sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Caprichos do Acaso - parte I

Foi notícia de abertura do noticiário. Não que o acontecimento fosse especialmente extraordinário, como o jornalista fez questão de salientar, mas porque, na ausência das habituais notícias sobre guerras, atentados, desastres, escândalos, desfalques, ou outras igualmente capazes de prender a atenção dos espectadores, o director de informação achou ser aquela a que melhor permitira reduzir a probabilidade de eles se sentirem tentados a procurar melhor sorte noutro canal.

“O sorteio do loto não é, normalmente, tema de abertura dos noticiários, mas o sorteio de hoje ditou uma chave curiosa. Os números sorteados foram o um, o dois, o três, o quatro, o cinco, o seis, e o número suplementar o sete. Mais curioso ainda é o facto de os números terem saído exactamente por esta ordem, ou seja, do um ao sete.”

As imagens dos momentos em que cada um dos números saiu da tômbola foram repetidas. Uma jornalista, de quem não se vê a cara, mas que se imagina tão doce quanto a sua voz, descreve o sucedido, como se as imagens, por si só, não fossem prova bastante.

O perito, chamado a comentar o sucedido, também faz questão de realçar que o facto nada tem de anormal:

“De facto, a chave sorteada hoje é tão provável quanto qualquer outra, tão provável quanto cada uma das que foram sorteadas nas semanas anteriores, e que não foram motivo de abertura de noticiários.

A probabilidade de o número um ser o primeiro a sair é de uma em quarenta e nove. Depois de ter saído o um, a probabilidade de sair o dois é de uma em quarenta e oito, e assim sucessivamente. A probabilidade do sorteio de hoje era de uma em quarenta e nove, vezes quarenta e oito, vezes quarenta e sete, vezes quarenta e seis, vezes quarenta e cinco, vezes quarenta e quatro, vezes quarenta e três. Ou seja, de uma em quatrocentos e trinta e dois mil milhões novecentos e trinta e oito milhões novecentos e quarenta e três mil trezentos e sessenta… mas esta é exactamente a mesma probabilidade da sequência sorteada na semana passada, se tivermos em conta a ordem em que os números saíram.”

Durante os dias seguintes, aparte alguns comentários ocasionais em conversas de circunstância, pouca atenção voltou a ser dada à curiosa chave do loto. Os apostadores premiados lá foram reclamando os respectivos prémios, uns melhores que outros, em função da quantidade de números acertados. Houve mesmo dois apostadores a acertar na chave sorteada e, consequentemente, dividiram entre si o primeiro prémio.

Os apostadores habituais e os ocasionais lá foram registando as suas apostas para o sorteio seguinte, tal como vinha acontecendo desde a primeira semana em que se tinha iniciado este jogo.

Chega o momento do novo sorteio… a câmara foca a tômbola que gira… depois a imagem mostra a bola que vai rolando pela saída até à primeira posição na calha, é o um… a imagem mostra, de novo, a tômbola que gira… e logo de seguida uma nova bola rola e toma o seu lugar a seguir à primeira, é o dois… uma vez mais a tômbola que gira… e uma nova bola que rola e que toma o seu lugar, é o três… outra vez a tômbola que gira… e outra vez a bola que rola, é o quatro… a tômbola que gira… a bola que rola, é o cinco… a tômbola… a bola, é o seis… a tômbola que continua girando e que para de girar no momento em que a bola do número suplementar inicia, rolando, o seu caminho até ao lugar que lhe está reservado, e onde para de rolar… é o sete.

(Continua)

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Encontros de olhares

Queria ir para casa, já não suportava mais aquele vai e vem de loja em loja com a mãe sempre a puxar-lhe pela mão.

“Mãe, vamos para casa!...”

“Tem calma, amanhã é o teu primeiro dia de escola e ainda nos falta comprar muita coisa!”

Sim, ia para a escola… há vários dias que não parava de pensar como seria esse dia, como seriam os colegas… como seria o professor… a mãe tinha-lhe dito que na escola todos os meninos e meninas tinham de se portar sempre muito bem, que tinham de estar todos com muita atenção ao que o professor dizia... tinha medo!...

