segunda-feira, 16 de março de 2009

Fio de memória #1

As memórias puxadas por este fio foram gravadas há muitos anos, num tempo e numa região em que se usavam termos que foram caindo em desuso. Felizmente outros fios se puderam puxar para trazer as memórias que permitiram escrever o pequeno glossário que poderão encontrar no final do texto.

As memórias que o fio puxou já não posso garantir que se tenham passado todas no mesmo dia, sei apenas que foram puxadas por um burrinho que há muito partiu para o céu dos burros. Sim, porque se houver céu para os homens não se entende como poderia não o haver também para estes pacíficos animais...

***

A camioneta deixou-nos no sítio do costume, na zona mais central da aldeia.

Todos os dias da semana, com a excepção do domingo, a mesma camioneta, conduzida pelo mesmo motorista, nos apanhava ainda antes das oito da manhã para, depois de fazer mais duas paragens em aldeias próximas, nos deixar em frente ao colégio mesmo a horas de entrar para a primeira aula do dia. O trajecto inverso iniciava-se mais de cinco horas depois e a chegada à aldeia acontecia já depois das duas da tarde.

Ao contrário do habitual, ninguém me esperava em casa nesse dia, mas o recado dado de manhã, antes da saída para apanhar a camioneta, não deixava margem para descuidos ou atrasos, por isso tratei de me pôr rapidamente a caminho.

Apenas alguns minutos depois, ultrapassado o portão do quintal, dirigi-me ao esconderijo onde, desde sempre, era costume deixar a chave da porta quando todos os habitantes da casa se ausentavam. Histórias de ladrões havia-as, como havia as histórias de bruxas e de maus olhados, mas aquela era gente de bem e confiava-se nos vizinhos como se confiava numa mãe. Não era, por isso, de estranhar que aquele esconderijo fosse bem conhecido dos vizinhos.

Já dentro de casa, encontrei o prato no cimo de uma panela de ferro junto às cinzas ainda mornas do lume já sem vida. Do conteúdo do prato o fio não trouxe memória, nem isso deve interessar ao caso.

Com a barriga mais composta, e depois de ter devolvido a chave ao esconderijo, dirigi-me ao palheiro. À minha direita um burro de pêlo branco olhava-me com as orelhas espetadas para a frente, numa inconfundível expressão de curiosidade.

De um pau imediatamente à direita da porta retirei o cabresto e dirigi-me ao burro. Este, adivinhando a quebra no seu descanso, recolheu as orelhas completamente para trás, numa clara expressão de desagrado. Indiferente a este sentimento, e sabendo que as manifestações de desagrado se ficariam pela expressão de orelhas recolhidas, enfiei a parte de baixo do cabresto pelo focinho do animal, fiz-lhe passar as orelhas pela parte de cima e apertei a fivela por debaixo do pescoço.

Depois coloquei uma manta bem direita nas costas do animal, evitando deixar dobras que pudessem causar-lhe desconforto, e por cima desta coloquei a albarda. Depois fui buscar as engarelas e coloquei-as por cima da albarda e, finalmente, coloquei a cilha apertando-a bem para segurar tudo no lugar, mas não demasiado para não o magoar. Peguei num dos lados das engarelas e abanei-as para me certificar que tudo estava seguro. Estava.

Finalmente libertei-o da corda que o prendia na manjedoura, puxei-o para fora do palheiro, e conduzi-o para junto da pedra que serviria de altura para mais facilmente conseguir passar a perna por cima da albarda e montar o animal.

Fechadas todas as portas, lá segui caminho montado no burro, com as pernas penduradas à frente das engarelas. Em cerca de meia hora chegaria ao meu destino, onde um pequeno rebanho de três cabras seria deixado à minha guarda, para que os meus tios, aos cuidados de quem estava entregue, pudessem dedicar-se ao resto da lida da horta.

O fio puxado não trouxe memórias claras da viagem até ao destino, nem do que lá se terá passado durante parte da tarde, talvez porque a memória do que se passou a seguir seja mais forte que todo esse resto.

A certa altura uma das cabras começou a berrar, e em pouco tempo pude ver algo que nunca tinha podido ver pelo facto de quase sempre acontecer durante a noite, o nascimento de dois cabritinhos.

Chagada a hora do regresso a casa, sobre as engarelas, que em situações normais seguiriam carregadas com os mais variados produtos da horta, foram apenas colocados dois pequenos molhos de erva acabada de cortar e que serviria de alimento nocturno às cabras e ao burro. Esta pouca carga não se destinava a poupar o burro, mas sim a permitir que eu, ao contrário do que era normal nestes regressos a casa, pudesse seguir montado e entregue à nobre missão de levar na minha frente os cabritos recém-nascidos.

Com os cabritos a chamar pela mãe, e com a mãe a berrar ao lado do burro e de olhos postos nos seus filhotes, foi com um grande orgulho que, naquele dia quase noite, entrei na aldeia e percorri as ruas até ao palheiro.

** Glossário **

Albarda - Espécie de sela feita de pano e de pele, e cheia com palha. Utilizada nos burros e nas mulas para permitir o transporte de pessoas e de carga. Protege o traseiro de quem assim quiser viajar, e protege as costas do animal da carga e dos traseiros dos passageiros.

Cabresto - Utensílio feito com tiras de pele e utilizado para colocar na cabeça do burro, permitindo controlar o animal, quer quando se circula a pé, quer quando se segue montado nele.

Cilha - Faixa larga de couro que, passando por debaixo da barriga do animal, serve para segurar a albarda, não permitindo que ela oscile ou caia.

Engarelas - Armações de madeira ou de ferro, constituídas por duas partes simétricas unidas por cordas ou por correntes, e que se colocam no dorso dos animais de carga, sobre a albarda, de forma que as duas partes fiquem suspensas de ambos os lados do animal, permitindo a colocação de carga. Em algumas regiões as engarelas são conhecidas por cangalhas.

sábado, 14 de março de 2009

Compasso de espera

Infelizmente esta que terminou foi uma semana de intenso trabalho, e por isso não consegui fazer a prometida transcrição daquele primeiro fio de memória para palavras escritas. Depois de um necessário e merecido descanso, espero encontrar, ao longo do que resta do fim de semana, um período de serenidade e de isolamento para cumprir a promessa. Até já...

segunda-feira, 9 de março de 2009

Fios de memória

Acontece-me, por vezes, virem-me à memória imagens distantes de situações vividas há já bastante tempo. Depois, a partir dessas primeiras, outras segundas se lhe seguem e depois terceiras e quartas, e assim sucessivamente até que alguma coisa à minha volta me faz acordar desse sonhar acordado e me traz de volta à realidade. É como se as memórias estivessem ligadas por um fio invisível que ao ser puxado trouxesse agarradas, umas após as outras, aquelas imagens de outros tempos.

