surpresas boas, vamos ajuda-lo a adaptar-se a este novo mundo, vamos ajuda-lo a viver uma vida feliz</i>.”</p> <p class="MsoNormal">O homem colocou-lhe a mão esquerda sobre o seu omoplata direito, num gesto que o encaminhava pela porta aberta. Avançou e passou pela porta, depois o homem indicou-lhe uma outra porta, que uma jovem, vestida com um uniforme não muito diferente do que vestia o homem que o tinha espreitado pela janela da nave, se prontificou a abrir carregando num botão. Enquanto passava por ela a jovem dirigiu-lhe um sorriso genuíno e simpático ao qual ele se sentiu obrigado a corresponder. Entraram ambos numa cabine em tudo idêntica à cabine de um elevador. A porta fechou-se atrás deles e o homem introduziu algumas instruções num ecrã cheio de estranhos símbolos e números.</p> <p class="MsoNormal">Enquanto a porta se abria para um corredor de aspecto muito diferente daquele que ali estava há apenas alguns segundos atrás, o homem voltou a falar, “<i style="">A tecnologia de teletransporte veio revolucionar todos os meios de transporte do planeta. Deixaram de existir carros, comboios, barcos e aviões, pois deixaram de ser necessários. Por exemplo, agora mesmo acabamos de ser teletransportados de um dos vários terminais da Agência Espacial para os escritórios centrais, a mais de mil quilómetros de distância.</i>”</p> <p class="MsoNormal">Avançaram pelo corredor em direcção a uma secretária onde uma mulher bonita, de uns trinta a trinta e cinco anos, mexia as mãos por entre um emaranhado de estranhas imagens que se iam movendo elegantemente à sua frente. Certamente um computador moderno, sem teclado, e sem monitor, apenas um conjunto de imagens virtuais suspensas e com as quais aquela mulher parecia brincar habilmente. Apercebendo-se da presença deles a mulher parou o que estava a fazer, e olhou-os dirigindo-lhes um largo sorriso.</p> <p class="MsoNormal">O homem abriu uma porta à esquerda da mulher e convidou-o a entrar. Entraram para uma sala ampla e muito bem iluminada pelo azul profundo de um céu sem nuvens que entrava pelas janelas que ocupavam por completo uma das paredes. Do lado de fora da janela era também visível um relvado bem tratado e, mais ao fundo, uma praia e um mar calmo a perder de vista. Dentro da sala uma mesa de grandes dimensões, rodeada de cadeiras de aspecto confortável, ocupava grande parte do espaço.</p> <p class="MsoNormal">Seguindo a indicação do homem, sentou-se numa das cadeiras mais próximas da janela. O homem, permanecendo de pé, voltou a falar. “<i style="">Seguindo as normas e os procedimentos actuais da Agência, o senhor terá de ser observado por um grupo de médicos. Não que se suspeite que alguma coisa esteja menos bem com a sua saúde, mas porque a isso obrigam as normas e os procedimentos a que me referi. No entanto, achei que antes disso seria interessante para si receber uma coisa que há muito lhe foi dirigida. Demore o tempo que achar necessário, a minha secretária vai ficar à espera que o senhor lhe diga quando estiver pronto para prosseguir.</i>”</p> <p class="MsoNormal">O homem meteu a mão num dos bolsos do casaco e retirou de lá um envelope branco que colocou à frente dele, em cima da mesa. Depois virou-se e saiu fechando a porta.</p> <p class="MsoNormal">No envelope à sua frente estava escrito o nome dele, na inconfundível caligrafia da sua mulher e mãe das suas filhas.</p> <p class="MsoNormal">(<a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/02/o-viajante-parte-vii.html">Continua</a>)</p>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com7tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-84421232851196189972009-02-06T20:00:00.003+00:002009-02-18T20:51:05.584+00:00O viajante – parte V<p class="MsoNormal">(Continuação de <i style="">O viajante – Partes </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-i.html"><i style="">I</i></a>,<i style=""> </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-ii.html"><i style="">II</i></a>,<i style=""> </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-iii.html"><i style="">III</i></a><i style=""> </i>e <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/02/o-viajante-parte-iv.html"><i style="">IV</i></a>)</p> <p class="MsoNormal">Com o dedo suspenso a menos de dois centímetros do botão que activaria o sistema de teletransporte, e que o faria viajar quase quarenta anos para o futuro, pensou na realidade que iria encontrar quando chegasse à Terra.</p> <p class="MsoNormal">Pensou de novo na mulher. Imaginou como ela se sentiria naquela incerteza sobre o que lhe teria acontecido a ele. Se estaria vivo, ou se os seus restos mortais vagueariam algures numa parte incerta do universo... Se, estando vivo e em condições de regressar à Terra, demoraria dias ou anos até estar de volta... Não tinha dúvidas de que o amor que os unia era muito grande, mas também sabia que nenhum amor poderia resistir à incerteza em que a sua amada se encontraria. Sabia que, mais tarde ou mais cedo, ela teria de desistir da espera e refazer a sua vida com outro homem. Além disso, em vez da mulher ainda jovem e bonita que vira pela última vez a apenas alguns dias atrás, encontraria uma avó com mais de setenta anos.</p> <p class="MsoNormal">Pensou nas filhas. Reviu-as mentalmente nas suas brincadeiras, nas suas travessuras, nas suas gracinhas, nos seus momentos de ternura... Cresceriam sem ele!... Cresceriam ao lado de um padrasto a quem veriam como pai e a quem os seus próprios netos chamariam de avô.</p> <p class="MsoNormal">Pensou nos pais, já com uma idade demasiado avançada para que pudesse alimentar a esperança de ainda os encontrar vivos. Morreriam sem que soubessem o que lhe tinha acontecido, morreriam sem que ele tivesse oportunidade de se despedir deles, de lhes dar um último carinho, em jeito de retribuição pelos muitos carinhos que deles sempre recebera, de os acompanhar até à sua última morada...</p> <p class="MsoNormal">Pensou nos colegas e amigos. Encontraria a maioria já numa idade avançada, enquanto outros, à semelhança dos pais, já teriam morrido.</p> <p class="MsoNormal">Apercebeu-se de que não teria ninguém quando chegasse! Estaria verdadeiramente só e sem qualquer referência ao mundo que deixara há apenas alguns dias. Pensou se realmente queria voltar, ou se preferia programar o sistema de teletransporte para o levar directamente à superfície do Sol onde seria instantaneamente incinerado. Seria tudo tão rápido que nem chegaria a sentir dor.</p> <p class="MsoNormal">Apressou-se a afastar aqueles pensamentos! Não, não estava disposto a entregar-se assim tão facilmente! Voltaria, conheceria as filhas, mais velhas do que ele, conheceria os netos, reconstruiria a sua vida, faria novos amigos, encontraria um novo amor, uma nova família e novos filhos. Não seria fácil, mas estava certo de que encontraria o caminho para uma nova felicidade.</p> <p class="MsoNormal">Num impulso, e antes que pudesse mudar de ideias, carregou no botão. Instantes depois a luz intensa do Sol entrava-lhe pelas janelas do lado direito da nave. Precisou de alguns momentos para que os seus olhos se adaptassem àquele súbito aumento de luminosidade. Depois, ainda encandeado, procurou os controlos da nave e manobrou-a de forma a virar as janelas para o escuro do vazio do universo.</p> <p class="MsoNormal">Já estava! Mais de trinta e oito anos se tinham passado na Terra entre o momento em que, naquele impulso, tinha carregado no botão e este momento em que se encontrava agora.</p> <p class="MsoNormal">No computador deu as instruções necessárias para que este determinasse a localização exacta da Terra naquele momento. O ponto de chegada que tinha sido previamente programado no sistema de teletransporte não se encontrava muito próximo da Terra. A razão para isso prendia-se com a dificuldade em conseguir afinar com precisão milimétrica o local de destino de um teletransporte. Neste caso, e considerando a distância a que estava o ponto de partida, o erro no ponto de destino poderia chegar aos milhares de quilómetros. Por esta razão, o ponto de destino previamente programado no STTA, e nas proximidades do qual se encontrava agora, fora escolhido numa órbita em torno do Sol, entre a órbita de Vénus e a órbita da Terra. Por isso era agora necessário determinar onde se encontrava a Terra. Em simultâneo activou também o sinal de SOS.</p> <p class="MsoNormal">Ocorreu-lhe então a possibilidade de a espécie humana já não existir, de se ter autodestruído em alguma guerra... de aquela mesma tecnologia que permitira o teletransporte poder ter sido fatalmente utilizada como arma de destruição e aniquilação. Se assim fosse seria ele o último representante vivo da raça humana...</p> <p class="MsoNormal">Mas não, o computador informou-o que as antenas da nave estavam a captar sinais electromagnéticos, num padrão típico dos utilizados para telecomunicações. Apesar de o computador não conseguir descodificar qualquer dos sinais recebidos, era evidente que havia vida inteligente activa algures não muito longe.</p> <p class="MsoNormal">Pensou na possibilidade de já não se lembrarem dele e de o tomarem por um extraterrestre...</p> <p class="MsoNormal">Repentinamente uma luz branca substituiu o escuro do espaço em todas as janelas da nave. Ao mesmo tempo sentiu-se puxado para baixo, como se a nave estivesse a ser acelerada para cima por uma qualquer força.</p> <p class="MsoNormal">(<a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/02/o-viajante-parte-vi.html">Continua</a>)</p>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com8tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-52794061383729297232009-02-03T12:24:00.004+00:002009-02-07T00:56:17.053+00:00O viajante – parte IV<p class="MsoNormal">(Continuação de <i style="">O viajante – </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-i.html"><i style="">Parte I</i></a>,<i style=""> </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-ii.html"><i style="">Parte II</i></a><i style=""> </i>e<i style=""> </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-iii.html"><i style="">Parte III</i></a>)</p> <p class="MsoNormal">No ecrã do computador uma mensagem lembrava-o de que aquela estimativa era aproximada, e pedia-lhe instruções para teletransportar a nave para outro local, a fim de poder calcular uma triangulação para um cálculo mais exacto.</p> <p class="MsoNormal">Talvez... talvez a estimativa estivesse, afinal, muito longe da realidade... talvez não estivesse tão desesperantemente longe da Terra... Sabia que esta era uma possibilidade muito remota, mas continuava a recusar-se a acreditar naquele cenário tão pessimista.