As memórias puxadas por este fio foram gravadas há muitos anos, num tempo e numa região em que se usavam termos que foram caindo em desuso. Felizmente outros fios se puderam puxar para trazer as memórias que permitiram escrever o pequeno glossário que poderão encontrar no final do texto.
As memórias que o fio puxou já não posso garantir que se tenham passado todas no mesmo dia, sei apenas que foram puxadas por um burrinho que há muito partiu para o céu dos burros. Sim, porque se houver céu para os homens não se entende como poderia não o haver também para estes pacíficos animais...
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A camioneta deixou-nos no sítio do costume, na zona mais central da aldeia.
Todos os dias da semana, com a excepção do domingo, a mesma camioneta, conduzida pelo mesmo motorista, nos apanhava ainda antes das oito da manhã para, depois de fazer mais duas paragens em aldeias próximas, nos deixar em frente ao colégio mesmo a horas de entrar para a primeira aula do dia. O trajecto inverso iniciava-se mais de cinco horas depois e a chegada à aldeia acontecia já depois das duas da tarde.
Ao contrário do habitual, ninguém me esperava em casa nesse dia, mas o recado dado de manhã, antes da saída para apanhar a camioneta, não deixava margem para descuidos ou atrasos, por isso tratei de me pôr rapidamente a caminho.
Apenas alguns minutos depois, ultrapassado o portão do quintal, dirigi-me ao esconderijo onde, desde sempre, era costume deixar a chave da porta quando todos os habitantes da casa se ausentavam. Histórias de ladrões havia-as, como havia as histórias de bruxas e de maus olhados, mas aquela era gente de bem e confiava-se nos vizinhos como se confiava numa mãe. Não era, por isso, de estranhar que aquele esconderijo fosse bem conhecido dos vizinhos.
Já dentro de casa, encontrei o prato no cimo de uma panela de ferro junto às cinzas ainda mornas do lume já sem vida. Do conteúdo do prato o fio não trouxe memória, nem isso deve interessar ao caso.
Com a barriga mais composta, e depois de ter devolvido a chave ao esconderijo, dirigi-me ao palheiro. À minha direita um burro de pêlo branco olhava-me com as orelhas espetadas para a frente, numa inconfundível expressão de curiosidade.
De um pau imediatamente à direita da porta retirei o cabresto e dirigi-me ao burro. Este, adivinhando a quebra no seu descanso, recolheu as orelhas completamente para trás, numa clara expressão de desagrado. Indiferente a este sentimento, e sabendo que as manifestações de desagrado se ficariam pela expressão de orelhas recolhidas, enfiei a parte de baixo do cabresto pelo focinho do animal, fiz-lhe passar as orelhas pela parte de cima e apertei a fivela por debaixo do pescoço.
Depois coloquei uma manta bem direita nas costas do animal, evitando deixar dobras que pudessem causar-lhe desconforto, e por cima desta coloquei a albarda. Depois fui buscar as engarelas e coloquei-as por cima da albarda e, finalmente, coloquei a cilha apertando-a bem para segurar tudo no lugar, mas não demasiado para não o magoar. Peguei num dos lados das engarelas e abanei-as para me certificar que tudo estava seguro. Estava.
Finalmente libertei-o da corda que o prendia na manjedoura, puxei-o para fora do palheiro, e conduzi-o para junto da pedra que serviria de altura para mais facilmente conseguir passar a perna por cima da albarda e montar o animal.
Fechadas todas as portas, lá segui caminho montado no burro, com as pernas penduradas à frente das engarelas. Em cerca de meia hora chegaria ao meu destino, onde um pequeno rebanho de três cabras seria deixado à minha guarda, para que os meus tios, aos cuidados de quem estava entregue, pudessem dedicar-se ao resto da lida da horta.
O fio puxado não trouxe memórias claras da viagem até ao destino, nem do que lá se terá passado durante parte da tarde, talvez porque a memória do que se passou a seguir seja mais forte que todo esse resto.
A certa altura uma das cabras começou a berrar, e em pouco tempo pude ver algo que nunca tinha podido ver pelo facto de quase sempre acontecer durante a noite, o nascimento de dois cabritinhos.
Chagada a hora do regresso a casa, sobre as engarelas, que em situações normais seguiriam carregadas com os mais variados produtos da horta, foram apenas colocados dois pequenos molhos de erva acabada de cortar e que serviria de alimento nocturno às cabras e ao burro. Esta pouca carga não se destinava a poupar o burro, mas sim a permitir que eu, ao contrário do que era normal nestes regressos a casa, pudesse seguir montado e entregue à nobre missão de levar na minha frente os cabritos recém-nascidos.
Com os cabritos a chamar pela mãe, e com a mãe a berrar ao lado do burro e de olhos postos nos seus filhotes, foi com um grande orgulho que, naquele dia quase noite, entrei na aldeia e percorri as ruas até ao palheiro.
** Glossário **
Albarda - Espécie de sela feita de pano e de pele, e cheia com palha. Utilizada nos burros e nas mulas para permitir o transporte de pessoas e de carga. Protege o traseiro de quem assim quiser viajar, e protege as costas do animal da carga e dos traseiros dos passageiros.
Cabresto - Utensílio feito com tiras de pele e utilizado para colocar na cabeça do burro, permitindo controlar o animal, quer quando se circula a pé, quer quando se segue montado nele.
Cilha - Faixa larga de couro que, passando por debaixo da barriga do animal, serve para segurar a albarda, não permitindo que ela oscile ou caia.
Engarelas - Armações de madeira ou de ferro, constituídas por duas partes simétricas unidas por cordas ou por correntes, e que se colocam no dorso dos animais de carga, sobre a albarda, de forma que as duas partes fiquem suspensas de ambos os lados do animal, permitindo a colocação de carga. Em algumas regiões as engarelas são conhecidas por cangalhas.