sexta-feira, 25 de abril de 2008

Sonhos Cruzados - parte II

(continuação de Sonhos Cruzados – parte I)

Enquanto entrava no duche para se colocar debaixo da chuva de água quente que todas as manhãs a resgatava, definitivamente, da sonolência, interrogou-se sobre aquele estranho sonho, tentando recordar mais detalhes e mais imagens. E foi de olhos fechados, com a água do chuveiro a cair-lhe na cabeça e a escorre-lhe pelo corpo, que se deu conta do sonho daquela outra mulher com quem tinha sonhado… apercebeu-se que a outra, a loira de cabelo curto e olhos azuis, tinha sonhado com ela, a morena de cabelo comprido e olhos castanhos…

Ali ficou estática, recordando aquele sonho que se prolongava pelo dia de trabalho de uma mulher loira de cabelo curto e olhos azuis… um dia de trabalho intenso, aqui e ali salpicado pelas recordações de um sonho onde era uma morena de cabelo comprido e olhos castanhos…

Estava bastante confusa… ela, morena de cabelos compridos e olhos castanhos, tinha tido um sonho no qual era uma outra mulher, loira de cabelo curto e olhos azuis, que, por sua vez, tinha tido um sonho no qual era uma outra… A loira do sonho tinha sonhado com o dia que ela própria, a morena, tinha vivido ontem!…

As imagens daquele sonho apareciam-lhe tão nítidas como se as tivesse vivido de verdade… Abriu os olhos e debruçou-se um pouco para se conseguir olhar no espelho, já meio embaciado pelo vapor do chuveiro, só para ter a certeza de que este lhe devolvia a imagem de uma cara com cabelo escuro e comprido…

Ocorreu-lhe então uma ideia perturbadora… a ideia de que ela própria poderia não ser mais do que um sonho sonhado pela loira de cabelo curto e olhos azuis… Quase instintivamente beliscou-se violentamente no braço, na expectativa de acordar em sobressalto e de correr para a casa de banho para encontrar a sua imagem, de cabelo loiro curto e olhos azuis, reflectida no espelho.

Mas não… ali continuava, com a água quente a escorrer-lhe pelo corpo e uma dor bem viva no braço esquerdo… Podia então concluir que ela era real e que a outra, a loira de cabelo curto e olhos azuis, era apenas uma criação da sua imaginação… um sonho estranho, mas apenas isso, um sonho!...

Apressou-se a terminar o banho e a arranjar-se para sair de casa para mais um dia de trabalho. Tinha um programa bastante apertado de experiências para realizar e não podia dar-se ao luxo de perder tempo por causa de um simples sonho.

Ao longo do dia só a dor persistente no seu braço esquerdo, e a mancha que gradualmente se fora transformando de vermelho para verde escuro, lhe trouxeram recordações ocasionais daquela manhã e das imagens plantadas durante a noite. Passava já bastante da normal hora de jantar quando, finalmente, conseguiu concluir o programa de experiências e de observações que tinha programado para aquele dia.

Finalmente em casa, e depois de comer qualquer coisa rápida, sentou-se no sofá e ligou a televisão no canal de notícias para se pôr a par com o que tinha acontecido pelo mundo. No entanto, o cansaço apoderou-se rapidamente dela, e foi já meio cambaleante que se dirigiu para o quarto e se enfiou dentro da cama. Não teve dificuldades em adormecer.

O despertador arrancou-a do sono à hora habitual de qualquer dia de trabalho. Preparava-se para sair da cama quando lhe vieram à memória as primeiras imagens daquele sonho… tinha sonhado de novo com a morena de cabelo comprido e olhos castanhos…

Apercebeu-se então que também a morena tinha sonhado com ela… lembrou-se das dúvidas da morena e do beliscão no braço… lembrou-se da conclusão a que chegara pelo facto de não ter acordado… seria possível?... seria ela, a loira, um mero sonho da morena?... Quase instintivamente sentou-se na cama e beliscou-se violentamente no braço, na expectativa de acordar em sobressalto e de correr para a casa de banho para encontrar a sua imagem, de cabelo escuro comprido e olhos castanhos, reflectida no espelho.

Mas não… ali continuava, sentada naquela mesma cama com uma dor bem viva no braço esquerdo…

(continua)

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Sonhos cruzados - parte I

Saiu penosamente da cama e foi cambaleando até à casa de banho. Deixou-se ficar sentada na sanita mais do que o tempo necessário para se aliviar das necessidades fisiológicas matinais, o tempo necessário para que o seu corpo e o seu cérebro despertassem. Finalmente levantou-se e, já mais desperta, meteu a mão pela porta para chegar ao interruptor e acender a luz. De olhos entreabertos para evitar o encandeamento da súbita luminosidade, olhou-se ao espelho, cumprindo o ritual de todas as manhãs.