</p> <p class="MsoNormal">Sem perder tempo, deu as instruções necessárias para a utilização do STTA e configurou um destino a cerca de trinta dias luz dali. Era mais distante que o necessário para fazer um cálculo com a precisão adequada, mas ele queria ter a certeza.</p> <p class="MsoNormal">Uma breve oscilação e uma súbita alteração dos padrões de pontos luminosos que entravam pela janela deram-lhe a indicação de que a operação de teletransporte se concluíra. Juntamente com a viagem no espaço tinha também viajado cerca de trinta e sete horas para o futuro. Uma insignificância face ao que o esperava se a primeira estimativa se confirmasse.</p> <p class="MsoNormal">Olhou de novo para o exterior da nave. A mesma visão com que antes se deslumbrara parecia-lhe agora fria... grotesca... brutal!...</p> <p class="MsoNormal">Na Terra, por esta altura, já teriam percebido que algo de errado se tinha passado com a missão. Provavelmente já teriam enviado uma sonda não tripulada para o local da missão, e talvez até já tivesse sido recuperada a cápsula de informação que ele lá deixara. Sabia, no entanto, que todos esses esforços em nada o poderiam ajudar a ele. Mesmo que a análise dos dados da cápsula permitisse identificar a avaria do STTI, dificilmente permitiria determinar a que local do espaço a nave tinha ido parar. Além disso, seriam necessários vários dias, ou talvez semanas, para analisar toda a informação da cápsula, e ele tinha já menos de cinquenta horas de oxigénio nos tanques da nave. Não podia, por isso, ficar à espera que o viessem resgatar. Estava sozinho, mais sozinho que algum outro homem alguma vez tinha estado.</p> <p class="MsoNormal">Repentinamente vieram-lhe à memória as palavras e a expressão da mulher quando ele a informara, eufórico, que tinha sido escolhido para aquela missão, “<i style="">Não vás, tenho medo!...</i>”. Depois lembrou-se das filhas gémeas, no momento em que as abraçara e as levantara do chão para se despedir delas antes de partir para o período de <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Quarantine">quarentena</a> que precedeu a missão.</p> <p class="MsoNormal">Estas memórias foram interrompidas por uma alteração no ecrã do computador. O programa de cálculo da triangulação tinha terminado e a imagem mostrava-lhe já as novas coordenadas. Contrariamente ao que desejava estas coordenadas eram muito próximas da primeira estimativa. Não havia dúvidas de que estava muito longe da Terra.</p> <p class="MsoNormal">A sua atenção foi, entretanto, desviada para outros dados. O programa de cálculo estava preparado para, depois de calculada a triangulação, programar automaticamente o sistema de teletransporte activo, neste caso o STTA, para levar a nave de volta a um ponto predefinido numa órbita em torno do Sol. A zona inferior do ecrã mostrava-lhe, juntamente com as coordenadas do ponto de destino e de outros parâmetros de configuração do STTA, um campo onde, dentro de poucos segundos, deveria aparecer a estimativa da data de chegada àquele ponto, medida em relação ao referencial da Terra.</p> <p class="MsoNormal">A data apareceu, finalmente, e ele calculou mentalmente a diferença entre essa data e a data actual. A utilização do STTA implicava que chegaria à Terra mais de trinta e oito anos depois de ter iniciado aquela viagem... Bastavam agora algumas instruções muito simples para executar aquele teletransporte. Para ele essa viagem demoraria uma insignificante fracção de segundo, mas nessa mesma fracção de segundo passar-se-iam quase quarenta anos na Terra! Mais do que a idade que ele tinha!...</p> <p class="MsoNormal">(<a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/02/o-viajante-parte-v.html">Continua</a>)</p>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com9tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-55837702615097604082009-01-25T01:30:00.004+00:002009-02-03T17:02:30.446+00:00O viajante – parte III<p class="MsoNormal">(Continuação de <i style="">O viajante – <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-i.html">Parte I</a> e <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-ii.html">Parte II</a></i>)</p> <p class="MsoNormal">Fechou o painel do STTI e flutuou de volta à cadeira. As implicações daquela avaria poderiam ser dramáticas se estivesse longe da Terra, mas poderiam ser insignificantes se estivesse relativamente perto.</p> <p class="MsoNormal">Sabia que teria de utilizar o STTA para regressar à Terra e que isso implicaria viajar para o futuro. Mas se estivesse relativamente perto, a alguns dias ou mesmo meses-luz, distância suficiente para o Sol não parecer muito diferente de qualquer outra estrela, essa viagem no tempo seria relativamente curta e, portanto, sem impacto significativo. Se estivesse longe...</p> <p class="MsoNormal">De nada lhe adiantava entrar em desespero, não só porque o desespero em nada o ajudaria, mas também porque não gostava de se preocupar em vão com situações hipotéticas. Antes de mais era urgente saber onde estava e para isso teria de instruir o computador para que executasse o programa de localização.</p> <p class="MsoNormal">Censurou-se por não ter iniciado o programa de cálculo mais cedo. Poderia ter poupado alguns minutos de incerteza… Sentou-se de novo na cadeira e apertou o cinto para evitar ser empurrado para fora dela à medida que se fosse movimentando para introduzir no computador as instruções necessárias à execução do programa de cálculo da posição.</p> <p class="MsoNormal">Com as instruções dadas recostou-se na cadeira para esperar pelos resultados e percorreu mentalmente os procedimentos que teria de executar.</p> <p class="MsoNormal">O cálculo da posição era um processo moroso que envolvia cálculos e processamentos complexos, por isso sabia que tinha cerca de oito a dez minutos de espera. O computador teria de analisar várias fotos tiradas pelas câmaras existentes no exterior da nave, comparando-as com os padrões conhecidos de várias constelações de estrelas, e comparando o <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Spectrum">espectro luminoso</a> de cada estrela fotografada com o espectro conhecido de um conjunto de estrelas de referência. Depois de identificadas várias estrelas, em função da posição relativa de cada uma dessas estrelas, calcularia, então, a posição aproximada do local no espaço onde se encontravam.</p> <p class="MsoNormal">Este primeiro cálculo não era muito exacto, tipicamente com uma margem de erro de cerca de dez por cento, mas serviria para saber se estava muito longe. No entanto, para usar o sistema de teletransporte teria de determinar com maior precisão a sua localização e a sua velocidade relativa. Naturalmente, num universo sem coordenadas absolutas e onde tudo tem de ser medido em relação a um <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Frame_of_reference">referencial</a>, a programação das <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Coordinate_system">coordenadas</a> de destino no sistema de teletransporte teria de ser feita com o conhecimento da posição, tão exacta quanto possível, em relação ao destino pretendido.</p> <p class="MsoNormal">Para saber com maior exactidão a sua posição, teria de usar o sistema de teletransporte para se deslocar para um local a algumas horas-luz de distância. Neste novo local a repetição da análise das posições das estrelas, em conjunto com a informação anteriormente recolhida e o cálculo por <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Triangulation">triangulação</a>, permitiria determinar com bastante precisão a posição em que se encontrava.</p> <p class="MsoNormal">Depois, para saber aproximadamente a velocidade, teria de esperar algumas horas e então repetir a análise estelar. O cálculo da diferença de posições permitiria determinar a velocidade.</p> <p class="MsoNormal">Não querendo que o seu pensamento se arrastasse para a possibilidade de se encontrar demasiado longe da Terra, olhou pela janela para o exterior da nave. Vieram-lhe à memória os seus tempos de criança quando o pai o levava para o campo, em noites escuras de verão, para se deitarem no chão e ficarem ali a contemplar o céu e a contar <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Falling_star">estrelas cadentes</a>. Sabia que não poderia ver estrelas cadentes neste local, mas a intensidade e o número daqueles pontos brilhantes era muito mais grandioso que qualquer imagem que tinha guardada como memória daquele tempo.</p> <p class="MsoNormal">Apagou a luz da cabina, desligou o monitor do computador, libertou-se da cadeira e encostou a testa ao vidro da janela. Por momentos, naquela quase completa escuridão, com o corpo livre e sem peso, e com o campo de visão completamente preenchido com aquela paisagem estelar, sentiu uma sensação indescritível... como se aquele lugar existisse apenas para ele... como se fosse um insignificante grão de poeira cósmica...</p> <p class="MsoNormal">Nem se deu conta de quanto tempo tinha ficado ali, completamente imóvel com o campo de visão rodando muito lentamente acompanhando um muito ligeiro movimento de rotação da nave sobre si própria.</p> <p class="MsoNormal">Como que acordado de um sonho, voltou de novo a atenção para o computador e, segurando-se à cadeira, ligou o ecrã. Pouco depois a imagem mostra-lhe a sua localização em <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Polar_coordinate_system">coordenadas polares</a>, constituída por dois valores angulares e um valor de distância, uma distância de duzentos e sessenta e oito vírgula sete anos-luz...</p><p>(<a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/02/o-viajante-parte-iv.html">Continua</a>)</p>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com10tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-13447134596926303112009-01-19T02:54:00.005+00:002009-01-25T01:44:42.506+00:00O viajante – parte II<p class="MsoNormal">(Continuação de <i style=""><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-i.html">O viajante – Parte I</a></i>)</p><p class="MsoNormal">"Erro no Sistema de Teletransporte Instantâneo". Esta mensagem dizia-lhe exactamente aquilo que ele já tinha percebido por si só, o sistema de teletransporte tinha tido uma falha.</p> <p class="MsoNormal">Tinha essa capacidade de manter a calma, mesmo nas situações mais complexas, por isso mesmo tinha sido escolhido para aquela missão. A situação podia ser muito séria, ou tudo podia não passar de uma pequena anomalia que facilmente se poderia solucionar, por isso respirou fundo e dirigiu a sua atenção para o computador. Acedeu à área de testes e deu instruções para a execução das rotinas de teste e diagnóstico do sistema de teletransporte.