sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

O viajante – parte V

(Continuação de O viajante – Partes I, II, III e IV)

Com o dedo suspenso a menos de dois centímetros do botão que activaria o sistema de teletransporte, e que o faria viajar quase quarenta anos para o futuro, pensou na realidade que iria encontrar quando chegasse à Terra.

Pensou de novo na mulher. Imaginou como ela se sentiria naquela incerteza sobre o que lhe teria acontecido a ele. Se estaria vivo, ou se os seus restos mortais vagueariam algures numa parte incerta do universo... Se, estando vivo e em condições de regressar à Terra, demoraria dias ou anos até estar de volta... Não tinha dúvidas de que o amor que os unia era muito grande, mas também sabia que nenhum amor poderia resistir à incerteza em que a sua amada se encontraria. Sabia que, mais tarde ou mais cedo, ela teria de desistir da espera e refazer a sua vida com outro homem. Além disso, em vez da mulher ainda jovem e bonita que vira pela última vez a apenas alguns dias atrás, encontraria uma avó com mais de setenta anos.

Pensou nas filhas. Reviu-as mentalmente nas suas brincadeiras, nas suas travessuras, nas suas gracinhas, nos seus momentos de ternura... Cresceriam sem ele!... Cresceriam ao lado de um padrasto a quem veriam como pai e a quem os seus próprios netos chamariam de avô.

Pensou nos pais, já com uma idade demasiado avançada para que pudesse alimentar a esperança de ainda os encontrar vivos. Morreriam sem que soubessem o que lhe tinha acontecido, morreriam sem que ele tivesse oportunidade de se despedir deles, de lhes dar um último carinho, em jeito de retribuição pelos muitos carinhos que deles sempre recebera, de os acompanhar até à sua última morada...

Pensou nos colegas e amigos. Encontraria a maioria já numa idade avançada, enquanto outros, à semelhança dos pais, já teriam morrido.

Apercebeu-se de que não teria ninguém quando chegasse! Estaria verdadeiramente só e sem qualquer referência ao mundo que deixara há apenas alguns dias. Pensou se realmente queria voltar, ou se preferia programar o sistema de teletransporte para o levar directamente à superfície do Sol onde seria instantaneamente incinerado. Seria tudo tão rápido que nem chegaria a sentir dor.

Apressou-se a afastar aqueles pensamentos! Não, não estava disposto a entregar-se assim tão facilmente! Voltaria, conheceria as filhas, mais velhas do que ele, conheceria os netos, reconstruiria a sua vida, faria novos amigos, encontraria um novo amor, uma nova família e novos filhos. Não seria fácil, mas estava certo de que encontraria o caminho para uma nova felicidade.

Num impulso, e antes que pudesse mudar de ideias, carregou no botão. Instantes depois a luz intensa do Sol entrava-lhe pelas janelas do lado direito da nave. Precisou de alguns momentos para que os seus olhos se adaptassem àquele súbito aumento de luminosidade. Depois, ainda encandeado, procurou os controlos da nave e manobrou-a de forma a virar as janelas para o escuro do vazio do universo.

Já estava! Mais de trinta e oito anos se tinham passado na Terra entre o momento em que, naquele impulso, tinha carregado no botão e este momento em que se encontrava agora.

No computador deu as instruções necessárias para que este determinasse a localização exacta da Terra naquele momento. O ponto de chegada que tinha sido previamente programado no sistema de teletransporte não se encontrava muito próximo da Terra. A razão para isso prendia-se com a dificuldade em conseguir afinar com precisão milimétrica o local de destino de um teletransporte. Neste caso, e considerando a distância a que estava o ponto de partida, o erro no ponto de destino poderia chegar aos milhares de quilómetros. Por esta razão, o ponto de destino previamente programado no STTA, e nas proximidades do qual se encontrava agora, fora escolhido numa órbita em torno do Sol, entre a órbita de Vénus e a órbita da Terra. Por isso era agora necessário determinar onde se encontrava a Terra. Em simultâneo activou também o sinal de SOS.

Ocorreu-lhe então a possibilidade de a espécie humana já não existir, de se ter autodestruído em alguma guerra... de aquela mesma tecnologia que permitira o teletransporte poder ter sido fatalmente utilizada como arma de destruição e aniquilação. Se assim fosse seria ele o último representante vivo da raça humana...

Mas não, o computador informou-o que as antenas da nave estavam a captar sinais electromagnéticos, num padrão típico dos utilizados para telecomunicações. Apesar de o computador não conseguir descodificar qualquer dos sinais recebidos, era evidente que havia vida inteligente activa algures não muito longe.

Pensou na possibilidade de já não se lembrarem dele e de o tomarem por um extraterrestre...

Repentinamente uma luz branca substituiu o escuro do espaço em todas as janelas da nave. Ao mesmo tempo sentiu-se puxado para baixo, como se a nave estivesse a ser acelerada para cima por uma qualquer força.

(Continua)

8 comentários:

Lita disse...

Só hoje consegui encontrar um tempo suficientemente calmo para ler o teu "viajante". Foi bom, porque li tudo de seguida.

Está espectacular, muito bem escrito e deixa-nos aquela deliciosa curiosidade de mais...

Vou aguardar o resto!
Beijinhos...

Paula Raposo disse...

Empolgante! É o que eu encontro para dizer...beijos.

Fenix disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
mfc disse...

Quando algo de único e suficientemente grave nos acontecesse, lá vem aquele flash back que recapitula tudo o que nos é mais querido...

Veremos o que nos trazes a seguir.

Anônimo disse...

é pá, isso é uma coisa muito arriscada. ver a Terra evoluir (ou talvez não) durante 30, 50 anos ainda vá, agora aparecer cá assim ... puff, daqui a 50 anos ...
que susto.

lélé disse...

De facto, ler este conto é como ver um filme...
Mas... há sempre a possibilidade de um pequeno grão de areia ter sido mexido no passado, de onde ele partiu, e o mandar agora para um "mundo paralelo", não?...
Vamos lá, estou impacientemente curiosa...

Rui disse...

Observação optimista, essa de ser inteligente a vida que o espera.

ilhéu disse...

Agora que decidiu regressar, todos queremos saber dos reencontros.Vão ser dramáticos, julgo. Abraço