Por vezes o fio de memória tem uma base comum que me faz saltar de uma recordação para a outra. Uma situação, um local, uma pessoa, ou simplesmente um sentir, são o suficiente para trazer à superfície imagens, directa ou indirectamente, associadas a essa mesma situação, pessoa ou sentir.

Outras vezes as imagens sucedem-se sem que exista essa tal base comum, ou talvez seja mais correcto dizer que ela existe e que apenas não me é aparente.

Há ainda os casos em que, como referia a amiga lélé num texto recente, o fio de memória me conduz por recordações adulteradas, ou mesmo completamente forjadas, como se as imagens de um sonho tivessem conseguido atravessar a fronteira entre esse mundo, supostamente imaginário, e este outro, supostamente real.

E no meio de todas essas recordações, puxadas por esse fio invisível, surgem-me por vezes imagens que estavam esquecidas nas profundezas da memória há tanto tempo que é inevitável ficar maravilhado...

Daqui em diante, sempre que um destes fios de memória não me parecer demasiado desinteressante ou impróprio, aqui o partilharei com quem vier espreitar neste cantinho. O primeiro desses fios já foi puxado, falta agora transcrever em palavras as imagens que ele me trouxe.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Brincar com o tempo

Vim só avisar que, terminado o devaneio sobre a viagem de um certo viajante, neste cantinho se vai continuar a brincar com o tempo. Não para já, que não seria prudente abusar assim dele repetidamente, uma e outra vez, em seu tão curto espaço, mas num futuro não muito distante. Para já - forma de expressão, pois não deve entender-se que este para já signifique que seja, literalmente, para já, mas mais para um dos próximos dias - para já, dizia, será tempo não de com ele brincar, mas de brincar com outros devaneios. Um fio de memória começou a ser puxado... veremos o que ele nos traz...

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O viajante – parte IX

(Continuação de O viajante – Partes I, II, III, IV, V, VI, VII e VIII)

Sabia que a leitura daquela carta lhe traria sofrimento, mas lentamente, ainda indeciso sobre o que fazer, foi rasgando um dos lados do envelope. Depois, já com o envelope aberto, hesitou de novo mais alguns segundos antes de meter dois dedos dentro do envelope para alcançar a folha de papel e puxá-la para fora. Fez uma nova hesitação e abriu, finalmente, a folha e olhou para aquelas linhas manuscritas.

A carta pareceu-lhe estranhamente curta. Pensou que ela não tivera, talvez, a coragem para se alongar muito em explicações que sabia que ele teria obrigação de compreender. Na verdade não eram necessárias muitas palavras para dizer que se vira obrigada a procurar uma nova felicidade e para lhe pedir que entendesse a decisão dela e não a procurasse... e o fecho da carta, desejando-lhe que fosse feliz, também não necessitaria mais de duas ou três linhas de texto.

Com a carta aberta na mão olhou pela janela para contemplar aquela belíssima paisagem durante mais alguns segundos. Depois fez uma inspiração profunda e dispôs-se, finalmente, a ler a carta.

“Meu amor, passam-se hoje exactamente seis meses desde a data em que tu não regressaste. Têm sido tempos muito difíceis para mim e para as nossas meninas. Não que elas tenham consciência do que se passa, mas têm imensas saudades tuas e não param de perguntar por ti.”

Os olhos encheram-se-lhe repentinamente de lágrimas. Parou de ler, largou a carta em cima da mesa, recostou-se na cadeira com as mãos nos olhos e chorou como chora um homem. Um choro silencioso, mas um choro abundante, arrancado não do fundo dos olhos mas do mais profundo das entranhas. Tinha estado a tentar conter aquelas lágrimas desde que tomara consciência da situação em que se encontrava, mas agora não podia aguentar mais, por isso deixou de lutar, deixou de engolir em seco, e deixou que elas corressem livremente.

Claro que tinham saudades, aquelas duas meninas adoravam-no, e ele adorava-as a elas. Mas a saudade delas já estaria curada por esta altura, enquanto a dele lhe ardia agora no peito com uma intensidade avassaladora.

Perdeu a noção de quanto tempo ficou ali, e perdeu a noção da quantidade das lágrimas libertadas. Finalmente retirou lentamente as mãos dos olhos, e voltou a olhar para a sala e para a paisagem exterior, ainda com a visão perturbada pelas últimas lágrimas que tinham ficado prisioneiras nos olhos, impedidas de seguir o caminho das restantes.

Pegou num dos guardanapos de papel e limpou os olhos, a boca e o nariz, e bebeu mais um pouco água para limpar o gosto salgado que sentia nos lábios e na boca. Depois respirou fundo e voltou a pegar na carta abandonada em cima da mesa.

“O mundo inteiro não tem parado de falar no teu caso, o que só contribuiu para agravar este sofrimento meu. Os primeiros quatro meses foram os mais difíceis, ainda aturdida pelos acontecimentos e incapaz de pensar e de raciocinar correctamente.

Depois fui recuperando um pouco a calma e o discernimento e tudo ficou mais calmo e sereno quando finalmente tomei a minha decisão.”

Claro, a tomada da decisão devia ter sido muito difícil, mas depois de tomada tudo terá ficado mais calmo. O sofrimento terá ficado ainda durante muito tempo, mas também esse terá acabado por ser ultrapassado.

“De acordo com os peritos que analisaram a cápsula de dados, recuperada junto daquele planeta de onde partiste para algum lugar incerto do universo, o sistema de teletransporte da tua nave terá tido uma falha grave. O teu regresso à Terra só poderá acontecer se tiveres tomado a decisão de usar o sistema de teletransporte alternativo, com as inevitáveis consequências que isso implica.

Os peritos não foram capazes de determinar a que local do espaço foste parar na sequência da avaria, por isso, assumindo que vais regressar, é impossível saber quando isso vai acontecer.

E assim tenho vivido nestes meses, prisioneira da incerteza de uma decisão que tu tomaste há seis meses atrás, mas que permanece escondida numa descontinuidade do tempo entre o momento em que a tomaste e um futuro que não sei quando chegará, ou se chegará.

Esta incerteza foi, precisamente, o factor de maior sofrimento para mim e o que me levou a tomar esta decisão. Simplesmente não poderia continuar a viver nesta incerteza!”