</p> <p class="MsoNormal">Enquanto esperava pelos resultados foi pensando nas possíveis razões para a situação em que se encontrava. Desde que haviam sido descobertos e divulgados os mecanismos de base do teletransporte, ele tinha-se empenhado em compreender o seu funcionamento, e tinha mesmo integrado a equipa de cientistas que tinha concebido e construído os primeiros protótipos. O sistema que fora colocado nesta nave não era muito diferente desses primeiros protótipos, além disso, como parte integrante do seu treino, ele tinha estudado exaustivamente todos os sistemas colocados a bordo. Esses conhecimentos poderiam revelar-se, agora, muito preciosos.</p> <p class="MsoNormal">Os sistemas de teletransporte tinham sido descobertos há pouco mais de quatro anos por duas equipas independentes de cientistas. Estas equipas tinham descoberto, de forma totalmente independente, dois fenómenos físicos distintos que permitiam, cada um deles, a possibilidade de transportar matéria de um local no espaço para outro local distinto, sem a necessidade de percorrer o <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Space">espaço tridimensional</a> entre esses dois locais. Curiosamente nenhum destes sistemas seguia as linhas de investigação que, até então, a ciência e a ficção científica <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Teleportation">vinham explorando</a>.</p> <p class="MsoNormal">Apesar de terem sido descobertos quase em simultâneo, os dois sistemas eram completamente distintos. O primeiro, conhecido como Sistema de Teletransporte Instantâneo (STTI), permitia o transporte quase instantâneo de matéria entre dois locais, no entanto era bastante complexo e exigia a utilização de dispositivos de alta tecnologia, combinados numa máquina pesada e volumosa.</p> <p class="MsoNormal">O segundo sistema de teletransporte, conhecido por Sistema de Teletransporte Adiado (STTA), era consideravelmente mais simples que o primeiro, no entanto a sua utilização obrigava a que uma viagem no espaço fosse também acompanhada por uma <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Time_travel">viagem no Tempo</a>. Um viajante que utilizasse este sistema poderia ser transportado de um local no espaço para outro, mas enquanto para ele essa viagem seria praticamente instantânea, para um observador externo ela demoraria algum tempo. Este tempo dependia de vários factores de difícil contabilização, como a quantidade e a natureza da matéria a teletransportar, ou as intensidades dos campos <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Magnetic_field">magnéticos</a> e <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Gravitational_field">gravíticos</a> dos pontos de origem e de destino, podendo variar, aproximadamente, entre um terço e um vigésimo do tempo necessário para um raio de luz percorrer o espaço entre os dois pontos.</p> <p class="MsoNormal">Esta característica estava a despertar um grande interesse de algumas empresas pelos STTA. Pretendiam utilizar sistemas destes para oferecer aos seus clientes uma forma de viajar para o futuro, permitindo-lhes, a troco de uma avultada soma de dinheiro, a possibilidade de ‘saltarem’ para o futuro.</p> <p class="MsoNormal">A nave em que se encontrava estava equipada com os dois sistemas de teletransporte. O STTA fora incluído pelo facto de não ser muito complexo e de, ao contrário do STTI, ocupar pouco espaço, proporcionando ao astronauta uma forma alternativa de regresso à Terra no caso de uma falha não recuperável no STTI.</p> <p class="MsoNormal">Enquanto continuava à espera dos resultados do programa de testes e diagnóstico, olhou pelas janelas à procura de um ponto mais brilhante que lhe indicaria a proximidade de uma estrela, desejavelmente do Sol, mas a sua busca foi interrompida por mudanças no ecrã do computador. O programa de testes e diagnóstico indicava-lhe uma falha num dos componentes mais sensíveis do complexo sistema de teletransporte.</p> <p class="MsoNormal">Desapertou os cintos de segurança que o seguravam à cadeira e flutuou para a parte de trás da nave até um painel marcado com STTI. Rodou dois manípulos, abriu o painel e entrou dentro de um compartimento lotado com complexos dispositivos, interligados por um emaranhado de cabos e tubos. Do lado direito, um pouco acima da sua cabeça, o dispositivo que o computador identificara estava visivelmente danificado.</p> <p class="MsoNormal">Não teve dúvidas de que não tinha como reparar aquela avaria. Onde quer que estivesse, não poderia contar com aquele sistema para voltar à Terra.</p> <p class="MsoNormal">(<a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-iii.html">Continua</a>)</p>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-24964066366689828662009-01-11T02:48:00.004+00:002009-01-26T10:46:41.394+00:00O viajante – parte I<p class="MsoNormal">Estava sem palavras enquanto olhava para aquele planeta deslumbrante. Já antes tinha visto imagens daquele mesmo planeta, obtidas pelas sondas que o tinham precedido, mas estar ali e poder vê-lo com os seus próprios olhos, ainda que a uma distância de quase um milhão de quilómetros, era uma experiência indescritível.</p> <p class="MsoNormal">Um súbito chamamento do computador de bordo fê-lo voltar à realidade. Esta não era uma viagem de passeio, ainda tinha um rigoroso programa de tarefas a executar e, ao contrário do que gostaria, não podia ficar ali parado a apreciar a paisagem.</p> <p class="MsoNormal">O computador pedia-lhe autorização para iniciar o teste exaustivo a todos os sistemas da nave. Sabia que ele próprio estava incluído nesses testes, e sabia que se não se despachasse a dar a autorização pretendida o computador entraria num modo de contingência executando um conjunto de tarefas, previamente programadas antes da partida, e que deveriam levar a nave imediatamente de volta à <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Earth">Terra</a>. Apressou-se, por isso, a tocar no ecrã, dando a desejada ordem para retomar o curso normal de actividades.</p> <p class="MsoNormal">Sabia que teria de responder a algumas perguntas feitas pelo computador e que as suas respostas, juntamente com os resultados dos testes aos restantes sistemas da nave e a um sem fim de registos de <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Telemetry">telemetria</a>, seriam gravadas na memória de uma pequena cápsula que seria deixada ali mesmo, em órbita com aquele planeta gigante. Caso alguma coisa corresse mal e ele não conseguisse regressar à Terra, seriam enviadas sondas para recuperar aquela cápsula a fim de diagnosticar as eventuais causas de um acidente, incluindo a possibilidade de ele próprio não se encontrar no pleno exercício das suas faculdades físicas ou intelectuais.</p> <p class="MsoNormal">Tinha também preparado algumas palavras de circunstância para assinalar a ocasião, as quais ficariam também gravadas. Nada que se assemelhasse às palavras, também de circunstância, que <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Neil_Armstrong">Neil Armstrong</a> havia proferido no momento do seu primeiro passo na superfície lunar, pois ele nunca fora muito bom com as palavras, mas que, ainda assim, lhe pareciam apropriadas.</p> <p class="MsoNormal">Depois de feitas as perguntas, dadas as respostas e proferidas as palavras de circunstância, vê a cápsula ser libertada e passar lentamente em frente à janela de vigia à sua esquerda, numa silhueta escura em forte contraste com o colorido das nuvens do planeta ao fundo. A forma ovalada e escura da cápsula contrasta com a forma perfeitamente redonda de um pequeno satélite natural e da sua sombra, também redonda, projectada nas nuvens do planeta ligeiramente abaixo do equador.</p> <p class="MsoNormal">Faltavam agora menos de dois minutos para que fossem activados os sistemas que o levariam de volta à Terra. Dedicou aquele tempo à contemplação daquela paisagem que sabia ser muito improvável poder voltar a ver. Tomou de novo consciência da importância daquela missão, do que representava para a humanidade, para a exploração espacial e para ele em particular.</p> <p class="MsoNormal">Sabia que tinha garantido o seu lugar nos livros de história como o primeiro homem a ser <a href="http://www.daviddarling.info/encyclopedia/T/teleportation.html">teletransportado</a> para um lugar longe da Terra, o primeiro homem a estar a mais de trezentos <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Light-Year">anos-luz</a> de casa, contornando os obstáculos impostos à exploração espacial pela impossibilidade de viajar a velocidades superiores ou próximas da <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Speed_of_light">velocidade da luz</a>, resultantes da <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Special_theory_of_relativity">teoria da relatividade</a> de <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Albert_Einstein">Albert Einstein</a>. Era verdade que antes dele várias sondas não tripuladas tinham feito viagens daquele tipo, e que depois das sondas não tripuladas se tinha seguido um pequeno macaco, ele sim digno das honras do primeiro ser vivo a ser teletransportado. Mas também a cadela <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Laika">Laika</a> fora o primeiro ser vivo a viajar para o espaço e no entanto foi <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Gagarin">Yuri Gagarin</a> quem ficou com as honras de primeiro herói espacial.</p> <p class="MsoNormal">O computador de bordo assinala-lhe o início dos procedimentos para o teletransporte de regresso. Ao contrário do primeiro teletransporte, que o tinha levado directamente de uma sala do centro especial para aquele local, a viagem de regresso tinha de ser feita para uma órbita acima da Terra, pois a margem de erro na escolha precisa do local de destino, especialmente àquela distância, não permitia que o regresso fosse feito directamente para o local de onde havia partido.