A repentina surpresa fê-la abrir completamente os olhos para ver melhor aquela imagem que o espelho lhe devolvia, como se não fossem aqueles olhos azuis os mesmos que todas as manhãs a olhavam do lado de lá, como se fosse diferente aquele cabelo loiro de corte curto, ainda desalinhado pela almofada.

Virou-se para o chuveiro, achando-se estúpida por se ter surpreendido com o reflexo da sua imagem que tão bem conhecia, e preparava-se para abrir a água quente quando lhe vieram à memória imagens plantadas durante a noite… imagens de um espelho não muito diferente daquele ao qual tinha acabado de virar as costas, numa casa de banho não muito diferente desta sua… mas era bastante diferente a imagem que agora recordava, reflectida naquele outro espelho… a imagem de uma cara bonita, de olhos castanhos e cabelo escuro e comprido.

Enquanto entrava no duche para se colocar debaixo da chuva de água quente que todas as manhãs a resgatava, definitivamente, da sonolência, interrogou-se sobre aquele estranho sonho, tentando recordar mais detalhes e mais imagens. Estas foram-lhe aparecendo cada vez mais nítidas, quase reais, como se fossem fragmentos de um dia realmente vivido num outro corpo…

Finalmente desperta, e finalmente consciente das responsabilidades que a esperavam no escritório, apressou-se a sair do banho e a preparar-se para sair de casa. Engoliu rapidamente um copo de leite frio e saiu de casa ainda a mastigar uma bolacha.

Já no autocarro, vieram-lhe ao pensamento imagens da morena do sonho, também ela apressada para sair de casa e apanhar o autocarro. Para onde iria ela, qual seria o seu destino matinal?... Concentrou-se um pouco mais naquelas imagens, às quais se sucederam novas imagens, nítidas como se as tivesse vivido de verdade, de uma viagem de autocarro, depois um breve percurso a pé e, finalmente, a entrada num edifício moderno…

Saiu do autocarro e, enquanto percorria a pé o percurso final até ao escritório, continuou também a percorrer aquelas recordações… vestia agora uma bata branca e, enquanto metia as mãos por baixo do cabelo comprido para o libertar da bata, deixando-o solto, viu-se novamente reflectida no espelho, morena de cabelo comprido e olhos castanhos, bonita… depois, satisfeita com a imagem que o espelho lhe mostrava, afastou-se e entrou no laboratório onde se sentou no seu lugar e depositou os olhos castanhos no microscópio.

A recordação destas memórias foi interrompida com a chegada ao escritório. O patrão também já tinha chegado. O dia de trabalho que agora começava ia ser muito intenso, por isso entregou-se rapidamente às suas responsabilidades.

Na breve pausa para o almoço recordou a também breve pausa do almoço sonhado. Também ela, a morena, parecia atarefada, não pelo volume de trabalho que um qualquer patrão lhe entregava, mas pelo entusiasmo do trabalho em si. Não conseguia recordar-se da exacta natureza do trabalho dela, mas pressentia uma excitação que ela própria nunca sentira naquele trabalho de secretária de administração.

Muito do sucesso da viagem de negócios do patrão dependia do trabalho que ainda havia para fazer, e o sucesso dela própria dependia, também, deste mesmo sucesso. A tarde correu, por isso, ainda mais intensa que a manhã. Felizmente o dia seguinte, com o patrão em viagem, seria mais calmo.

A noite ia já avançada quando finalmente deixou tudo pronto e desceu para apanhar um táxi que a levasse de volta a casa. Enquanto o táxi a transportava através das luzes da cidade, o seu pensamento transportou-a de novo numa viagem pelas memórias adquiridas durante a noite. Deu-se conta que tinha sonhado um dia completo daquela outra mulher, morena de olhos castanhos, bonita… um dia desde o acordar até ao adormecer, passando por toda a azáfama de um dia de trabalho num laboratório.

Surpreendeu-se de novo com a nitidez com que se recordava de tudo, embora, por outro lado, não conseguisse recordar-se do nome dela, da morena… nem do nome dos seus colegas… esforçou-se por tentar reconstruir alguns dos diálogos sonhados, mas apesar de recordar com clareza o que tinha sido dito, não conseguia reconstruir as palavras, nem a língua em que tinham sido pronunciadas…

Mas estava demasiado cansada, por isso desligou-se do sonho e, já em casa, comeu qualquer coisa rápida e foi para a cama. Não teve dificuldades em adormecer.