Claro que não podia... Por muito que isso lhe custasse aceitar, sabia que as coisas não se poderiam ter passado de maneira diferente. Apesar de saber aquilo com que contava, não estava preparado, por isso baixou a carta e voltou a olhar para a rua, através da janela, tentando encontrar naquela paisagem idílica a coragem necessária para ler o último parágrafo.

Respirou fundo uma vez mais e voltou a levantar a mão esquerda com a qual segurava a carta, finalmente disposto a terminar a sua leitura.

“Parto hoje com as nossas filhas. Parto numa nave não muito diferente da tua. Nela faremos pequenas viagens no tempo, voltando a uma órbita em torno da terra a cada seis meses. Em cada regresso farei uma breve comunicação com a Terra, para fazer um ponto de situação, antes de partir para nova viagem de igual duração. Interromperei esta sequência quando ouvir a tua voz. Não conseguimos e não queremos viver sem ti! Até já!...”

FIM

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

O viajante – parte VIII

(Continuação de O viajante – Partes I, II, III, IV, V, VI e VII)

A expressão dela tornou-se um pouco mais sombria. Fez uma pausa antes de responder:

“Os seus pais partiram já há mais de dez anos, primeiro o seu pai, depois a sua mãe, menos de um ano depois.”

Depois voltando a um discurso mais animado, “Mas os seus irmãos continuam vivos e prometeram que se recusariam a receber a morte enquanto o senhor não voltasse”.

Enquanto escutava aquelas palavras um sorriso amargo desenhou-se-lhe nos lábios, ao mesmo tempo que uma lágrima lhe caia pela cara. Sabia que seria assim, que os pais não poderiam ter uma vida suficientemente longa para ainda estarem vivos naquela altura, mas esta confirmação provocou-lhe um aperto no coração, como se a notícia fosse totalmente inesperada. Teria, certamente, mais motivos para sentir o coração apertado nos dias seguintes...

Ela, percebendo o efeito das notícias que tinha acabado de dar, prosseguiu:

“Julgo que agora mesmo devem estar precisamente a reunir-se nesse local onde costumam encontrar-se nas datas que lhe referi.”

“Mas como? Eles já sabem que eu regressei?”

“Sim, várias dezenas de antenas estavam apontadas para o espaço à espera de receber o seu sinal de SOS. Por esta altura a notícia do seu regresso já circula em todos os meios de comunicação. Os peritos tinham previsto que o seu regresso aconteceria entre as sete horas de ontem e as vinte e três de amanhã, por isso havia muita gente na expectativa à escuta do seu sinal.”

“O meu regresso foi previsto?... como?...”

“Alguns anos depois da sua viagem foi feito um esforço para encontrar o seu rasto. Nessa altura havia já algumas teorias sobre o local para onde o sistema de teletransporte o teria levado na altura em que avariou, baseadas nos dados de telemetria encontrados na cápsula que deixou antes da tentativa de regresso.

Tendo como base essas teorias, e procurando tirar partido do facto de a sua nave emitir um sinal de rádio a cada minuto, foram colocadas várias antenas bastante sensíveis em locais do espaço onde se considerou que esses sinais poderiam estar prestes a chegar.”

Claro, como não tinha pensado nisso!? A nave emitia, de facto, um sinal de rádio a cada sessenta segundos. Codificada nesse sinal era enviada a informação sobre a data e a hora a bordo da nave. Uma vez que estes sinais de rádio viajavam à velocidade da luz, algumas antenas bem posicionadas haveriam de, eventualmente, captar algum desses sinais. Bastaria que duas antenas colocadas em dois locais distintos detectassem o sinal para permitir o cálculo do ponto de origem do sinal, usando um processo de triangulação.

”Foi necessário esperar alguns anos, julgo que quatro, para que uma dessas antenas recebesse os primeiros sinais. Depois, com base nessa informação, foi relativamente fácil reposicionar as outras antenas, e em menos de seis meses foi possível determinar com bastante exactidão o local de onde se teletransportou pela última vez. Com base nessa informação foi feita uma estimativa da data da sua chegada.

Desde então tem havido alguns especialistas a contestar estas previsões e a apresentar teorias alternativas, mas, como acabamos de verificar, estavam enganados.”

Teve vontade de lhe perguntar pela mulher e pelas filhas, mas por alguma razão ela tinha evitado falar-lhe nelas, por isso olhou de novo a carta em cima da mesa. Ela, apercebendo-se disso, achou que seria melhor deixá-lo a sós. Sorriu-lhe e disse-lhe “Se precisar de alguma coisa chame-me” antes de se retirar da sala.

(Continua)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O viajante – parte VII

(Continuação de O viajante – Partes I, II, III, IV, V e VI)

Pegou no envelope e ficou ali a olhar para ele durante algum tempo. Imaginava o que estava escrito naquela carta e por isso mesmo ponderava se queria abri-la, ou se preferia ignora-la. Certamente ela teria decidido escrever-lhe quando, depois de se ter cansado de o esperar, se decidira a refazer a sua vida. Naquela carta encontraria as justificações que já imaginava, e as quais compreendia perfeitamente. Encontraria também o pedido para ele não a procurar, evitando assim abrir as feridas mal curadas daquela espera e daquela decisão que fora obrigada a tomar...

Foi interrompido nestes pensamentos por alguém que batia à porta da sala. Antes que pudesse mandar entrar já a porta se abria, mostrando-lhe a cara da mulher que vira sentada do lado de fora.

“Desculpe incomodá-lo, mas achei que talvez quisesse tomar alguma coisa, uma água ou um sumo... e uns bolinhos...” e ficou a olhar para ele, com um sorriso simpático no rosto.

A intensidade do turbilhão de emoções por que tinha acabado de passar tinham-no levado a ignorar os sinais do seu próprio corpo. Precisou, por isso, de alguns segundos para raciocinar sobre a oferta que acabara de lhe ser feita. “Sim, de facto uma água seria bem vinda... e talvez aceite também alguns desses bolinhos... fiquei curioso para saborear o resultado destes quase quarenta anos de evolução na arte da confeitaria...”

Ela sorriu mais abertamente e entrou na sala, dirigindo-se a uma porta na parede do lado esquerdo. De dentro do armário retirou dois copos, duas garrafas de água, alguns pacotes com imagens de frutas, algumas embalagens pequenas de diversos tipos, e alguns guardanapos de papel. Depois, recuperando o sorriso simpático entrelaçou as pontas dos dedos e, olhando-o de frente, disse-lhe: “Se precisar de mais alguma coisa não hesite em chamar-me.”