</p> <p class="MsoNormal">Alguns ruídos surdos, uma ligeira vibração na nave e depois tudo volta a estar calmo. Assim tão simples, numa breve fracção de segundo e estava de volta. Olhou pelas várias janelas e para os vários monitores que lhe transmitiam imagens captadas por câmaras no exterior, e que lhe permitiam ter uma visão total à volta da nave, mas não conseguiu encontrar a Terra ou o Sol... Todas as imagens lhe mostravam os típicos pontos de luz das estrelas, mas sem quaisquer sinais da Terra, do Sol ou daquele deslumbrante planeta. Subitamente no ecrã do computador acende-se uma enigmática mensagem de erro…</p> <p class="MsoNormal">(<a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2009/01/o-viajante-parte-ii.html">Continua</a>)</p>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com9tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-23266428304217746072008-12-18T11:42:00.001+00:002008-12-18T11:42:01.773+00:00Questões de Calendário<div xmlns='http://www.w3.org/1999/xhtml'><p class='MsoNormal'>Apenas uma convenção… sim, é apenas uma convenção, como tantas outras, esta forma de medir o <a href='http://en.wikipedia.org/wiki/Time'>tempo</a>. Mas medir o tempo é importante, e é necessário, por isso é perfeitamente natural que se use para esse efeito, como uma das unidades base, o tempo que a <a href='http://en.wikipedia.org/wiki/Earth'>Terra</a> demora a completar uma volta em torno do <a href='http://en.wikipedia.org/wiki/Sun'>Sol</a>. Apesar de a noção de <a href='http://en.wikipedia.org/wiki/Year'>Ano</a> ser muito anterior à descoberta do movimento de <a href='http://en.wikipedia.org/wiki/Planetary_orbit'>translação</a> da Terra em torno do Sol, a verdade é que os vários <a href='http://en.wikipedia.org/wiki/Calendar'>calendários</a> criados pelo homem quase sempre se basearam no ciclo repetitivo das estações e, consequentemente, estão associados a esse movimento.</p> <p class='MsoNormal'>Esta definição, aparentemente simples, implicou, no entanto, várias dificuldades desde os primeiros calendários até ao <a href='http://en.wikipedia.org/wiki/Gregorian_calendar'>Calendário Gregoriano</a> que utilizamos actualmente. Estas dificuldades resultaram do facto de o tempo necessário para a Terra percorrer uma órbita completa em torno do Sol não se poder medir num número inteiro de dias. Mais concretamente, o <a href='http://en.wikipedia.org/wiki/Year#Sidereal.2C_tropical.2C_and_anomalistic_years'>Ano Tropical</a> tem uma duração de 365,24218967 dias, ou 365 dias 5 horas 48 minutos e um pouco mais de 45 segundos. Este facto levou à necessidade da introdução de <a href='http://en.wikipedia.org/wiki/Leap_year'>anos bissextos</a> como forma de compensar a diferença.</p> <p class='MsoNormal'>No entanto, apesar destas correcções, e devido ao facto de o período orbital da Terra <a href='http://en.wikipedia.org/wiki/Gregorian_calendar#Accuracy'>não ser constante</a>, existe a necessidade de, ocasionalmente, introduzir <a href='http://en.wikipedia.org/wiki/Leap_second'>correcções adicionais</a>. Nesse sentido o ano de 2008 terá um <a href='ftp://hpiers.obspm.fr/eop-pc/bul/bulc/leap_second.txt'>segundo adicional</a>, acrescentado nos instantes finais que antecedem a passagem para 2009. Por isso quando fizerem a contagem decrescente de despedida de 2008 e boas vindas de 2009, não se esqueçam de contar da seguinte forma: dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um, um, ZERO!</p> <p class='MsoNormal'>Já agora, seguindo as convenções do Calendário Gregoriano, o <a href='http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/'>Cantinho dos Devaneios</a> faz hoje exactamente um ano, o que, tendo sido 2008 um ano bissexto, equivale a 366 dias. Não que isso tenha alguma especial importância, apenas a consequência de uma convenção…</p></div>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com15tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-14184659012752984402008-12-15T15:12:00.003+00:002008-12-15T15:17:52.722+00:00Pequenos prazeres<p class="MsoNormal">A vida é feita de pequenos prazeres. São estes que, em grande medida, nos fazem felizes.</p><p class="MsoNormal">Por esta razão este Cantinho tem agora um novo vizinho, o <a href="http://cantinhodospequenosprazeres.blogspot.com">Cantinho dos pequenos prazeres</a>, que aguarda a vossa visita.<br /></p>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-3308958384018033722008-12-14T18:13:00.006+00:002008-12-15T15:24:18.929+00:00Quatro pontos brancos<p class="MsoNormal"><br /><img style="margin: 0pt 10px 10px 0pt; float: left; cursor: pointer; width: 202px; height: 320px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj9mQH8LiAX_8hXfV5GmtPZ1XmNOLiWD923cSqrjFVJiCtsYkWLceSOKhbM7wOP6oCZjPsIwOx-RHDsu7AttlKNIIItwFr15lA7SmkWJYSgikNLqdW8uQlOCSP3HIyrnIq2GICqkCHapfU/s320/viagem-1.png" /><br /><img style="margin: 1pt 10px 10px 0pt; width: 189px; height: 320px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiL6h-_iAUDopscyXUTcNJeHAQS0NEbQrqrGj3XdnFPF2hE6rPwBCxiCZCVU_47MtjrJm97rD_3ueHyQCmIGNUxuO8aB4jz60_fjCxCmm1cgDTyVeEEimg2fubIPhoEV51pWRvB5UjGX2o/s320/viagem-2.png" /></p><p class="MsoNormal">No dia em que apresentou o livro em Lisboa, no CCB, o autor referia-se, a certa altura, à grave doença que o atormentou entre fins de 2007 e início de 2008.</p> <p class="MsoNormal">Numa das piores fases da doença lembra-se de te visto quatro pontos brancos. Não, não eram pontos de luz, apenas pontos brancos, quatro pontos brancos em forma de um quadrilátero irregular. Coloca as mãos à sua frente, a cerca de 20 a 30 centímetros uma da outra, com o indicador e o polegar apontando a audiência e formando os contornos da letra ‘C’, os polegares por baixo e os indicadores em cima, com a distância entre os polegares maior que a distância entre os indicadores, formando, com as pontas daqueles quatro dedos, uma réplica do tal quadrilátero irregular.</p> <p class="MsoNormal">“Não sei porquê, nem qual o significado, mas soube que era eu naqueles quatro pontos.” Não terão sido estas, exactamente, as palavras utilizadas pelo autor, que a memória já muitas vezes me atraiçoa, mas foi esta a ideia transmitida. Quatro pontos brancos…</p> <p class="MsoNormal">Na dedicatória do livro pode ler-se “<i style="">A Pilar, que não deixou que eu morresse</i>”. Obrigado Pilar!</p>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-18083361928626754392008-12-04T14:27:00.002+00:002008-12-15T14:17:53.569+00:00O Coleccionador – parte V<div xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml"><p class="MsoNormal">(Continuação de <i style="">O Coleccionador – </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2008/11/o-coleccionador-parte-i.html"><i style="">parte I</i></a>,<i style=""> </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2008/11/o-coleccionador-parte-ii.html"><i style="">parte II</i></a>, <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2008/11/o-coleccionador-parte-iii.html"><i style="">parte III</i></a> e <i style=""><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2008/11/o-coleccionador-parte-iv.html">parte IV</a></i>)</p> <p class="MsoNormal">Ligou a máquina no modo de visualização e o mostrador iluminou-se com a última foto que tinha tirado. Não, não queria ainda ver a última, gostava de rever as fotos pela ordem em que tinham sido tiradas, por isso pressionou mais alguns botões e começou a passar as fotos uma a uma.</p> <p class="MsoNormal">A mulher que sobe apressadamente a avenida, o condutor que gesticula em protesto contra outro condutor, a mulher que corre carregada de sacos para apanhar o autocarro…</p> <p class="MsoNormal">… Senhora Amélia Antunes, gabinete três…</p> <p class="MsoNormal">… a professora que lidera uma fila indiana de crianças, a fila indiana, a criança reguila que teima em sair da fila, a outra professora que fecha a fila indiana, o homem que faz sinal a um táxi, o sem abrigo que dorme indiferente num dos bancos de jardim que ladeiam a avenida…</p> <p class="MsoNormal">… Senhora Joana Mendonça, gabinete um…</p> <p class="MsoNormal">… dois adolescentes que falam animadamente e sem pressa de chegar a casa, o arrumador de carros que faz sinal junto a uma interrupção no contínuo de carros estacionados, o condutor que meio dentro do carro buzina para que lhe venham desimpedir o caminho de saída do local onde estacionou…</p> <p class="MsoNormal">Repentinamente um clarão inundou a sala de espera. Levantou os olhos em direcção à porta de entrada a tempo de ver a silhueta fugaz de um homem que, no corredor do lado de fora da sala, inicia o percurso em direcção à saída do consultório. Reconhece naquela silhueta a mesma cara que ao longo dos últimos dias vira inúmeras vezes nas onze fotos que aquele software tinha identificado no computador de casa.</p> <p class="MsoNormal">Num impulso meteu a máquina fotográfica na mochila e correu em direcção à porta. Estranhou o facto de a mulher sentada dois lugares à sua esquerda também se ter levantado e correr atrás dele, mas para já a sua preocupação era apenas a de alcançar aquele homem. Atravessou a sala, percorreu o corredor em direcção à porta de saída do consultório, galgou os dois lanços de escadas que o separavam da saída do prédio e deteve-se no passeio da avenida. Apenas uma fracção de segundo depois a mulher imobilizou-se ofegante à sua esquerda, enquanto ambos olhavam para um lado e para o outro.</p> <p class="MsoNormal">“Ali!...” disse ele em voz alta, na certeza de que a mulher procurava exactamente o mesmo que ele. Correram os dois pela avenida acima em perseguição daquela figura que se afastava num passo apressado. </p> <p class="MsoNormal">Ao chegar perto do homem gritou-lhe “Espere!” e pegou-lhe no braço esquerdo, fazendo com que ele se virasse.</p> <p class="MsoNormal">Pararam os três encarando-se e medindo-se mutuamente. Ficaram ali imóveis durante alguns segundos, o homem com ar sereno, à espera, e eles os dois ainda ofegantes da perseguição.</p> <p class="MsoNormal">Percebendo que era a ele que cabia quebrar aquele impasse, fez uma última inspiração profunda e perguntou “Diga-me, o que foi fazer ali ao consultório? Também é coleccionador de caras?...”</p> <p class="MsoNormal">O homem olhou para os dois e sorriu. Retirou a pequena máquina fotográfica do bolso, carregou em alguns botões e virou-a de forma a mostrar-lhes a imagem onde os dois apareciam sentados na sala de espera. “Não, não sou coleccionador de caras nem de nomes, sou coleccionador de coleccionadores… e hoje apanhei dois de uma só vez!” Virou as costas e seguiu avenida acima no mesmo passo apressado.</p> <p class="MsoNormal">Fim</p></div>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-5154448546391413182008-11-28T23:38:00.004+00:002008-12-15T14:17:36.968+00:00O Coleccionador – parte IV<div xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml"><p class="MsoNormal">(Continuação de <i style="">O Coleccionador – </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2008/11/o-coleccionador-parte-i.html"><i style="">parte I</i></a>,<i style=""> </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2008/11/o-coleccionador-parte-ii.html"><i style="">parte II</i></a> e <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2008/11/o-coleccionador-parte-iii.html"><i style="">parte III</i></a>)</p> <p class="MsoNormal">Entrou na sala de espera e olhou à volta à procura do local mais reservado. Era a primeira vez que estava naquele consultório, por isso olhou a toda a volta para se aperceber do espaço. Identificou rapidamente o lugar ideal. Por baixo do local onde a televisão estava pendurada havia várias cadeiras livres e isoladas. Era exactamente o que procurava, um local onde poderia tomar as suas notas sem se sentir observada pelas pessoas à volta.