De repente o seu olhar cruzou-se com outro olhar... sem saber porquê vieram-lhe à memória imagens difusas... tudo muito branco... um berço... lençóis frios... chorou no seu choro de bebé recém-nascido... uma voz calma sussurrou-lhe uma melodia ao ouvido e aconchegou-lhe o lençol... parou de chorar... ouvem-se vozes, vozes que não consegue entender... algum reboliço e depois o silêncio... o seu olhar cruza-se com outro olhar num berço ali ao lado... o mesmo olhar que agora está à sua frente e que olha com igual medo e igual perplexidade!...

“Vamos, vamos... valha-me Deus, ainda temos de ir comprar as batas brancas!...”

...

Enquanto espera na paragem pelo autocarro, recorda aquele medo que antecedeu o primeiro dia de escola... não é muito diferente o medo de hoje!... o primeiro dia de trabalho!... quase não conseguiu dormir na expectativa desse novo futuro que hoje começava...

Entra no autocarro e aconchega-se num lugar junto à janela, mesmo por detrás do motorista. Pouco depois o autocarro imobiliza-se no final de uma fila de carros que esperam impacientemente pelo verde do semáforo. Do outro lado da rua, numa fila de espera para um autocarro que tarda em chegar, o seu olhar cruza-se com outro olhar...

Vêm-lhe à memória as imagens da azafama das compras na véspera do primeiro dia de escola, e logo de seguida as imagens difusas do branco, do berço, dos lençóis frios, do choro de bebé, da melodia, do outro olhar vindo do berço ali ao lado... o mesmo olhar que agora está à sua frente e que olha com igual expectativa e igual perplexidade!...

A impaciência da espera pelo verde do semáforo dá lugar à pressa de passar antes do regresso do vermelho...

...

Deteve-se inconscientemente em frente da montra de uma loja de artigos para crianças. O seu olhar foi percorrendo a montra até se deter no seu próprio reflexo. Estava verdadeiramente feliz... uma felicidade que podia ser vista, mesmo no difuso reflexo da montra... Há menos de quatro meses que tinham decidido ter um filho, mas só hoje, após a confirmação da análise feita na farmácia, tinham realmente começado a entender a importância dessa decisão.

Pouco depois, enquanto espera na estação pelo comboio do metro que porá fim aquela interrupção da rotina normal de um dia de trabalho, outro comboio faz a paragem obrigatória do outro lado da linha colocando à sua frente um outro olhar...

Vêm-lhe à memória as imagens de uma viagem de autocarro, as imagens da azafama das compras na véspera do primeiro dia de escola, as imagens difusas do outro olhar do berço ali ao lado... o mesmo olhar que agora está à sua frente e que olha com igual felicidade e igual perplexidade!...

...

Alguém lhe diz “não se preocupe, vai correr tudo bem”... já na maca olha para o lado e vê o que resta do carro acidentado... interroga-se se será mesmo possível ter saído dali com vida... enquanto a maca avança em direcção à ambulância, surge-lhe no campo de visão, numa outra maca, um outro olhar...

Vêm-lhe à memória as imagens de um comboio numa estação de metro, as imagens de uma viagem de autocarro, as imagens da azafama de um dia de compras, as imagens difusas do outro olhar do berço ali ao lado... o mesmo olhar que agora está ao seu lado e que olha com igual sofrimento e igual perplexidade!...

...

Tinha finalmente cedido aos incessantes argumentos dos filhos para se reformar... que devia aproveitar o resto da vida para se divertir, para passear, para conviver com os netos... que já tinha dado contributo mais do que bastante à sociedade... E assim se tinha resignado à condição imposta pela idade...

Em frente do edifício da Segurança Social, onde acabara de tratar das últimas burocracias, fez sinal a um táxi que passava. Do outro lado da rua alguém sai de outro táxi e começa a atravessar a rua. Nos breves instantes em que o taxista leva a interpretar a morada de destino pretendida e o início da viagem, o seu olhar cruza-se com aquele outro olhar...

Vêm-lhe à memória as imagens ensanguentadas de uma maca que entra para uma ambulância, as imagens de uma estação de metro, as imagens de um autocarro, as imagens de um dia de compras, as imagens difusas do outro olhar do berço ali ao lado... o mesmo olhar que agora está ao seu lado e que olha com igual resignação e igual perplexidade!...

...

Um cortejo passa o portão e segue em marcha lenta. O silêncio é apenas perturbado pelo distante chilrear de alguns pássaros e pelo som dos passos lentos no caminho, no mais profundo contraste entre a alegria dos primeiros e o luto dos segundos.