Ia já junto à porta quando ele falou: “Sabe quem eu sou?”

Ela voltou-se para ele e respondeu: “Claro que sim. O senhor é uma das pessoas mais conhecidas da actualidade.”

“A sério?... e eu que, por momentos, achei que se poderiam ter esquecido de mim!...”

Ela entretanto tinha-se aproximado de novo e olhava-o agora com uma cara mais séria.

“De modo nenhum, o senhor teve um papel importantíssimo no desenvolvimento dos sistemas de teletransporte e foi o primeiro homem a ser teletransportado para fora do nosso sistema solar. Depois, nessa mesma viagem, teve um problema com o sistema de teletransporte e foi obrigado a usar o sistema alternativo, o que implicou uma viagem no tempo de mais de trinta e oito anos. Acabou de chegar dessa viagem.

Além disso, o senhor continua a ser uma das poucas pessoas que teve a possibilidade de viajar no tempo.”

“Como assim?... foi detectado algum problema com essa tecnologia?”

“Não, pelo contrário, a tecnologia funciona muitíssimo bem, mas os responsáveis mundiais consideraram que seria perigoso permitir esse tipo de viagens, devido aos potenciais problemas na coordenação e na recepção desses passageiros no momento do regresso, e ao perigo de muitas pessoas importantes e poderosas viajar para o futuro, criando problemas de vazio no presente. Por isso foram aprovadas leis proibindo esse tipo de viagens.”

Ele ficou ali a olhar para ela, sem saber o que dizer, enquanto mastigava o conteúdo de um dos pacotes que ela lhe tinha colocado em cima da mesa. Foi ela quem retomou a palavra:

“A sua viagem teve início a vinte e dois de Abril, desde essa altura que esta data e a data de vinte e dois de Outubro são assinaladas, especialmente pelos seus amigos e familiares que continuam a reunir-se no terminal de onde partiu para essa viagem.”

“Duas vezes por ano?... não chegaria uma?...”

“A seu tempo compreenderá as razões”, disse sorrindo. ”Os principais dinamizadores desses encontros começaram por ser os seus pais e os seus irmãos, aos quais se juntaram os seus amigos.”

“Os meus pais e os meus irmãos...” fez uma pausa ”que é feito deles?”

(Continua)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

O viajante – parte VI

(Continuação de O viajante – Partes I, II, III, IV e V)

Após alguns segundos de desorientação apercebeu-se do que se estava a passar. Percebeu que nenhuma força puxava a nave para cima, em vez disso a mesma aceleração puxava-os, a ele e à nave, para baixo. Tinha acabado de ser teletransportado do local onde se encontrava, em órbita com o Sol, directamente para algum lugar na Terra e o que sentia era apenas a força da gravidade.

Sentiu alguma agitação no exterior da nave. A cara de um homem surgiu-lhe na janela à sua esquerda, perscrutando o interior da nave e, finalmente, fixando o olhar nele. Depois o homem fez-lhe sinal com a mão para que saísse da nave.

Moveu-se muito lentamente. Apesar de ter passado apenas alguns dias na situação de imponderabilidade, o súbito retorno à gravidade normal da superfície da Terra fazia com que se sentisse muito pesado e desajeitado.

Abriu a porta e saiu lentamente da nave. O homem que vira pela janela afastava-se para um dos lados da sala, enquanto por uma porta aberta à sua frente um outro homem, vestido de forma mais distinta que o anterior, se dirigia a ele mostrando um largo sorriso. “Capitão, é uma enorme honra recebê-lo de volta aqui na Terra”. Fez uma pausa enquanto lhe estendia a mão aberta que ele se apressou a apertar, balbuciando um tímido e quase imperceptível “Obrigado”.

Sou o responsável actual da Agência Espacial e foi com grande entusiasmo que recebi a notícia de que tinha sido detectado o seu sinal de SOS. Como deve saber, muito tempo se passou aqui na Terra desde a sua viagem pioneira. Muito se escreveu e se especulou a seu respeito ao longo destes anos, mas a maioria dos peritos, e das pessoas em geral, sempre acreditou que o senhor haveria de regressar um dia.”

Tentou encontrar algumas palavras para responder, mas nada lhe ocorreu naquele momento. Alimentava ainda a vaga esperança de que não se tivessem, afinal, passado tantos anos, e de que o computador e o sistema de teletransporte a bordo da sua nave tivessem errado o cálculo da data de chegada. Mas não, tudo indicava, pelo discurso daquele homem, que se tinham passado aqueles anos todos. E com a perda desta última réstia de esperança, fugiam-lhe também as palavras.

Imagino a forma como se sente...” Continuou o homem, sentindo o embaraço em que ele se encontrava. Depois, encarando-o com uma expressão mais séria, prosseguiu, “Imagino que não seja fácil entender que se tenham passado quase quarenta anos aqui na Terra, quando para si se passaram apenas alguns dias. Mas não se preocupe, vai ter algumas surpresas boas, vamos ajuda-lo a adaptar-se a este novo mundo, vamos ajuda-lo a viver uma vida feliz.”

O homem colocou-lhe a mão esquerda sobre o seu omoplata direito, num gesto que o encaminhava pela porta aberta. Avançou e passou pela porta, depois o homem indicou-lhe uma outra porta, que uma jovem, vestida com um uniforme não muito diferente do que vestia o homem que o tinha espreitado pela janela da nave, se prontificou a abrir carregando num botão. Enquanto passava por ela a jovem dirigiu-lhe um sorriso genuíno e simpático ao qual ele se sentiu obrigado a corresponder. Entraram ambos numa cabine em tudo idêntica à cabine de um elevador. A porta fechou-se atrás deles e o homem introduziu algumas instruções num ecrã cheio de estranhos símbolos e números.

Enquanto a porta se abria para um corredor de aspecto muito diferente daquele que ali estava há apenas alguns segundos atrás, o homem voltou a falar, “A tecnologia de teletransporte veio revolucionar todos os meios de transporte do planeta. Deixaram de existir carros, comboios, barcos e aviões, pois deixaram de ser necessários. Por exemplo, agora mesmo acabamos de ser teletransportados de um dos vários terminais da Agência Espacial para os escritórios centrais, a mais de mil quilómetros de distância.

Avançaram pelo corredor em direcção a uma secretária onde uma mulher bonita, de uns trinta a trinta e cinco anos, mexia as mãos por entre um emaranhado de estranhas imagens que se iam movendo elegantemente à sua frente. Certamente um computador moderno, sem teclado, e sem monitor, apenas um conjunto de imagens virtuais suspensas e com as quais aquela mulher parecia brincar habilmente. Apercebendo-se da presença deles a mulher parou o que estava a fazer, e olhou-os dirigindo-lhes um largo sorriso.