</p> <p class="MsoNormal">Ao passar pela mesa no centro da sala pegou numa revista ao acaso. Não que se interessasse por aquele tipo de leitura, mas pelo disfarce que a revista lhe poderia proporcionar se achasse que alguém a observava.</p> <p class="MsoNormal">Poderia ter trazido um livro de casa para aquele mesmo objectivo, mas quando lia gostava de se abstrair por completo do mundo à sua volta e de entrar na narrativa, como se fosse uma personagem invisível da mesma. Não, a leitura não era compatível com o que ia fazer àquele sítio, pois impedi-la-ia de prestar atenção aos nomes anunciados.</p> <p class="MsoNormal">Daquele lugar não poderia assistir ao programa que passava na televisão, mas também não estava interessada em assistir aos concursos onde gente estúpida, era assim que qualificava aquelas pessoas, vinha mostrar a sua ignorância, nem ao humor barato dos apresentadores, ou à música sem gosto dos artistas convidados.</p> <p class="MsoNormal">Há muito que se convencera pertencer à restrita minoria dos que abominavam aquele tipo de programação, da mesma forma que pertencia à ainda mais restrita minoria das pessoas que sentem prazer nas coisas mais simples e insignificantes. Estava plenamente convencida de que ela era uma das poucas excepções que confirmavam as regras formatadas e estereotipadas da sociedade onde tinha a infelicidade de viver. Estava só, mas já se tinha resignado a essa condição.</p> <p class="MsoNormal">Preparou o caderno de apontamentos, pegou no lápis e escreveu a data e o local no topo de uma folha limpa, do lado direito do caderno.</p> <p class="MsoNormal">Ainda não tinha acabado de escrever a data quando, pelo sistema sonoro, uma voz feminina fez o primeiro chamamento, na mesma voz monocórdica que já se tinha habituado a encontrar nestes locais.</p> <p class="MsoNormal">Senhor Joaquim Soares, gabinete dois…</p> <p class="MsoNormal">Um homem entrou na sala e olhou na direcção dela. Desviou o olhar e puxou a revista que tinha apanhado da mesa para cima do caderno e começou a folheá-la. Após alguns breves segundos o homem atravessou a sala e foi sentar-se perto dela, deixando uma cadeira vazia entre eles. Preferia estar sozinha, mas achou que a curta distância que os separava seria suficiente para não se sentir incomodada. Talvez também ele pertencesse àquela mesma restrita minoria… Ficou a observá-lo pelo canto do olho, fingindo prestar atenção à revista.</p> <p class="MsoNormal">Ao vê-lo abrir a mochila imaginou, por momentos, que o veria tirar um caderno de notas e um lápis, e depois escolher uma página limpa do lado direito do caderno para escrever o local e a data… mas não, da mochila saiu uma máquina fotográfica. Não percebia muito de fotografia, nem de equipamento fotográfico, mas pareceu-lhe tratar-se de uma máquina sofisticada. Depois viu-o ligar a máquina e olhar para o mostrador electrónico onde se foram sucedendo imagens que ela não conseguiu distinguir.</p> <p style="text-align: center;" class="MsoNormal" align="center">***</p> <p class="MsoNormal">Entrou na sala de espera do consultório e olhou à volta. Estranhou ver uma pessoa sentada na cadeira que ele próprio costumava escolher sempre que aqui vinha.</p> <p class="MsoNormal">Vinha a esta consulta duas ou três vezes por ano para fazer o acompanhamento daquele seu problema crónico. Não que este problema o incomodasse com essa frequência, mas porque em matéria de saúde há muito que decidira viver de acordo com o princípio de que mais vale prevenir que remediar. Sabia a que sofrimento estaria sujeito se o problema se manifestasse, por isso aqui vinha regularmente duas vezes por ano, ou sempre que algum sintoma o deixava desconfiado.</p> <p class="MsoNormal">Sabia que teria de esperar bastante pela sua vez de ser atendido, apesar de ter chegado pontualmente na hora para que tinha a consulta marcada. Nunca conseguira entender este fenómeno dos consultórios… porque razão se marcava uma hora se depois nunca era cumprida!?... </p> <p class="MsoNormal">Aquele lugar, ocupado por aquela mulher, era, de facto, o lugar que ele preferia. Mas os outros lugares ao lado daquele eram igualmente bons, por isso dirigiu-se para uma cadeira dois lugares à direita daquela mulher que entretanto tinha desviado o olhar para uma revista puxada de baixo de um caderno de notas.</p> <p class="MsoNormal">Olhou para ela enquanto atravessava a sala, interrogando-se se, tal como ele, também ela abominava o tipo de programação das televisões, ou se teria escolhido aquele lugar para poder adiantar algum trabalho ou, quem sabe, para escrever no diário o resumo das mágoas e dos prazeres daquele dia que se aproximava do fim. Talvez fosse isso, e talvez fosse essa a razão pela qual tinha puxado daquela revista, procurando esconder de olhos potencialmente indiscretos as secretas frases escritas no diário.</p> <p class="MsoNormal">Não queria ser indiscreto, nem estava minimamente interessado no que ela pudesse querer escrever, por isso abriu a mochila e retirou a máquina fotográfica. Não, não pretendia fazer fotos ali naquele local, em primeiro lugar porque não conseguiria passar despercebido e em segundo lugar porque as condições de luz da sala de espera o obrigariam a utilizar o flash, e ele sempre detestara aquela súbita explosão de luz artificial. Não, o objectivo era, simplesmente, o de rever as fotos acabadas de fazer naquela grande avenida, em frente ao consultório.</p> <p class="MsoNormal">Naquele dia o patrão estava fora, em viagem de negócios, e o volume de trabalho na empresa não o atormentava especialmente, por isso tinha decidido sair um pouco mais cedo para, antes da hora marcada para a consulta, poder fazer algumas fotos naquele local onde, àquela hora, uma multidão de gente passava apressada no caminho para casa.</p> <p class="MsoNormal">(<a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2008/12/o-coleccionador-parte-v.html">Continua</a>)</p></div>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-64393376073384727382008-11-24T10:44:00.004+00:002008-12-15T14:17:15.621+00:00O Coleccionador – parte III<div xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml"><p class="MsoNormal">(Continuação de <i style="">O Coleccionador – </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2008/11/o-coleccionador-parte-i.html"><i style="">parte I</i></a><i style=""> e </i><a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2008/11/o-coleccionador-parte-ii.html"><i style="">parte II</i></a>)</p> <p class="MsoNormal">Entrou na sala de espera e sentou-se a um canto. Depois preparou o caderno de apontamentos, pegou no lápis e escreveu a data e o local no topo de uma folha limpa, do lado direito do caderno.</p> <p class="MsoNormal">Desde pequenina que nunca gostara de começar assuntos novos nas páginas do lado esquerdo de um caderno. Não que preferisse o lado direito ao esquerdo, mas simplesmente porque não gostava de começar assuntos novos nas costas da folha onde já havia assuntos anteriores. Muitas vezes tinha ouvido os protestos da mãe por causa daquele tipo de desperdícios “<i style="">Não nos podemos dar ao luxo de desperdiçar!... pensas que cavamos o dinheiro?!</i>”. Ainda tentou explicar, mas o único que conseguiu foi um taxativo “<i style="">Se tens espaço livre tens de o usar! Quando ganhares o teu próprio dinheiro logo fazes como te apetecer!”</i>. E assim tinha acontecido, desde que saíra da casa dos pais que se permitia este pequeno desperdício, esta violação da sua rigorosa consciência ecológica.</p> <p class="MsoNormal">Pelo sistema de som da sala de espera ouve-se uma voz feminina em tom monocórdico:</p> <p class="MsoNormal">Senhor Joaquim Gomes, Senhor António Parente, Senhora Dona Ana Marques, Senhor Manuel Gaspar, Senhora Dona Arminda Aires, dirijam-se à sala de triagem…</p> <p class="MsoNormal">Tomou nota dos nomes, sem esquecer o “Senhor” e a “Senhora Dona”. Esboçou um breve sorriso pelo facto de os Senhores não terem o direito de ser Dons.</p> <p class="MsoNormal">Há vários anos que tinha este hábito de frequentar salas de espera, apenas para poder ouvir os nomes das pessoas que são chamadas. Nunca tinha entendido a razão deste fascínio pelos nomes anunciados, mas já tinha desistido de tentar encontrar uma explicação, da mesma forma que também já tinha deixado de se achar louca por causa disso. O que importava era que aquilo lhe dava prazer e isso era quanto lhe bastava. E deste seu prazer nada de mal poderia resultar, quer para ela quer para qualquer outra pessoa, por isso há muito que tinha deixado de se sentir culpada ou envergonhada consigo própria, embora sempre tivesse escolhido manter aquele segredo apenas para ela.</p> <p class="MsoNormal">Não, não lhe bastava tomar conhecimento dos nomes, pois se fosse esse o caso bastaria abrir uma lista telefónica ao acaso. Não, os nomes tinham de ser pronunciados por alguém, anunciados em voz alta, expostos…</p> <p class="MsoNormal">… Menina Joana Melo, gabinete de pediatria, Senhor Rui Peres, sala quatro…</p> <p class="MsoNormal">Este fascínio tinha começado quando era ainda uma adolescente, num dia em que a mãe a levou ao hospital para fazer um curativo num corte que, na sua inexperiência em matéria de tarefas domésticas, tinha feito enquanto descascava umas batatas para o jantar. Ali na sala de espera a enfermeira de bata branca, que de tempos a tempos vinha à sala para chamar três ou quatro nomes, tinha-a feito esquecer as dores do corte e o mau humor da mãe.</p> <p class="MsoNormal">Mas só anos mais tarde, numa ocasião em que teve de ir a um tribunal testemunhar a favor do patrão numa disputa com um fornecedor, é que, ao ouvir a chamada à porta da sala de audiências, se decidiu a explorar melhor aquele fascínio.</p> <p class="MsoNormal">Começou então a frequentar todo o tipo de salas de espera e a tomar nota dos nomes num caderno idêntico aquele que agora tinha em cima do colo. Passou incontáveis horas em hospitais, clínicas, tribunais, conservatórias de registo civil, bancos, etc.</p> <p class="MsoNormal">… Senhora Dona Margarida Janeiro, Senhor Artur Pereira, Senhora Dona Alice Coelho, Senhora Dona Armanda Lopes, é favor dirigirem-se ao balcão de atendimento central…</p> <p class="MsoNormal">A princípio era bastante mais fácil. Não faltavam as salas de espera onde as pessoas eram sempre chamadas pelo nome. Além disso, o exercício da sua actividade profissional levava-a com alguma frequência a serviços públicos onde tinha de esperar pela sua vez antes de ser atendida.