À porta do cemitério outro cortejo espera pela sua vez.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Descoberta Indiscreta - parte III

(continuação da Descoberta Indiscreta - parte I e parte II)

Tinha na sua frente a mais extraordinária aplicação para a sua descoberta... e no entanto, se pudesse, voltaria atrás... abdicaria de todo este sucesso... abdicaria dos Prémios Nobel da Física e da Medicina... só para poder viver o resto da sua vida sem aquilo...

Mas não havia forma de voltar atrás, a avalanche tinha começado e era agora completamente impossível pará-la. Em breve, no espaço de meses, aquela tecnologia estaria disponível a qualquer pessoa no mundo... meses que poderiam ser dias para quem tivesse os meios apropriados...

Era o fim dos segredos, o fim das mentiras, o fim dos esconderijos, o fim dos crimes por resolver, o fim dos ataques surpresa, o fim das dúvidas da história, o fim dos bluffs, o fim dos detectives, o fim dos erros da justiça, o fim dos adultérios, o fim das portas trancadas, o fim dos cofres, o fim da privacidade...

Todos os jogos passariam a jogar-se com as cartas viradas para cima... tudo o que pertencesse ao passado, ainda que por insignificantes fracções de segundo, poderia ser visto sem limitações...

O telemóvel vibrou em cima da secretária, mostrando o nome do seu amigo do CERN no visor. Atendeu. Antes que pudesse pronunciar alguma palavra, já o silêncio se quebrara do outro lado da linha:

“Don’t waste your time trying to find any flaw in your calculations, they are correct...

I have put together some of my lab’s equipment and I have been watching the world for almost a week now... I have found some very interesting things!... right now I am watching what you were doing less than two minutes ago. I can’t get any closer to the present with this equipment, but it will not be very difficult to build a device that could break this barrier down to a few microseconds.”

“So this is the end of privacy...”

“Yes, the end of privacy, the end of all kinds of secrets...”

“The end of the world as we know it...”

“Yes, and the beginning of a new one... fortunately your discovery only allows us to look into the past, so we will have to wait to see if it is going to be a better one...”

FIM

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Descoberta Indiscreta - parte II

(continuação da Descoberta Indiscreta - parte I)

Puxou para si o teclado e o rato do computador e introduziu a sua palavra-chave. Abriu caixa de correio e preparou-se para a árdua tarefa de encontrar a mensagem do seu amigo. Ao contrário do telemóvel, o seu endereço de correio electrónico era muito conhecido e as mensagens não tinham parado de chegar, incessantemente, desde o dia em que a descoberta se tinha tornado pública.

Havia mensagens de todos os tipos possíveis e imaginários, isto para não falar das mensagens de SPAM que lhe propunham toda uma infindável panóplia de produtos e serviços. Felizmente instalara um programa que lhe eliminava a esmagadora maioria destas mensagens, no entanto algumas conseguiam iludir o automatismo e lá lhe apareciam oferecendo as mais fantásticas soluções para, entre outras coisas irrecusáveis, melhorar o seu desempenho sexual ou para aumentar o tamanho do pénis.

Costumava brincar com os seus colegas dizendo “alguma daquelas tipas que levei para a cama deve ter ficado insatisfeita e decidiu fazer-me um favor dando o meu endereço a especialistas reconhecidos na matéria...”. Maneira de falar e de brincar, pois sempre optara por se manter fiel aquela relação que já durava há quase vinte e cinco anos, e para a qual não tinha sido necessária a bênção de um padre nem o formalismo de um conservador.

Lá estava, finalmente, a mensagem do seu amigo do CERN. Abriu-a e começou a ler com a atenção que o cansaço acumulado lhe permitia.

Como raio se teria o amigo lembrado daquelas condições?... que aplicação útil poderia resultar dali?... Recostou-se de novo na cadeira e fechou os olhos para melhor se concentrar no desafio que lhe era proposto. Durante vários minutos ficou assim, montando mentalmente as condições e prevendo os resultados, como quem joga uma partida de xadrez sem usar tabuleiro.