O homem abriu uma porta à esquerda da mulher e convidou-o a entrar. Entraram para uma sala ampla e muito bem iluminada pelo azul profundo de um céu sem nuvens que entrava pelas janelas que ocupavam por completo uma das paredes. Do lado de fora da janela era também visível um relvado bem tratado e, mais ao fundo, uma praia e um mar calmo a perder de vista. Dentro da sala uma mesa de grandes dimensões, rodeada de cadeiras de aspecto confortável, ocupava grande parte do espaço.

Seguindo a indicação do homem, sentou-se numa das cadeiras mais próximas da janela. O homem, permanecendo de pé, voltou a falar. “Seguindo as normas e os procedimentos actuais da Agência, o senhor terá de ser observado por um grupo de médicos. Não que se suspeite que alguma coisa esteja menos bem com a sua saúde, mas porque a isso obrigam as normas e os procedimentos a que me referi. No entanto, achei que antes disso seria interessante para si receber uma coisa que há muito lhe foi dirigida. Demore o tempo que achar necessário, a minha secretária vai ficar à espera que o senhor lhe diga quando estiver pronto para prosseguir.

O homem meteu a mão num dos bolsos do casaco e retirou de lá um envelope branco que colocou à frente dele, em cima da mesa. Depois virou-se e saiu fechando a porta.

No envelope à sua frente estava escrito o nome dele, na inconfundível caligrafia da sua mulher e mãe das suas filhas.

(Continua)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

O viajante – parte V

(Continuação de O viajante – Partes I, II, III e IV)

Com o dedo suspenso a menos de dois centímetros do botão que activaria o sistema de teletransporte, e que o faria viajar quase quarenta anos para o futuro, pensou na realidade que iria encontrar quando chegasse à Terra.

Pensou de novo na mulher. Imaginou como ela se sentiria naquela incerteza sobre o que lhe teria acontecido a ele. Se estaria vivo, ou se os seus restos mortais vagueariam algures numa parte incerta do universo... Se, estando vivo e em condições de regressar à Terra, demoraria dias ou anos até estar de volta... Não tinha dúvidas de que o amor que os unia era muito grande, mas também sabia que nenhum amor poderia resistir à incerteza em que a sua amada se encontraria. Sabia que, mais tarde ou mais cedo, ela teria de desistir da espera e refazer a sua vida com outro homem. Além disso, em vez da mulher ainda jovem e bonita que vira pela última vez a apenas alguns dias atrás, encontraria uma avó com mais de setenta anos.

Pensou nas filhas. Reviu-as mentalmente nas suas brincadeiras, nas suas travessuras, nas suas gracinhas, nos seus momentos de ternura... Cresceriam sem ele!... Cresceriam ao lado de um padrasto a quem veriam como pai e a quem os seus próprios netos chamariam de avô.

Pensou nos pais, já com uma idade demasiado avançada para que pudesse alimentar a esperança de ainda os encontrar vivos. Morreriam sem que soubessem o que lhe tinha acontecido, morreriam sem que ele tivesse oportunidade de se despedir deles, de lhes dar um último carinho, em jeito de retribuição pelos muitos carinhos que deles sempre recebera, de os acompanhar até à sua última morada...

Pensou nos colegas e amigos. Encontraria a maioria já numa idade avançada, enquanto outros, à semelhança dos pais, já teriam morrido.

Apercebeu-se de que não teria ninguém quando chegasse! Estaria verdadeiramente só e sem qualquer referência ao mundo que deixara há apenas alguns dias. Pensou se realmente queria voltar, ou se preferia programar o sistema de teletransporte para o levar directamente à superfície do Sol onde seria instantaneamente incinerado. Seria tudo tão rápido que nem chegaria a sentir dor.

Apressou-se a afastar aqueles pensamentos! Não, não estava disposto a entregar-se assim tão facilmente! Voltaria, conheceria as filhas, mais velhas do que ele, conheceria os netos, reconstruiria a sua vida, faria novos amigos, encontraria um novo amor, uma nova família e novos filhos. Não seria fácil, mas estava certo de que encontraria o caminho para uma nova felicidade.

Num impulso, e antes que pudesse mudar de ideias, carregou no botão. Instantes depois a luz intensa do Sol entrava-lhe pelas janelas do lado direito da nave. Precisou de alguns momentos para que os seus olhos se adaptassem àquele súbito aumento de luminosidade. Depois, ainda encandeado, procurou os controlos da nave e manobrou-a de forma a virar as janelas para o escuro do vazio do universo.

Já estava! Mais de trinta e oito anos se tinham passado na Terra entre o momento em que, naquele impulso, tinha carregado no botão e este momento em que se encontrava agora.

No computador deu as instruções necessárias para que este determinasse a localização exacta da Terra naquele momento. O ponto de chegada que tinha sido previamente programado no sistema de teletransporte não se encontrava muito próximo da Terra. A razão para isso prendia-se com a dificuldade em conseguir afinar com precisão milimétrica o local de destino de um teletransporte. Neste caso, e considerando a distância a que estava o ponto de partida, o erro no ponto de destino poderia chegar aos milhares de quilómetros. Por esta razão, o ponto de destino previamente programado no STTA, e nas proximidades do qual se encontrava agora, fora escolhido numa órbita em torno do Sol, entre a órbita de Vénus e a órbita da Terra. Por isso era agora necessário determinar onde se encontrava a Terra. Em simultâneo activou também o sinal de SOS.

Ocorreu-lhe então a possibilidade de a espécie humana já não existir, de se ter autodestruído em alguma guerra... de aquela mesma tecnologia que permitira o teletransporte poder ter sido fatalmente utilizada como arma de destruição e aniquilação. Se assim fosse seria ele o último representante vivo da raça humana...

Mas não, o computador informou-o que as antenas da nave estavam a captar sinais electromagnéticos, num padrão típico dos utilizados para telecomunicações. Apesar de o computador não conseguir descodificar qualquer dos sinais recebidos, era evidente que havia vida inteligente activa algures não muito longe.

Pensou na possibilidade de já não se lembrarem dele e de o tomarem por um extraterrestre...

Repentinamente uma luz branca substituiu o escuro do espaço em todas as janelas da nave. Ao mesmo tempo sentiu-se puxado para baixo, como se a nave estivesse a ser acelerada para cima por uma qualquer força.