Saiu penosamente da cama e foi cambaleando até à casa de banho. Deixou-se ficar sentada na sanita mais do que o tempo necessário para se aliviar das necessidades fisiológicas matinais, o tempo necessário para que o seu corpo e o seu cérebro despertassem. Finalmente levantou-se e, já mais desperta, meteu a mão pela porta para chegar ao interruptor e acender a luz. De olhos entreabertos para evitar o encandeamento da súbita luminosidade, olhou-se ao espelho, cumprindo o ritual de todas as manhãs.

A repentina surpresa fê-la abrir completamente os olhos para ver melhor aquela imagem que o espelho lhe devolvia, como se não fossem aqueles olhos castanhos os mesmos que todas as manhãs a olhavam do lado de lá, como se fosse diferente aquele cabelo escuro e comprido, ainda desalinhado pela almofada.

Virou-se para o chuveiro, achando-se estúpida por se ter surpreendido com o reflexo da sua imagem que tão bem conhecia, e preparava-se para abrir a água quente quando lhe vieram à memória imagens plantadas durante a noite… imagens de um espelho não muito diferente daquele ao qual tinha acabado de virar as costas, numa casa de banho não muito diferente desta sua… mas era bastante diferente a imagem que agora recordava, reflectida naquele outro espelho… a imagem de uma cara bonita, de olhos azuis e cabelo curto e loiro.

(continua)

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Encontro

Nunca se tinha sentido tão triste e tão angustiada. Precisava de chegar a casa para se esconder, para chorar, para gritar!… entrou na casa de banho e lavou a cara com água fria, numa tentativa desesperada de segurar as lágrimas que lhe rebentavam nos olhos, e o grito que lhe subia pela garganta. Olhou a sua cara molhada no espelho e viu-a totalmente transfigurada naquela máscara de sofrimento. Secou apressadamente a cara, saiu da casa de banho, contornou os corredores, meteu pela escadaria e iniciou a descida.

O elevador seria mais rápido do que descer a pé os quatro andares que a separavam da rua, mas não queria encontrar-se com mais ninguém, muito menos no espaço apertado do elevador. As escadas, pelo contrário, estariam desertas, e mesmo que se cruzasse com alguém menos comodista, poderia continuar a descer apressadamente, reduzindo os eventuais encontros a simples cruzamentos de ombro com ombro... não de olhos com olhos, que esses seguiam colados aos degraus que lhe fugiam debaixo dos pés a grande velocidade, com a mão firme no corrimão para evitar alguma fatal perda de equilíbrio.

O frio do inverno tardio bateu-lhe na cara, ajudando-a a reprimir as lágrimas. Avançou pela rua, meio curvada, não para se esconder do frio, mas para se esconder do mundo e das outras pessoas que passavam. Apressou o passo pelo caminho mais curto, seguindo curvada e encostada às paredes dos prédios, numa tentativa desesperada de se esconder dos olhares da multidão que, apesar de frios e indiferentes, a trespassavam como flechas em chama.

Subitamente, ao virar para outra rua, chocou de frente com alguém que vinha no sentido oposto, também curvada e também encostada às paredes dos prédios, numa igual tentativa de se esconder de frios e indiferentes olhares.

Frente a frente olharam-se mutuamente. Nunca se tinham visto, mas reconheceram na cara uma da outra a mesma tristeza, a mesma angústia, a mesma máscara de sofrimento.

Instintivamente envolveram-se num abraço forte e contínuo, não num abraço de amantes, mas num abraço de irmãs. As lágrimas, impossíveis de reprimir por mais tempo, irromperam em enxurradas incontroláveis e os gritos soltaram-se das gargantas. Num tempo que não conseguiram contabilizar, o universo ficou reduzido a elas próprias, alheias à vida que continuava a correr à sua volta e aos olhares de quem passava.

Finalmente, como se obedecessem ambas a um subtil sinal de um oculto maestro, afastaram-se um pouco, mãos nas mãos, olhos nos olhos, já sem as lágrimas que entretanto se tinham esgotado.

A angústia foi-se transformando em coragem, e as máscaras de sofrimento foram dando lugar às expressões características de quem tomou uma decisão e sabe o que tem de fazer para a pôr em prática. Num derradeiro olhar, e sem terem trocado uma única palavra, viraram-se e iniciaram o caminho de regresso de cabeça erguida, na altivez da certeza da decisão tomada, prontas para enfrentar o mundo.