</p> <p class="MsoNormal">Nessa altura ainda considerou arranjar um emprego num local daqueles, mas rapidamente desistiu da ideia, não só porque aquele tipo de funções era muito mal pago, mas também porque achou que a atenção dedicada a ouvir os nomes, à medida que fossem sendo chamados, a impediriam de se concentrar no trabalho propriamente dito.</p> <p class="MsoNormal">… Senhora Dona Ana Fernandes, sala dois, Senhora Dona Fernanda Nunes, sala um…</p> <p class="MsoNormal">Depois começaram a aparecer aqueles sistemas de senhas em que as pessoas passavam a ser tratadas como um mero e insignificante número. Até mesmo a voz de chamamento tinha sido substituída por um mostrador electrónico. Detestava aquele tipo de sistemas!</p> <p class="MsoNormal">Agora estava limitada a um reduzido número de locais onde ainda se chamavam as pessoas pelo nome. Além disso, as novas tarefas e as responsabilidades acrescidas que a promoção no trabalho lhe tinha trazido mantinham-na presa ao escritório o dia inteiro. Por isso tinha de se contentar com estas saídas ocasionais ao final do dia.</p> <p class="MsoNormal">… Senhor Jorge Gouveia, Senhor Ricardo Amaral, Senhora Dona Margarida Martins, Senhor Luís Correia, gabinete de triagem…</p> <p class="MsoNormal">Enquanto escrevia os últimos nomes que a voz tinha anunciado no sistema sonoro, foi interrompida por um clarão. Olhou à volta para ver a origem daquele súbito e fugaz impulso de luz, mas não conseguiu encontrar nada de anormal… Teria sido um relâmpago?... Não, o dia estava completamente limpo… talvez um <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Flash_%28photography%29"><i style="">flash</i></a> de uma máquina fotográfica… </p> <p class="MsoNormal">Não soube explicar porquê, mas naquele preciso instante teve a certeza de que tinha mesmo sido um <i style="">flash</i>, e que o alvo fotografado tinha sido ela própria. Sentiu-se incomodada, por isso pegou nas suas coisas, levantou-se e saiu.</p> <p class="MsoNormal"><span style=""> </span>(<a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2008/11/o-coleccionador-parte-iv.html">Continua</a>)</p></div>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-50049611781665961702008-11-13T12:30:00.005+00:002008-12-15T14:17:01.053+00:00O Coleccionador – parte II<div xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml"><p class="MsoNormal">(Continuação de <a style="font-style: italic;" href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2008/11/o-coleccionador-parte-i.html">O Coleccionador – parte I</a>)</p> <p class="MsoNormal">Ficou algum tempo a espiar aquele outro fotógrafo através da objectiva. Não era muito anormal encontrar outros fotógrafos que, tal como ele, gostavam de coleccionar fotos de gente anónima. Não que fosse muito comum, mas já por diversas vezes tinha encontrado outros, e tinha perfeita consciência de que ele não era um caso isolado.</p> <p class="MsoNormal">Nunca se tinha dado ao trabalho de meter conversa com os outros coleccionadores que foi encontrando do outro lado da objectiva. Na primeira vez em que se deu conta que existiam outros fotógrafos como ele ainda considerou meter conversa, mas rapidamente desconsiderou essa possibilidade… por nenhuma razão em particular, simplesmente porque achou que nada teria a ganhar com esse contacto.</p> <p class="MsoNormal">Por isso, não se surpreendeu com a descoberta deste dia. Limitou-se a fotografa-lo na certeza de que o outro também já o teria fotografado, ou ainda o iria fotografar a ele.</p> <p class="MsoNormal">… a senhora que tenta, em vão, arrancar o velho da mesa de jogo, um rapaz que bebe água no bebedouro, outro rapaz que passa na sua bicicleta, a menina acabada de cair no charco de água junto ao bebedouro, o homem que espera encostado a um tronco, a mãe que beija o dedo arranhado de onde se perdeu uma gota de sangue…</p> <p class="MsoNormal">Pensou no novo <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Software">software</a> que tinha instalado no computador de casa e que tinha deixado a executar.</p> <p class="MsoNormal">Há algum tempo que acompanhava a evolução daquele programa, desenvolvido por uma vasta <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Collaboration">comunidade de especialistas</a> no mundo inteiro, e <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Free_software">disponibilizado livremente</a> num modelo de <i style=""><a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Open-source_software">open source</a></i>. No entanto as versões disponíveis até então eram ainda muito rudimentares e, consequentemente, apenas acessíveis a especialistas, classificação na qual ele estava longe de se poder incluir. Mas esta realidade tinha mudado há alguns dias, quando a disponibilização de uma nova versão tinha tornado a instalação e utilização daquele software muito mais fácil e intuitiva.</p> <p class="MsoNormal">… a menina que come um gelado, a senhora que dormita no banco de jardim, a mulher que fala exaltada sobre um qualquer problema, o sem abrigo que mendiga uma esmola, o homem mergulhado na história de um livro e completamente abstraído da agitação à sua volta, a menina com a cara suja do gelado, a mãe da menina do charco que a repreende, a menina do charco que choraminga, mais pela repreensão que pela queda…</p> <p class="MsoNormal">Já por diversas vezes se tinha dado conta que tinha mais de uma foto da mesma pessoa, mas desistira de fazer uma pesquisa mais profunda na sua colecção para identificar mais repetições, pois o elevado número de fotos que tinha tornaria impraticável uma tal tarefa sem a ajuda de alguma forma de automatismo.</p> <p class="MsoNormal">Mas este novo software, com as suas capacidades para identificar características distintivas em imagens de rostos, e a capacidade para comparar essas características num elevado número de imagens, poderia tornar esta tarefa muito mais fácil. Tinha apenas de esperar o tempo necessário para o programa “digerir” todo aquele grande volume de informação.</p> <p class="MsoNormal">… a mãe que tenta limpar a cara suja da menina do gelado, o homem que segura o chapéu que o vento lhe quer levar, a menina que tenta fugir ao lenço molhado com que a mãe lhe quer limpar a cara, a mulher que olha o pedinte enquanto deposita uma moeda na mão estendida, a mulher que tenta compor o cabelo que uma breve e suave rajada de vento tenta descompor…</p> <p class="MsoNormal">A expectativa de encontrar alguns resultados quando chegasse a casa não o estava a deixar concentrar devidamente, por isso deu por terminada a sessão do dia.</p> <p class="MsoNormal">Enquanto arrumava o equipamento na mochila apercebeu-se da câmara do outro fotografo apontada na sua direcção. Sim, aquela seria certamente uma boa altura para o fotografar. Ignorou-o e levantou-se para voltar para casa.</p> <p class="MsoNormal">Assim que entrou em casa dirigiu-se imediatamente, ainda com a mochila nas costas, à secretária onde tinha o computador. Mexeu ligeiramente o <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Mouse_%28computing%29">rato</a> para desactivar o <i style=""><a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Screen_saver">screen saver</a></i> e ver os eventuais resultados do programa.</p> <p class="MsoNormal">A <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Window_%28computing%29">janela</a> principal do programa mostra-lhe algumas pastas com resultados, com a indicação do número de fotografias dentro de cada uma das pastas. A sua atenção centra-se numa pasta com a indicação de que contém onze fotografias.</p> <p class="MsoNormal">“<i style="">Onze!?…</i>” questionou-se em voz alta.</p> <p class="MsoNormal">Abriu rapidamente a pasta e uma nova janela abriu-se para lhe mostrar as miniaturas das onze fotografias. Depois de as analisar uma a uma, não teve dúvidas em concordar serem da mesma pessoa.</p> <p class="MsoNormal">(<a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2008/11/o-coleccionador-parte-iii.html">Continua</a>)</p></div>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-47444457902483772132008-11-03T01:59:00.004+00:002008-12-15T14:16:30.097+00:00O Coleccionador – parte I<div xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml"><p class="MsoNormal">Olhou à volta para procurar um local apropriado. Estudou as várias possibilidades, ponderando os ângulos de visibilidade, a proximidade das pessoas, as condições de luz e a discrição que cada local lhe proporcionaria.</p> <p class="MsoNormal">Sim, aquele banco isolado na sombra do pinheiro era um local ideal. Sentou-se e começou a preparar o equipamento. Retirou e esticou o <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Monopod">mono-pé</a>, montou a lente no corpo da máquina e depois a máquina no mono-pé. Ligou a máquina, fez alguns ajustes e preparou-se para os primeiros disparos.</p> <p class="MsoNormal">Apontou aleatoriamente, ajustando a lente e fez uma primeira <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Photography">foto</a>. Estudou o resultado no mostrador da máquina para se certificar que tinha escolhido as configurações de <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Shutter_speed">velocidade</a> e <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Aperture">abertura</a> apropriadas, depois, satisfeito com o resultado, voltou a apontar a máquina e foi disparando, captando as mais variadas expressões daquela gente anónima.</p> <p class="MsoNormal">O homem que entra no parque, o funcionário que cuida de um canteiro, o jovem que corre atrás de uma bola, a mulher que discute com o homem que entra no parque, uma mulher que fala com outra, a mulher que ouve a outra que fala com ela…</p> <p class="MsoNormal">Há mais de quinze anos que descobrira aquele fascínio pelo rosto humano e pelas suas inúmeras expressões. Tinha começado ainda com a sua velha <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Camera">máquina analógica</a>, captando os primeiros instantâneos na <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Film_camera">película</a> comprada a metro no fotógrafo vizinho do prédio onde vivia. Recordava com alguma saudade aquele tempo e a excitação e expectativa para ver o resultado, primeiro no <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Negative_%28photography%29">negativo</a> revelado da película, e depois no <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Photographic_paper">positivo impresso</a>.