(Continua)

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O viajante – parte IV

(Continuação de O viajante – Parte I, Parte II e Parte III)

No ecrã do computador uma mensagem lembrava-o de que aquela estimativa era aproximada, e pedia-lhe instruções para teletransportar a nave para outro local, a fim de poder calcular uma triangulação para um cálculo mais exacto.

Talvez... talvez a estimativa estivesse, afinal, muito longe da realidade... talvez não estivesse tão desesperantemente longe da Terra... Sabia que esta era uma possibilidade muito remota, mas continuava a recusar-se a acreditar naquele cenário tão pessimista.

Sem perder tempo, deu as instruções necessárias para a utilização do STTA e configurou um destino a cerca de trinta dias luz dali. Era mais distante que o necessário para fazer um cálculo com a precisão adequada, mas ele queria ter a certeza.

Uma breve oscilação e uma súbita alteração dos padrões de pontos luminosos que entravam pela janela deram-lhe a indicação de que a operação de teletransporte se concluíra. Juntamente com a viagem no espaço tinha também viajado cerca de trinta e sete horas para o futuro. Uma insignificância face ao que o esperava se a primeira estimativa se confirmasse.

Olhou de novo para o exterior da nave. A mesma visão com que antes se deslumbrara parecia-lhe agora fria... grotesca... brutal!...

Na Terra, por esta altura, já teriam percebido que algo de errado se tinha passado com a missão. Provavelmente já teriam enviado uma sonda não tripulada para o local da missão, e talvez até já tivesse sido recuperada a cápsula de informação que ele lá deixara. Sabia, no entanto, que todos esses esforços em nada o poderiam ajudar a ele. Mesmo que a análise dos dados da cápsula permitisse identificar a avaria do STTI, dificilmente permitiria determinar a que local do espaço a nave tinha ido parar. Além disso, seriam necessários vários dias, ou talvez semanas, para analisar toda a informação da cápsula, e ele tinha já menos de cinquenta horas de oxigénio nos tanques da nave. Não podia, por isso, ficar à espera que o viessem resgatar. Estava sozinho, mais sozinho que algum outro homem alguma vez tinha estado.

Repentinamente vieram-lhe à memória as palavras e a expressão da mulher quando ele a informara, eufórico, que tinha sido escolhido para aquela missão, “Não vás, tenho medo!...”. Depois lembrou-se das filhas gémeas, no momento em que as abraçara e as levantara do chão para se despedir delas antes de partir para o período de quarentena que precedeu a missão.

Estas memórias foram interrompidas por uma alteração no ecrã do computador. O programa de cálculo da triangulação tinha terminado e a imagem mostrava-lhe já as novas coordenadas. Contrariamente ao que desejava estas coordenadas eram muito próximas da primeira estimativa. Não havia dúvidas de que estava muito longe da Terra.

A sua atenção foi, entretanto, desviada para outros dados. O programa de cálculo estava preparado para, depois de calculada a triangulação, programar automaticamente o sistema de teletransporte activo, neste caso o STTA, para levar a nave de volta a um ponto predefinido numa órbita em torno do Sol. A zona inferior do ecrã mostrava-lhe, juntamente com as coordenadas do ponto de destino e de outros parâmetros de configuração do STTA, um campo onde, dentro de poucos segundos, deveria aparecer a estimativa da data de chegada àquele ponto, medida em relação ao referencial da Terra.

A data apareceu, finalmente, e ele calculou mentalmente a diferença entre essa data e a data actual. A utilização do STTA implicava que chegaria à Terra mais de trinta e oito anos depois de ter iniciado aquela viagem... Bastavam agora algumas instruções muito simples para executar aquele teletransporte. Para ele essa viagem demoraria uma insignificante fracção de segundo, mas nessa mesma fracção de segundo passar-se-iam quase quarenta anos na Terra! Mais do que a idade que ele tinha!...

(Continua)

domingo, 25 de janeiro de 2009

O viajante – parte III

(Continuação de O viajante – Parte I e Parte II)

Fechou o painel do STTI e flutuou de volta à cadeira. As implicações daquela avaria poderiam ser dramáticas se estivesse longe da Terra, mas poderiam ser insignificantes se estivesse relativamente perto.

Sabia que teria de utilizar o STTA para regressar à Terra e que isso implicaria viajar para o futuro. Mas se estivesse relativamente perto, a alguns dias ou mesmo meses-luz, distância suficiente para o Sol não parecer muito diferente de qualquer outra estrela, essa viagem no tempo seria relativamente curta e, portanto, sem impacto significativo. Se estivesse longe...

De nada lhe adiantava entrar em desespero, não só porque o desespero em nada o ajudaria, mas também porque não gostava de se preocupar em vão com situações hipotéticas. Antes de mais era urgente saber onde estava e para isso teria de instruir o computador para que executasse o programa de localização.

Censurou-se por não ter iniciado o programa de cálculo mais cedo. Poderia ter poupado alguns minutos de incerteza… Sentou-se de novo na cadeira e apertou o cinto para evitar ser empurrado para fora dela à medida que se fosse movimentando para introduzir no computador as instruções necessárias à execução do programa de cálculo da posição.

Com as instruções dadas recostou-se na cadeira para esperar pelos resultados e percorreu mentalmente os procedimentos que teria de executar.

O cálculo da posição era um processo moroso que envolvia cálculos e processamentos complexos, por isso sabia que tinha cerca de oito a dez minutos de espera. O computador teria de analisar várias fotos tiradas pelas câmaras existentes no exterior da nave, comparando-as com os padrões conhecidos de várias constelações de estrelas, e comparando o espectro luminoso de cada estrela fotografada com o espectro conhecido de um conjunto de estrelas de referência. Depois de identificadas várias estrelas, em função da posição relativa de cada uma dessas estrelas, calcularia, então, a posição aproximada do local no espaço onde se encontravam.

Este primeiro cálculo não era muito exacto, tipicamente com uma margem de erro de cerca de dez por cento, mas serviria para saber se estava muito longe. No entanto, para usar o sistema de teletransporte teria de determinar com maior precisão a sua localização e a sua velocidade relativa. Naturalmente, num universo sem coordenadas absolutas e onde tudo tem de ser medido em relação a um referencial, a programação das coordenadas de destino no sistema de teletransporte teria de ser feita com o conhecimento da posição, tão exacta quanto possível, em relação ao destino pretendido.

