segunda-feira, 24 de novembro de 2008

O Coleccionador – parte III

(Continuação de O Coleccionador – parte I e parte II)

Entrou na sala de espera e sentou-se a um canto. Depois preparou o caderno de apontamentos, pegou no lápis e escreveu a data e o local no topo de uma folha limpa, do lado direito do caderno.

Desde pequenina que nunca gostara de começar assuntos novos nas páginas do lado esquerdo de um caderno. Não que preferisse o lado direito ao esquerdo, mas simplesmente porque não gostava de começar assuntos novos nas costas da folha onde já havia assuntos anteriores. Muitas vezes tinha ouvido os protestos da mãe por causa daquele tipo de desperdícios “Não nos podemos dar ao luxo de desperdiçar!... pensas que cavamos o dinheiro?!”. Ainda tentou explicar, mas o único que conseguiu foi um taxativo “Se tens espaço livre tens de o usar! Quando ganhares o teu próprio dinheiro logo fazes como te apetecer!”. E assim tinha acontecido, desde que saíra da casa dos pais que se permitia este pequeno desperdício, esta violação da sua rigorosa consciência ecológica.

Pelo sistema de som da sala de espera ouve-se uma voz feminina em tom monocórdico:

Senhor Joaquim Gomes, Senhor António Parente, Senhora Dona Ana Marques, Senhor Manuel Gaspar, Senhora Dona Arminda Aires, dirijam-se à sala de triagem…

Tomou nota dos nomes, sem esquecer o “Senhor” e a “Senhora Dona”. Esboçou um breve sorriso pelo facto de os Senhores não terem o direito de ser Dons.

Há vários anos que tinha este hábito de frequentar salas de espera, apenas para poder ouvir os nomes das pessoas que são chamadas. Nunca tinha entendido a razão deste fascínio pelos nomes anunciados, mas já tinha desistido de tentar encontrar uma explicação, da mesma forma que também já tinha deixado de se achar louca por causa disso. O que importava era que aquilo lhe dava prazer e isso era quanto lhe bastava. E deste seu prazer nada de mal poderia resultar, quer para ela quer para qualquer outra pessoa, por isso há muito que tinha deixado de se sentir culpada ou envergonhada consigo própria, embora sempre tivesse escolhido manter aquele segredo apenas para ela.

Não, não lhe bastava tomar conhecimento dos nomes, pois se fosse esse o caso bastaria abrir uma lista telefónica ao acaso. Não, os nomes tinham de ser pronunciados por alguém, anunciados em voz alta, expostos…

… Menina Joana Melo, gabinete de pediatria, Senhor Rui Peres, sala quatro…

Este fascínio tinha começado quando era ainda uma adolescente, num dia em que a mãe a levou ao hospital para fazer um curativo num corte que, na sua inexperiência em matéria de tarefas domésticas, tinha feito enquanto descascava umas batatas para o jantar. Ali na sala de espera a enfermeira de bata branca, que de tempos a tempos vinha à sala para chamar três ou quatro nomes, tinha-a feito esquecer as dores do corte e o mau humor da mãe.

Mas só anos mais tarde, numa ocasião em que teve de ir a um tribunal testemunhar a favor do patrão numa disputa com um fornecedor, é que, ao ouvir a chamada à porta da sala de audiências, se decidiu a explorar melhor aquele fascínio.

Começou então a frequentar todo o tipo de salas de espera e a tomar nota dos nomes num caderno idêntico aquele que agora tinha em cima do colo. Passou incontáveis horas em hospitais, clínicas, tribunais, conservatórias de registo civil, bancos, etc.

… Senhora Dona Margarida Janeiro, Senhor Artur Pereira, Senhora Dona Alice Coelho, Senhora Dona Armanda Lopes, é favor dirigirem-se ao balcão de atendimento central…

A princípio era bastante mais fácil. Não faltavam as salas de espera onde as pessoas eram sempre chamadas pelo nome. Além disso, o exercício da sua actividade profissional levava-a com alguma frequência a serviços públicos onde tinha de esperar pela sua vez antes de ser atendida.

Nessa altura ainda considerou arranjar um emprego num local daqueles, mas rapidamente desistiu da ideia, não só porque aquele tipo de funções era muito mal pago, mas também porque achou que a atenção dedicada a ouvir os nomes, à medida que fossem sendo chamados, a impediriam de se concentrar no trabalho propriamente dito.

… Senhora Dona Ana Fernandes, sala dois, Senhora Dona Fernanda Nunes, sala um…

Depois começaram a aparecer aqueles sistemas de senhas em que as pessoas passavam a ser tratadas como um mero e insignificante número. Até mesmo a voz de chamamento tinha sido substituída por um mostrador electrónico. Detestava aquele tipo de sistemas!

Agora estava limitada a um reduzido número de locais onde ainda se chamavam as pessoas pelo nome. Além disso, as novas tarefas e as responsabilidades acrescidas que a promoção no trabalho lhe tinha trazido mantinham-na presa ao escritório o dia inteiro. Por isso tinha de se contentar com estas saídas ocasionais ao final do dia.

… Senhor Jorge Gouveia, Senhor Ricardo Amaral, Senhora Dona Margarida Martins, Senhor Luís Correia, gabinete de triagem…

Enquanto escrevia os últimos nomes que a voz tinha anunciado no sistema sonoro, foi interrompida por um clarão. Olhou à volta para ver a origem daquele súbito e fugaz impulso de luz, mas não conseguiu encontrar nada de anormal… Teria sido um relâmpago?... Não, o dia estava completamente limpo… talvez um flash de uma máquina fotográfica…

Não soube explicar porquê, mas naquele preciso instante teve a certeza de que tinha mesmo sido um flash, e que o alvo fotografado tinha sido ela própria. Sentiu-se incomodada, por isso pegou nas suas coisas, levantou-se e saiu.

(Continua)

6 comentários:

mfc disse...

O predador feito presa...

mfc disse...

... sem conotação negativa.
Apenas a objectividade da situação.

Fenix disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

foi apanhada

ilhéu disse...

Também vim espreitar, e regressarei com tempo para saborear.

Fenix disse...
Este comentário foi removido pelo autor.