De repente esbugalhou os olhos como se, nesse preciso instante fosse necessário ver alguma resposta estampada à sua frente. Continuou de olhos esbugalhados e olhar vago à medida que se foi endireitando na cadeira. Depois, como se repentinamente tivesse tomado uma importante decisão, numa súbita necessidade de reproduzir no tabuleiro o xadrez mentalmente jogado, retirou uma folha de papel do tabuleiro da impressora, pegou num lápis e começou a debitar fórmulas e símbolos matemáticos, uns a seguir aos outros... retirou uma segunda folha do tabuleiro da impressora... e depois uma terceira.

Dispôs as folhas lado a lado e ali ficou durante algum tempo, a olhar para elas, procurando encontrar uma jogada ilegal, de um cavalo que não desenhou correctamente o “L”, de um Bispo que se desviou da diagonal, de um peão demasiado apressado... de uma divisão por zero, de uma tangente de um ângulo recto, de uma co-tangente de um ângulo nulo ou raso, de uma raiz quadrada de um número negativo, de um logaritmo de um número que não fosse maior que zero...

Mas não, todas as peças se tinham movido escrupulosamente dentro das regras, não havia nenhum erro, nenhuma passagem em falso, nenhuma violação das regras da matemática que o pudesse salvar daquele desfecho inevitável e inquestionável...

(Continua)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Descoberta Indiscreta - parte I

Deixou cair o corpo cansado e encostou-se para trás, tanto quanto a cadeira lhe permitia. Finalmente um pouco de sossego e de descanso na solidão do seu gabinete! Tinham sido três semanas completamente alucinantes. As três semanas mais compridas e mais gratificantes da sua vida! Três semanas de conferências, palestras, entrevistas, mais conferências, mais palestras, mais entrevistas… Aqueles momentos que antecederam a descoberta pareciam-lhe agora estranhamente distantes no tempo, como se tivessem passado três anos.

Conseguira! Durante mais de vinte e dois anos tinha trabalhado arduamente na incerteza de conseguir encontrar o que procurava! Mas encontrara!... E todo esse esforço lhe parecia agora sobejamente compensado. O Prémio Nobel da Física estava garantido, seria tão consensual e tão fácil de atribuir, como nenhum outro antes fora. Na realidade, a descoberta que tinha feito era tão extraordinária, com um tão grande potencial de aplicabilidade, que bem poderia merecer também outros prémios de outras áreas… o Nobel da Medicina, por exemplo, tal era o potencial da sua descoberta em novos meios de diagnóstico e de tratamento.

Mas havia um preço a pagar!... A privacidade que tanto apreciava estava irremediavelmente perdida. As implicações da sua descoberta tinham-no atirado para uma incontrolável exposição mediática, tornando-o, num abrir e fechar de olhos, numa das caras mais conhecidas do mundo, quem sabe se não mesmo a mais conhecida. Deixaria de poder passear-se anonimamente numa qualquer rua, em qualquer lugar do mundo.

Mas estava demasiado cansado para se preocupar com isso agora. Haveria muitas outras oportunidades para pensar nesta e noutras questões pertinentes, por isso foi permitindo que o pensamento se esvaziasse pouco a pouco...

Uma subtil vibração no bolso do casaco arrancou-o da letargia que fora tomando conta de todo o seu corpo, e que sub-repticiamente o ia arrastando para um sono indiferente ao desconforto da cadeira.

A bem da tão apreciada privacidade optava por usar o telemóvel apenas para se comunicar com um circulo muito restrito de familiares e amigos mais chegados, por isso calculou que seria a sua companheira a enviar-lhe um SMS, tentando saber, sem causar interrupções embaraçosas, se o dia já tinha terminado ou se, pelo contrário, ainda se demorava.

Mas não, para sua surpresa, o SMS tinha-lhe sido enviado pelo seu velho amigo dos tempos do CERN: “Can you now give some attention to my email?”

Lembrou-se então da mensagem de correio electrónico que o seu amigo lhe tinha enviado há quase duas semanas. A mensagem referia-se a qualquer coisa relacionada com a aplicação da sua descoberta em determinadas condições, mas na loucura daquelas semanas não tinha tido tempo para analisar melhor, e já quase tinha esquecido o assunto. Pelos vistos ele não se tinha esquecido, e esta mensagem, enviada precisamente nesta altura, era a prova clara de que o amigo tinha acompanhado pacientemente o desenrolar das últimas semanas e, consciente de que o pior já teria passado, cobrava-lhe agora um pouco de atenção.

(Continua)