Para saber com maior exactidão a sua posição, teria de usar o sistema de teletransporte para se deslocar para um local a algumas horas-luz de distância. Neste novo local a repetição da análise das posições das estrelas, em conjunto com a informação anteriormente recolhida e o cálculo por triangulação, permitiria determinar com bastante precisão a posição em que se encontrava.

Depois, para saber aproximadamente a velocidade, teria de esperar algumas horas e então repetir a análise estelar. O cálculo da diferença de posições permitiria determinar a velocidade.

Não querendo que o seu pensamento se arrastasse para a possibilidade de se encontrar demasiado longe da Terra, olhou pela janela para o exterior da nave. Vieram-lhe à memória os seus tempos de criança quando o pai o levava para o campo, em noites escuras de verão, para se deitarem no chão e ficarem ali a contemplar o céu e a contar estrelas cadentes. Sabia que não poderia ver estrelas cadentes neste local, mas a intensidade e o número daqueles pontos brilhantes era muito mais grandioso que qualquer imagem que tinha guardada como memória daquele tempo.

Apagou a luz da cabina, desligou o monitor do computador, libertou-se da cadeira e encostou a testa ao vidro da janela. Por momentos, naquela quase completa escuridão, com o corpo livre e sem peso, e com o campo de visão completamente preenchido com aquela paisagem estelar, sentiu uma sensação indescritível... como se aquele lugar existisse apenas para ele... como se fosse um insignificante grão de poeira cósmica...

Nem se deu conta de quanto tempo tinha ficado ali, completamente imóvel com o campo de visão rodando muito lentamente acompanhando um muito ligeiro movimento de rotação da nave sobre si própria.

Como que acordado de um sonho, voltou de novo a atenção para o computador e, segurando-se à cadeira, ligou o ecrã. Pouco depois a imagem mostra-lhe a sua localização em coordenadas polares, constituída por dois valores angulares e um valor de distância, uma distância de duzentos e sessenta e oito vírgula sete anos-luz...

(Continua)

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

O viajante – parte II

(Continuação de O viajante – Parte I)

"Erro no Sistema de Teletransporte Instantâneo". Esta mensagem dizia-lhe exactamente aquilo que ele já tinha percebido por si só, o sistema de teletransporte tinha tido uma falha.

Tinha essa capacidade de manter a calma, mesmo nas situações mais complexas, por isso mesmo tinha sido escolhido para aquela missão. A situação podia ser muito séria, ou tudo podia não passar de uma pequena anomalia que facilmente se poderia solucionar, por isso respirou fundo e dirigiu a sua atenção para o computador. Acedeu à área de testes e deu instruções para a execução das rotinas de teste e diagnóstico do sistema de teletransporte.

Enquanto esperava pelos resultados foi pensando nas possíveis razões para a situação em que se encontrava. Desde que haviam sido descobertos e divulgados os mecanismos de base do teletransporte, ele tinha-se empenhado em compreender o seu funcionamento, e tinha mesmo integrado a equipa de cientistas que tinha concebido e construído os primeiros protótipos. O sistema que fora colocado nesta nave não era muito diferente desses primeiros protótipos, além disso, como parte integrante do seu treino, ele tinha estudado exaustivamente todos os sistemas colocados a bordo. Esses conhecimentos poderiam revelar-se, agora, muito preciosos.

Os sistemas de teletransporte tinham sido descobertos há pouco mais de quatro anos por duas equipas independentes de cientistas. Estas equipas tinham descoberto, de forma totalmente independente, dois fenómenos físicos distintos que permitiam, cada um deles, a possibilidade de transportar matéria de um local no espaço para outro local distinto, sem a necessidade de percorrer o espaço tridimensional entre esses dois locais. Curiosamente nenhum destes sistemas seguia as linhas de investigação que, até então, a ciência e a ficção científica vinham explorando.

Apesar de terem sido descobertos quase em simultâneo, os dois sistemas eram completamente distintos. O primeiro, conhecido como Sistema de Teletransporte Instantâneo (STTI), permitia o transporte quase instantâneo de matéria entre dois locais, no entanto era bastante complexo e exigia a utilização de dispositivos de alta tecnologia, combinados numa máquina pesada e volumosa.

O segundo sistema de teletransporte, conhecido por Sistema de Teletransporte Adiado (STTA), era consideravelmente mais simples que o primeiro, no entanto a sua utilização obrigava a que uma viagem no espaço fosse também acompanhada por uma viagem no Tempo. Um viajante que utilizasse este sistema poderia ser transportado de um local no espaço para outro, mas enquanto para ele essa viagem seria praticamente instantânea, para um observador externo ela demoraria algum tempo. Este tempo dependia de vários factores de difícil contabilização, como a quantidade e a natureza da matéria a teletransportar, ou as intensidades dos campos magnéticos e gravíticos dos pontos de origem e de destino, podendo variar, aproximadamente, entre um terço e um vigésimo do tempo necessário para um raio de luz percorrer o espaço entre os dois pontos.

Esta característica estava a despertar um grande interesse de algumas empresas pelos STTA. Pretendiam utilizar sistemas destes para oferecer aos seus clientes uma forma de viajar para o futuro, permitindo-lhes, a troco de uma avultada soma de dinheiro, a possibilidade de ‘saltarem’ para o futuro.

A nave em que se encontrava estava equipada com os dois sistemas de teletransporte. O STTA fora incluído pelo facto de não ser muito complexo e de, ao contrário do STTI, ocupar pouco espaço, proporcionando ao astronauta uma forma alternativa de regresso à Terra no caso de uma falha não recuperável no STTI.

Enquanto continuava à espera dos resultados do programa de testes e diagnóstico, olhou pelas janelas à procura de um ponto mais brilhante que lhe indicaria a proximidade de uma estrela, desejavelmente do Sol, mas a sua busca foi interrompida por mudanças no ecrã do computador. O programa de testes e diagnóstico indicava-lhe uma falha num dos componentes mais sensíveis do complexo sistema de teletransporte.

Desapertou os cintos de segurança que o seguravam à cadeira e flutuou para a parte de trás da nave até um painel marcado com STTI. Rodou dois manípulos, abriu o painel e entrou dentro de um compartimento lotado com complexos dispositivos, interligados por um emaranhado de cabos e tubos. Do lado direito, um pouco acima da sua cabeça, o dispositivo que o computador identificara estava visivelmente danificado.

Não teve dúvidas de que não tinha como reparar aquela avaria. Onde quer que estivesse, não poderia contar com aquele sistema para voltar à Terra.