</p> <p class="MsoNormal">Agora, com a <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Digital_camera">máquina digital</a>, tudo era mais simples. Podia ver o resultado quase imediatamente e, dependendo da capacidade do <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Digital_camera#Image_data_storage">cartão de memória</a>, podia ficar horas e horas a disparar, sem ter de se preocupar com a troca do rolo. Depois, já em casa, a passagem das fotos para o computador abria-lhe todo um novo mundo de possibilidades, tanto no que diz respeito ao arquivo, como ao nível dos <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Photoshop">processamentos</a> que poderia aplicar às imagens.</p> <p class="MsoNormal">Lembrou-se daquele novo software que tinha deixado a executar no computador de casa… teria alguns resultados quando chegasse a casa?...</p> <p class="MsoNormal">... a menina de cabelos ao vento no baloiço, um jovem que olha a sua namorada no intervalo entre dois beijos apaixonados, um velho que joga um trunfo na mesa da sueca, uma criança que atira um punhado de areia na direcção de um qualquer monstro imaginário, o pai da menina empurrando o baloiço, uma mãe que ampara o seu filhote enquanto este ensaia os primeiros passos, um beijo apaixonado…</p> <p class="MsoNormal">Há muito que deixara de se sentir uma espécie de ladrão, roubando e guardando aquelas breves fracções de segundo. A princípio a falta de uma lente apropriada, obrigava-o a aproximar-se bastante das pessoas, o que normalmente dava origem às mais variadas reacções. Muitas vezes teve de fugir para evitar a fúria dos seus alvos, como se fosse um crime captar e registar aqueles breves raios de luz.</p> <p class="MsoNormal">Nunca conseguira compreender aquelas reacções. Afinal, os <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Light">raios de luz</a> que captava com a sua câmara já não pertenciam a ninguém, já tinham abandonado as caras daquelas pessoas em direcção a um qualquer obstáculo, ou em direcção ao infinito. E no entanto as pessoas reagiam como se lhes estivesse a roubar algo muito precioso.</p> <p class="MsoNormal">Além disso, ele gostava de captar expressões genuínas e naturais, mas as pessoas, ao aperceberem-se de que estavam a ser fotografadas, quando não reagiam violentamente, tinham a irritante tendência de fazer pose, esboçando expressões estereotipadas que eram exactamente o oposto daquilo que procurava.</p> <p class="MsoNormal">Por estas razões tinha investido na compra de uma <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Photographic_lens">lente</a> com uma <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Focal_length">distância focal</a> maior, e dera por bem empregue o dinheiro gasto, pois passara a poder fotografar à vontade a uma distância muito maior, à qual ninguém dava por ele e, dessa forma, podia captar as expressões genuínas dos seus alvos.</p> <p class="MsoNormal">… O pai que chama o filho com as mãos em concha em torno da boca, uma jovem de olhos fechados e auscultadores nas orelhas que aquece ao sol, um bebé que dorme no seu carrinho de rua, um filho que corre fingindo não ouvir o chamamento do pai, um velho que vê a sua manilha cair no ás do adversário de jogo, uma criança que chora a gota de sangue perdida no arranhão, um outro fotógrafo escondido num local sombrio…</p> <p class="MsoNormal">(<a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2008/11/o-coleccionador-parte-ii.html">Continua</a>)</p></div>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-92109294585569505482008-10-19T01:57:00.003+01:002008-12-15T14:18:56.781+00:00Quase-vida – parte II<p class="MsoNormal">(continuação de <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2008/10/quase-vida-parte-i.html"><i style="">Quase-vida – parte I</i></a>)</p> <p class="MsoNormal">O reboque ocupava-lhe agora todo o campo de visão, escondendo-lhe o resto do mundo, escondendo-o do olhar dos que à volta assistiam à cena, no horror de saberem que poderiam ser eles a estar ali naquele mesmo local a enfrentar aquele mesmo destino mas, ao mesmo tempo, aliviados por lhe terem escapado.</p> <p class="MsoNormal">Então, repentinamente, a imagem do reboque desapareceu dando lugar à imagem de um caixão, despido de quaisquer símbolos religiosos, que dois desconhecidos deixam deslizar, com o auxílio de cordas, para dentro de um buraco aberto no chão.</p> <p class="MsoNormal">A imagem desloca-se agora um pouco, mostrando uma mulher de joelhos, abraçada a três crianças, numa mancha de luto sobressaindo do verde do relvado. Uma fila de gente que ele não consegue identificar, espera a sua vez para ir, por momentos, aumentar aquela mancha de luto que permanece imóvel e silenciosa no verde do relvado, enquanto os dois desconhecidos se desfazem das cordas para, com o auxílio de uma pá e de uma enxada, começarem a devolver ao buraco aberto no chão a terra arrancada horas antes à força de picareta.</p> <p class="MsoNormal">A imagem mudou repentinamente. Reconheceu a sala da sua casa, embora o mobiliário e a cor das paredes estivessem diferentes. Pela porta, vinda do corredor, vê entrar na sala a figura de um rapaz. Parece-lhe reconhecer o seu filho mais velho, mas acha-o diferente… percebe então que este não é o filho mais velho, mas sim o irmão, pouco menos de dois anos mais novo. Antes que pudesse perceber o que se estava a passar entra na sala outro rapaz, um pouco mais alto, e no qual reconhece, agora sim, a cara do filho mais velho. Enquanto os dois rapazes se dirigem para o sofá, entra na sala uma figura que reconhece ser da filha, a mais nova dos três, também ela bastante mais crescida do que quando ele a vira pela última vez.</p> <p class="MsoNormal">Enquanto se sentam no sofá ouve a voz do mais velho dizer “Mãe, já arrumamos os quartos, vamos ver um pouco de televisão”. De outro local da casa, uma voz que ele não teve dificuldade em reconhecer responde “Está bem, o almoço está quase…”.</p> <p class="MsoNormal">Centrou a sua atenção no trio sentado no sofá, deviam ter passado pelo menos dois anos desde o dia daquela outra imagem onde os vira fundidos na mancha de luto sobre o verde do relvado. Mas ao contrário do que tinha visto nessa outra imagem, nesta não havia sinais de tristeza.</p> <p class="MsoNormal">A imagem da sala desvanece-se para dar lugar a uma sucessão de novas imagens, as quais lhe aparecem em catadupa, apenas pequenos excertos uns a seguir aos outros, pedaços da vida dos filhos ao longo do seu crescimento. À frente dos seus olhos vê passarem-se três vidas, às quais se juntam novas vidas de netos e netas que apenas conhecerão aquele avô através das fotografias gastas no velho álbum de família… Vidas vulgares, mas vidas longas e globalmente felizes…</p> <p class="MsoNormal">Sentiu-se satisfeito e sem hesitações fechou os olhos.</p> <p class="MsoNormal">Já em cima da maca, o bombeiro corre o fecho do saco, escondendo aquele corpo acabado de resgatar do amontoado de destroços. Já tinha perdido a conta ao número de corpos que, ao longo de vários anos, ajudara a resgatar de carros acidentados, por isso já há muito que deixara de se impressionar com este tipo de situações. Mas havia alguma coisa diferente neste caso… não sabia bem o quê… voltou a abrir um pouco o fecho, apenas o suficiente para olhar de novo para aquela cara ensanguentada. E foi então que viu, por detrás dos cortes e das manchas de sangue, um sorriso e uma estranha expressão de felicidade. Voltou a fechar o fecho e empurrou a maca para dentro da ambulância.</p> <p class="MsoNormal">(com possível continuação… numa outra dimensão…)</p>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-58090854061954675852008-10-06T23:37:00.002+01:002008-12-15T14:18:34.988+00:00Quase-vida – parte I<p class="MsoNormal">Soube naquele preciso instante que ia morrer. Assim, sem mais, de forma completamente inesperada e ainda tão jovem…</p> <p class="MsoNormal">O reboque do camião deslizava, desgovernado, na sua direcção e não tinha como fugir do seu caminho antes de ficar esmagado contra a parede atrás de si. Só um grande milagre o poderia salvar desta situação, mas ele nunca acreditara em milagres, e também não se achava merecedor da misericórdia de algum deus em cuja existência nunca conseguira acreditar.</p> <p class="MsoNormal">Ao menos seria tudo muito rápido, o sofrimento seria muito breve ou, quem sabe, talvez fosse tudo tão rápido que não chegaria a sentir qualquer dor. O sofrimento maior não seria o da dor física, mas o da dor de estar consciente daquele inevitável destino naqueles últimos instantes.</p> <p class="MsoNormal">Sempre desejara morrer assim, de uma forma rápida, sem sofrimento, sem aquela degradação gradual tão típica do envelhecimento e, muito especialmente, sem perda de lucidez. Mas nunca imaginara que a morte chegasse assim tão cedo, ainda com tanta vontade de viver, com tantas lutas para travar e tantos sonhos para realizar…<span style="background: yellow none repeat scroll 0% 0%; -moz-background-clip: -moz-initial; -moz-background-origin: -moz-initial; -moz-background-inline-policy: -moz-initial;"><o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal">Pensou na mulher... que seria dela, de repente com toda a responsabilidade de educar e acompanhar os três filhos órfãos de pai?... “órfãos!”… aquela palavra abateu-se sobre ele esmagando-o com uma força maior que aquela que havia de lhe tirar a vida dentro de breves instantes. Deu-se conta que não poderia acompanhar o crescimento daqueles três pequenos seres que ele amava acima de tudo na vida.</p> <p class="MsoNormal">Sentiu uma repentina e intensa raiva! Não era justo! Ele que sempre vivera tão intensamente o papel de pai, via-se assim privado desse papel de uma forma tão abrupta! Que seria deles agora?!...</p> <p class="MsoNormal">Esforçou-se por relembrar cada detalhe dos últimos instantes em que os tinha visto naquela mesma manhã, há pouco mais de uma hora, quando os deixara à porta da escola.</p> <p class="MsoNormal">O reboque estava cada vez mais perto, esgotando aqueles breves instantes que lhe restavam…</p> <p class="MsoNormal">Estranhou a velocidade com que todos aqueles pensamentos se lhe sucediam no seu cérebro, como se tudo à sua volta se desenrolasse agora em câmara lenta. Talvez fosse mesmo assim, talvez o cérebro, na percepção da proximidade do seu fim, tentasse aproveitar ao máximo os últimos instantes, trabalhando a toda a velocidade. Talvez fosse esta a justificação para as <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Near_death_experience">experiências de quase-morte</a> relatadas por pessoas que tendo estado à beira da morte, lhe escaparam por muito pouco e nos últimos instantes.</p> <p class="MsoNormal">Questionou-se sobre se também ele iniciaria uma viagem por um túnel azul em direcção a uma luz intensa, se se sentiria flutuar acima do seu corpo esmagado, ou se veria <a href="http://en.wikipedia.org/wiki/Life_review">toda a sua vida passar-lhe em frente aos olhos</a>.