quarta-feira, 25 de junho de 2008

Lavagem...

Sentia-a suja, imunda mesmo!... Tinha passado por muitas batalhas, muitas delas perdidas, tinha caído no chão e tinha sido arrastada, espezinhada…

Sentiu-se completamente esmagado com o peso de toda aquela sujidade, como se o universo inteiro se tivesse abatido sobre ele e não o deixasse respirar… não, não podia esperar mais!... a lavagem tinha de ser feita rapidamente!

Depois do jantar esperou que os restantes membros da família se fossem retirando, aos poucos, para o merecido descanso e deixou-se ficar, aguentando o cansaço e o desejo de procurar igual conforto.

Esperou um pouco mais para dar tempo a que todos adormecessem. Aquela lavagem era uma tarefa solitária, só dele, um acto do mais elementar egoísmo que não podia ser partilhado nem interrompido.

Dirigiu-se à estante da sala e retirou um CD, depois dirigiu-se à aparelhagem, colocou o CD no leitor, ligou os auscultadores, puxou uma almofada de uma cadeira próxima e colocou-a no chão junto do móvel da aparelhagem.

Apagou a luz e, no escuro, deitou-se no chão com a cabeça na almofada e colocou os auscultadores. Durante algum tempo deixou-se ficar ali sentindo o silêncio, a escuridão e o conforto do chão duro nas costas. Depois, lentamente, levantou o braço direito e, tacteando pelo leitor, carregou no botão de “Play”. Esperou pelos primeiros acordes para ajustar o volume e depois baixou o braço colocando-o ao longo do corpo, na perfeita simetria com o braço esquerdo.

Fechou os olhos. Todos os seus sentidos estavam concentrados naquela música que agora se começava a desenrolar.

Menos de um minuto passado desde o início da primeira faixa, a entrada do baixo, logo seguida pela entrada do coro, primeiro com as vozes masculinas e pouco depois com as femininas, provocou-lhe um arrepio que se propagou a todas as partes do corpo. Sentiu as raízes de cada cabelo do seu corpo como se fossem alfinetes espetados na pele.

Pouco depois, a entrada da soprano inunda-lhe os olhos. Sente-se flutuar, como se tivesse sido transportado daquela sala e daquele chão para uma outra dimensão. A intensidade de sensações assume proporções cada vez maiores até que o coro, adivinhando a necessidade de uma pausa urgente naquele turbilhão de emoções, se esvai num “et lux perpetua luceat eis”.

Mas a pausa é curta, ainda mal acabara de recuperar o fôlego e já o “Kyrie eleison” lhe arrancava de novo a respiração…

“Dies irae”

“Tuba Mirum”

“Rex tremendae”

Do lado direito, um primeiro fio, impossível de conter por mais tempo no limitado volume da cavidade ocular, abriu caminho pelo canto exterior do olho, seguindo depois, muito lentamente, em direcção à orelha, passando junto à almofada do auscultador em direcção ao pescoço e perdendo-se no emaranhado de cabelo entalado contra a almofada.

Talvez por uma menor produção da glândula lacrimal esquerda, talvez por uma ligeira inclinação da cabeça mais para o lado direito, ou talvez por um maior volume da cavidade ocular esquerda, resultante de alguma imperceptível falta de simetria na anatomia facial, que, como bem sabemos, os dois lados, esquerdo e direito, nunca são exactamente iguais, do lado esquerdo só alguns breves segundos depois escorreu um fio semelhante ao que havia escorrido do direito.

Sentiu cada milímetro daqueles dois percursos, um após o outro, daquelas duas primeiras lágrimas, lentas e hesitantes, à medida que iam vencendo a resistência imposta pela pele ainda seca. Não, não fez qualquer tentativa para enxugar os olhos ou para limpar os rastos molhados de ambos os lados da cara. Não, aquelas lágrimas tinham de percorrer o seu caminho sem qualquer perturbação…

“Recordare”

“Confutatis maledictis”

Os fios lentamente traçados por aquelas duas primeiras lágrimas eram agora fluxos contínuos, percorridos sem dificuldade e espalhando-se pelo cabelo e pela almofada.

“Lacrimosa”

“Domine Jesu”

“Hostias”

Pelos fios abertos passam agora os últimos vestígios de uma cheia que, aos poucos, se esgota.

“Sanctus”

“Benedictus”

Acabaram-se as lágrimas…

“Agnus Dei”

“Communion”.

No súbito silêncio, abriu lentamente os olhos, agora quase completamente secos… Retomou a consciência do mundo à sua volta, do escuro da sala, do chão duro debaixo das costas, do cabelo molhado junto ao pescoço…

Ficou ali, de olhos abertos olhando o escuro. Interrogou-se, como fazia sempre, sobre aquele curioso facto de uma obra concebida para acompanhar na morte ter esta capacidade de, a ele, lhe trazer tanta vida… e como seria se o autor tivesse vivido o tempo suficiente para ser ele a terminar aquela obra deixada incompleta?… que sensações e emoções teria sentido naqueles últimos quarenta e cinco minutos ao ouvir essa obra completa?...

Levantou-se, desligou a aparelhagem e arrumou a almofada e os auscultadores e dirigiu-se para a cama.

A alma estava agora limpa… enrugada, tal como uma qualquer peça de roupa acabada de recolher do estendal, mas limpa… Imaculadamente limpa.