(Continua)

domingo, 11 de janeiro de 2009

O viajante – parte I

Estava sem palavras enquanto olhava para aquele planeta deslumbrante. Já antes tinha visto imagens daquele mesmo planeta, obtidas pelas sondas que o tinham precedido, mas estar ali e poder vê-lo com os seus próprios olhos, ainda que a uma distância de quase um milhão de quilómetros, era uma experiência indescritível.

Um súbito chamamento do computador de bordo fê-lo voltar à realidade. Esta não era uma viagem de passeio, ainda tinha um rigoroso programa de tarefas a executar e, ao contrário do que gostaria, não podia ficar ali parado a apreciar a paisagem.

O computador pedia-lhe autorização para iniciar o teste exaustivo a todos os sistemas da nave. Sabia que ele próprio estava incluído nesses testes, e sabia que se não se despachasse a dar a autorização pretendida o computador entraria num modo de contingência executando um conjunto de tarefas, previamente programadas antes da partida, e que deveriam levar a nave imediatamente de volta à Terra. Apressou-se, por isso, a tocar no ecrã, dando a desejada ordem para retomar o curso normal de actividades.

Sabia que teria de responder a algumas perguntas feitas pelo computador e que as suas respostas, juntamente com os resultados dos testes aos restantes sistemas da nave e a um sem fim de registos de telemetria, seriam gravadas na memória de uma pequena cápsula que seria deixada ali mesmo, em órbita com aquele planeta gigante. Caso alguma coisa corresse mal e ele não conseguisse regressar à Terra, seriam enviadas sondas para recuperar aquela cápsula a fim de diagnosticar as eventuais causas de um acidente, incluindo a possibilidade de ele próprio não se encontrar no pleno exercício das suas faculdades físicas ou intelectuais.

Tinha também preparado algumas palavras de circunstância para assinalar a ocasião, as quais ficariam também gravadas. Nada que se assemelhasse às palavras, também de circunstância, que Neil Armstrong havia proferido no momento do seu primeiro passo na superfície lunar, pois ele nunca fora muito bom com as palavras, mas que, ainda assim, lhe pareciam apropriadas.

Depois de feitas as perguntas, dadas as respostas e proferidas as palavras de circunstância, vê a cápsula ser libertada e passar lentamente em frente à janela de vigia à sua esquerda, numa silhueta escura em forte contraste com o colorido das nuvens do planeta ao fundo. A forma ovalada e escura da cápsula contrasta com a forma perfeitamente redonda de um pequeno satélite natural e da sua sombra, também redonda, projectada nas nuvens do planeta ligeiramente abaixo do equador.

Faltavam agora menos de dois minutos para que fossem activados os sistemas que o levariam de volta à Terra. Dedicou aquele tempo à contemplação daquela paisagem que sabia ser muito improvável poder voltar a ver. Tomou de novo consciência da importância daquela missão, do que representava para a humanidade, para a exploração espacial e para ele em particular.

Sabia que tinha garantido o seu lugar nos livros de história como o primeiro homem a ser teletransportado para um lugar longe da Terra, o primeiro homem a estar a mais de trezentos anos-luz de casa, contornando os obstáculos impostos à exploração espacial pela impossibilidade de viajar a velocidades superiores ou próximas da velocidade da luz, resultantes da teoria da relatividade de Albert Einstein. Era verdade que antes dele várias sondas não tripuladas tinham feito viagens daquele tipo, e que depois das sondas não tripuladas se tinha seguido um pequeno macaco, ele sim digno das honras do primeiro ser vivo a ser teletransportado. Mas também a cadela Laika fora o primeiro ser vivo a viajar para o espaço e no entanto foi Yuri Gagarin quem ficou com as honras de primeiro herói espacial.

O computador de bordo assinala-lhe o início dos procedimentos para o teletransporte de regresso. Ao contrário do primeiro teletransporte, que o tinha levado directamente de uma sala do centro especial para aquele local, a viagem de regresso tinha de ser feita para uma órbita acima da Terra, pois a margem de erro na escolha precisa do local de destino, especialmente àquela distância, não permitia que o regresso fosse feito directamente para o local de onde havia partido.

Alguns ruídos surdos, uma ligeira vibração na nave e depois tudo volta a estar calmo. Assim tão simples, numa breve fracção de segundo e estava de volta. Olhou pelas várias janelas e para os vários monitores que lhe transmitiam imagens captadas por câmaras no exterior, e que lhe permitiam ter uma visão total à volta da nave, mas não conseguiu encontrar a Terra ou o Sol... Todas as imagens lhe mostravam os típicos pontos de luz das estrelas, mas sem quaisquer sinais da Terra, do Sol ou daquele deslumbrante planeta. Subitamente no ecrã do computador acende-se uma enigmática mensagem de erro…

(Continua)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Questões de Calendário

Apenas uma convenção… sim, é apenas uma convenção, como tantas outras, esta forma de medir o tempo. Mas medir o tempo é importante, e é necessário, por isso é perfeitamente natural que se use para esse efeito, como uma das unidades base, o tempo que a Terra demora a completar uma volta em torno do Sol. Apesar de a noção de Ano ser muito anterior à descoberta do movimento de translação da Terra em torno do Sol, a verdade é que os vários calendários criados pelo homem quase sempre se basearam no ciclo repetitivo das estações e, consequentemente, estão associados a esse movimento.

Esta definição, aparentemente simples, implicou, no entanto, várias dificuldades desde os primeiros calendários até ao Calendário Gregoriano que utilizamos actualmente. Estas dificuldades resultaram do facto de o tempo necessário para a Terra percorrer uma órbita completa em torno do Sol não se poder medir num número inteiro de dias. Mais concretamente, o Ano Tropical tem uma duração de 365,24218967 dias, ou 365 dias 5 horas 48 minutos e um pouco mais de 45 segundos. Este facto levou à necessidade da introdução de anos bissextos como forma de compensar a diferença.

No entanto, apesar destas correcções, e devido ao facto de o período orbital da Terra não ser constante, existe a necessidade de, ocasionalmente, introduzir correcções adicionais. Nesse sentido o ano de 2008 terá um segundo adicional, acrescentado nos instantes finais que antecedem a passagem para 2009. Por isso quando fizerem a contagem decrescente de despedida de 2008 e boas vindas de 2009, não se esqueçam de contar da seguinte forma: dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um, um, ZERO!

Já agora, seguindo as convenções do Calendário Gregoriano, o Cantinho dos Devaneios faz hoje exactamente um ano, o que, tendo sido 2008 um ano bissexto, equivale a 366 dias. Não que isso tenha alguma especial importância, apenas a consequência de uma convenção…