</p> <p class="MsoNormal">Pensou na estrema inutilidade daquela última possibilidade… de que lhe servia rever a vida que ele próprio tinha vivido, como se não soubesse como a tinha vivido, como se não tivesse sido ele próprio a vivê-la, como se ele não soubesse o que tinha feito bem e o que tinha feito mal… seria bem melhor se pudesse usar esses tão breves, mas preciosos, instantes para rever os filhos. Daria tudo por esta troca! Não daria a vida porque essa já nada valia, mas daria a alma a um qualquer demónio… mas ele nunca acreditara em demónios!</p> <p class="MsoNormal">(<a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2008/10/continuao-de-quase-vida-parte-i-o.html">continua</a>)</p>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-36986111362604972432008-09-26T23:11:00.003+01:002008-12-15T14:20:16.211+00:00A Criação de Deus – parte III<div xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml"><p class="MsoNormal">(continuação de <i>A Criação de Deus – <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2008/07/criao-de-deus-parte-ii.html">parte II</a></i>)</p> <p class="MsoNormal">Chegaram finalmente aquele local onde todos os dias subiam para planear o dia de caça. Dali podiam ver, lá em baixo, uma vasta área onde vários animais costumavam alimentar-se. E dali podiam delinear os planos para matar e levar para a caverna um daqueles animais.</p> <p class="MsoNormal">E hoje, depois do fracasso da caçada do dia anterior, era especialmente importante conseguirem voltar para a caverna com alguma coisa que os pudesse compensar da fome mal disfarçada com os poucos alimentos reunidos pelas mulheres e pelos jovens.</p> <p class="MsoNormal">Acercou-se do limiar do rochedo e ali se deixou ficar a olhar aquele espaço, enquanto os outros começavam a discutir as melhores formas de prosseguir o dia… também ele costumava participar nestas discussões, mas neste dia, depois dos acontecimentos do dia anterior e dos pensamentos, dúvidas e receios da noite, preferiu ficar ali, de olhar vago, respirando o ar ainda fresco do início do dia.</p> <p class="MsoNormal">Vieram-lhe à memória as imagens daquele jovem deitado no chão da caverna… a recordação daquela estranha e dolorosa sensação que o tinha atormentado durante todo o dia e que, sabia-o, em muito tinha contribuído para o fracasso da caçada… a recordação da alegria que sentira quando, ao voltar à caverna, tinha encontrado o jovem já bastante melhor… a noite de guarda… as pequenas luzes no céu escuro… a grande luz que não tinha aparecido nessa noite… a grande luz que trouxera o dia e que agora o aquecia…</p> <p class="MsoNormal">Estes pensamentos foram interrompidos, não pela acesa discussão atrás de si, mas por uma quase imperceptível movimentação na vegetação lá em baixo. Agachou-se no limite do rochedo para melhor inspeccionar a zona, não que esperasse encontrar ali algum alvo de caça, ou que, ainda influenciado pela sua inesperada tarefa de guarda na noite anterior, temesse uma qualquer ameaça… não havia uma razão em particular, apenas a mais simples das curiosidades.</p> <p class="MsoNormal">A princípio não conseguiu detectar qualquer indício, mas alguns instantes depois um novo movimento denunciou-lhe o corpo de uma fera, tão fundida com a vegetação que só o movimento a tornou visível. Sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo, não porque temesse um ataque daquela fera, pois sabia bem que nada se atreveria a atacar um grupo tão grande, mas por se tratar de uma fera igual aquela que ele havia enfrentado, há não muito tempo, para defender aquele mesmo jovem, e que quase lhe arrancara um dos braços. Sem se dar conta agarrou o braço, no sítio onde agora havia uma enorme cicatriz, como se tivesse ficado mais intensa aquela mesma dor que sempre o acompanhava e à qual já quase se habituara. Depois, esquecendo de novo a dor do braço, olhou para a pele que lhe cobria o corpo, a mesma pele que antes cobrira o corpo da fera que o atacara e que, desde então, ele fazia questão de usar sempre.</p> <p class="MsoNormal">Um movimento mais brusco lá em baixo chamou-lhe de novo a atenção… a fera parecia estar a atacar algum animal… olhou melhor e viu, então, uma cria toda encolhida, vergada pelo medo dos dentes bem afiados e pelo rugido da mãe. Não era a primeira vez que assistia a situações destas, em que um animal utilizava a sua força e o seu poder contra a sua própria cria. No seu próprio grupo era frequente os mais velhos fazerem o mesmo em relação aos jovens, e ele próprio já o tinha feito. Lembrava-se também, ainda que vagamente, de várias situações em que ele mesmo, ainda jovem, tinha também sido o alvo deste tipo de comportamento.</p> <p class="MsoNormal">Sabia que o objectivo daquela fera não era o de ferir a sua própria cria, muito pelo contrário, sabia que este tipo de situação só poderia ser justificado pelo facto de a cria ter feito algo de errado, e esta era a forma de lhe mostrar isso. Não, o objectivo não era atacar, o objectivo era outro… não sabia bem como classificar este outro objectivo, pois não tinha, no seu ainda rudimentar vocabulário, qualquer palavra que permitisse traduzir correctamente o que estava a ver. Por momentos questionou-se sobre aquele estranho facto de a mesma força poder ser usada tanto para atacar como para aquele outro objectivo, o qual, apesar de não saber como classificar, sabia ser o oposto do primeiro. </p> <p class="MsoNormal">Pensou como seria bom se ele próprio continuasse a ter alguém que tomasse conta dele, que o protegesse dos perigos e dos seus medos… alguém ou alguma coisa… ficou ali bloqueado com aquele desejo… não sabia porquê, mas não conseguia pensar noutra coisa… e foi então que teve aquela ideia!... e se houvesse mesmo alguém?... ou alguma coisa?...</p> <p style="text-align: center;" class="MsoNormal" align="center">***</p> <p class="MsoNormal">E foi assim que, pela primeira vez, o homem criou Deus, um Deus à imagem das suas necessidades, das suas dúvidas e dos seus medos.</p> <p class="MsoNormal">Talvez não tenha sido desta forma… talvez não tenha sido de uma forma muito diferente…</p></div>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-1500256912705756432.post-27371028403479777652008-07-31T00:01:00.003+01:002008-12-15T14:19:52.639+00:00A Criação de Deus – parte II<div xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml">(continuação de <i>A Criação de Deus – <a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2008/07/criao-de-deus-parte-i_10.html">parte I</a></i>)<p>Não sabia porque razão não conseguia adormecer e entrar naquele estranho mundo em que mergulhava todas as noites.<br /></p><p class="MsoNormal">Não era o frio que lhe tirava o sono, pois a época do frio já tinha passado e o ligeiro arrefecimento da noite era facilmente derrotado pelas peles que usava para cobrir o corpo. Também não era o calor porque a época do calor ainda estava para chegar e as noites quentes da caverna nunca o eram o suficiente para impedir o descanso. Seria portanto outra a desconhecida razão para a falta do desejado descanso.</p>Por mais que tentasse fechar os olhos e esvaziar o pensamento, este acabava sempre por arrastá-lo para um outro mundo não menos estranho, um mundo de lembranças, de dúvidas e de medos.<br /><p class="MsoNormal">Levantou-se e dirigiu-se à entrada da caverna, onde o companheiro de serviço permanecia atento a todos os movimentos e a todos os ruídos que enchiam a noite, pronto para dar o alarme ao menor sinal de que algum perigo se aproximava. O outro, na surpresa de ouvir de dentro da caverna os ruídos denunciadores de movimentações suspeitas que temia ouvir vindos do lado de fora, voltou-se repentinamente de pau levantado, pronto para enfrentar aquela inesperada ameaça. Ao aperceber-se da silhueta no escuro da caverna baixou o pau e, com um breve urro, voltou a sua atenção de novo para a noite.</p>Foi colocar-se ao lado do outro, escutando a noite e olhando o escuro do céu e os pequenos pontos de luz que o enchiam. O outro, entendendo neste comportamento uma inesperada rendição do seu turno de guarda, virou-se para dentro da caverna e, com um último urro, entrou e dirigiu-se para o local que normalmente ocupava quando dormia.<br /><p class="MsoNormal">Ali ficou atento à noite, empenhado na sua nova missão de guarda… olhou de novo o céu recheado daquelas pequenas luzes, algumas mais nítidas, outras quase imperceptíveis, outras ainda que pareciam apagar-se para logo de seguida se voltarem a acender.</p> <p class="MsoNormal">Não tinha aparecido hoje aquela outra luz, maior e mais intensa, que uma vezes aparecia outras vezes não, umas vezes aparecia inteira, outras vezes aparecia diminuída e chegava mesmo a ser apenas uma linha quase imperceptível, como se fosse uma fera escondida à espreita e à espera de saltar em cima de qualquer coisa que passasse por perto e de que pudesse alimentar-se… Não estava nesta noite essa outra luz, ou talvez estivesse escondida, tão escondida que nem mesmo se conseguia ver aquela quase imperceptível linha… estremeceu ao pensar que podia ser ele o observado, que poderia ser ele a preza prestes a ser caçada…</p> <p class="MsoNormal">O que seria essa estranha luz que hoje não tinha aparecido?... o que seriam todas aquelas outras pequenas luzes?... e o que seria aquela outra luz muito mais forte que levava a escuridão e lhes fazia chegar o dia?...</p> <p class="MsoNormal">Um ruído suspeito nas proximidades da caverna fê-lo abandonar estes pensamentos… escutou um pouco mais… podia ser apenas um pequeno animal insignificante, poderia ser um animal que, depois de caçado, lhes traria alimento, mas a noite escura também podia esconder alguma coisa bastante mais perigosa, por isso não hesitou e começou aos berros, e a bater com paus nas rochas à volta da entrada. Num instante vários outros se vieram juntar ao alarido e várias pedras foram lançadas em todas as direcções. Depois, quase repentinamente, calaram-se de novo para escutarem o súbito silêncio da noite e ali ficaram, também em silêncio, à escuta do mais pequeno e insignificante sinal até que, aos poucos, o ruído da noite foi retomando a normalidade. Na falta de novos sinais ameaçadores, todos foram voltando para os seus lugares de descanso deixando na entrada da caverna o mesmo imprevisto guarda.</p> <p class="MsoNormal">Não tardou a voltar aos mesmos pensamentos e às mesmas dúvidas…</p> <p class="MsoNormal">(<a href="http://cantinhodosdevaneios.blogspot.com/2008/09/criao-de-deus-parte-iii.html">continua</a>)</p></div>Devaneantehttp://www.blogger.com/profile/00021795721874426197noreply@blogger.com8