(Continuação de O Coleccionador – parte I, parte II e parte III)
Entrou na sala de espera e olhou à volta à procura do local mais reservado. Era a primeira vez que estava naquele consultório, por isso olhou a toda a volta para se aperceber do espaço. Identificou rapidamente o lugar ideal. Por baixo do local onde a televisão estava pendurada havia várias cadeiras livres e isoladas. Era exactamente o que procurava, um local onde poderia tomar as suas notas sem se sentir observada pelas pessoas à volta.
Ao passar pela mesa no centro da sala pegou numa revista ao acaso. Não que se interessasse por aquele tipo de leitura, mas pelo disfarce que a revista lhe poderia proporcionar se achasse que alguém a observava.
Poderia ter trazido um livro de casa para aquele mesmo objectivo, mas quando lia gostava de se abstrair por completo do mundo à sua volta e de entrar na narrativa, como se fosse uma personagem invisível da mesma. Não, a leitura não era compatível com o que ia fazer àquele sítio, pois impedi-la-ia de prestar atenção aos nomes anunciados.
Daquele lugar não poderia assistir ao programa que passava na televisão, mas também não estava interessada em assistir aos concursos onde gente estúpida, era assim que qualificava aquelas pessoas, vinha mostrar a sua ignorância, nem ao humor barato dos apresentadores, ou à música sem gosto dos artistas convidados.
Há muito que se convencera pertencer à restrita minoria dos que abominavam aquele tipo de programação, da mesma forma que pertencia à ainda mais restrita minoria das pessoas que sentem prazer nas coisas mais simples e insignificantes. Estava plenamente convencida de que ela era uma das poucas excepções que confirmavam as regras formatadas e estereotipadas da sociedade onde tinha a infelicidade de viver. Estava só, mas já se tinha resignado a essa condição.
Preparou o caderno de apontamentos, pegou no lápis e escreveu a data e o local no topo de uma folha limpa, do lado direito do caderno.
Ainda não tinha acabado de escrever a data quando, pelo sistema sonoro, uma voz feminina fez o primeiro chamamento, na mesma voz monocórdica que já se tinha habituado a encontrar nestes locais.
Senhor Joaquim Soares, gabinete dois…
Um homem entrou na sala e olhou na direcção dela. Desviou o olhar e puxou a revista que tinha apanhado da mesa para cima do caderno e começou a folheá-la. Após alguns breves segundos o homem atravessou a sala e foi sentar-se perto dela, deixando uma cadeira vazia entre eles. Preferia estar sozinha, mas achou que a curta distância que os separava seria suficiente para não se sentir incomodada. Talvez também ele pertencesse àquela mesma restrita minoria… Ficou a observá-lo pelo canto do olho, fingindo prestar atenção à revista.
Ao vê-lo abrir a mochila imaginou, por momentos, que o veria tirar um caderno de notas e um lápis, e depois escolher uma página limpa do lado direito do caderno para escrever o local e a data… mas não, da mochila saiu uma máquina fotográfica. Não percebia muito de fotografia, nem de equipamento fotográfico, mas pareceu-lhe tratar-se de uma máquina sofisticada. Depois viu-o ligar a máquina e olhar para o mostrador electrónico onde se foram sucedendo imagens que ela não conseguiu distinguir.
***
Entrou na sala de espera do consultório e olhou à volta. Estranhou ver uma pessoa sentada na cadeira que ele próprio costumava escolher sempre que aqui vinha.
Vinha a esta consulta duas ou três vezes por ano para fazer o acompanhamento daquele seu problema crónico. Não que este problema o incomodasse com essa frequência, mas porque em matéria de saúde há muito que decidira viver de acordo com o princípio de que mais vale prevenir que remediar. Sabia a que sofrimento estaria sujeito se o problema se manifestasse, por isso aqui vinha regularmente duas vezes por ano, ou sempre que algum sintoma o deixava desconfiado.
Sabia que teria de esperar bastante pela sua vez de ser atendido, apesar de ter chegado pontualmente na hora para que tinha a consulta marcada. Nunca conseguira entender este fenómeno dos consultórios… porque razão se marcava uma hora se depois nunca era cumprida!?...
Aquele lugar, ocupado por aquela mulher, era, de facto, o lugar que ele preferia. Mas os outros lugares ao lado daquele eram igualmente bons, por isso dirigiu-se para uma cadeira dois lugares à direita daquela mulher que entretanto tinha desviado o olhar para uma revista puxada de baixo de um caderno de notas.
Olhou para ela enquanto atravessava a sala, interrogando-se se, tal como ele, também ela abominava o tipo de programação das televisões, ou se teria escolhido aquele lugar para poder adiantar algum trabalho ou, quem sabe, para escrever no diário o resumo das mágoas e dos prazeres daquele dia que se aproximava do fim. Talvez fosse isso, e talvez fosse essa a razão pela qual tinha puxado daquela revista, procurando esconder de olhos potencialmente indiscretos as secretas frases escritas no diário.
Não queria ser indiscreto, nem estava minimamente interessado no que ela pudesse querer escrever, por isso abriu a mochila e retirou a máquina fotográfica. Não, não pretendia fazer fotos ali naquele local, em primeiro lugar porque não conseguiria passar despercebido e em segundo lugar porque as condições de luz da sala de espera o obrigariam a utilizar o flash, e ele sempre detestara aquela súbita explosão de luz artificial. Não, o objectivo era, simplesmente, o de rever as fotos acabadas de fazer naquela grande avenida, em frente ao consultório.
Naquele dia o patrão estava fora, em viagem de negócios, e o volume de trabalho na empresa não o atormentava especialmente, por isso tinha decidido sair um pouco mais cedo para, antes da hora marcada para a consulta, poder fazer algumas fotos naquele local onde, àquela hora, uma multidão de gente passava apressada no caminho para casa.
(Continua)