domingo, 19 de outubro de 2008

Quase-vida – parte II

(continuação de Quase-vida – parte I)

O reboque ocupava-lhe agora todo o campo de visão, escondendo-lhe o resto do mundo, escondendo-o do olhar dos que à volta assistiam à cena, no horror de saberem que poderiam ser eles a estar ali naquele mesmo local a enfrentar aquele mesmo destino mas, ao mesmo tempo, aliviados por lhe terem escapado.

Então, repentinamente, a imagem do reboque desapareceu dando lugar à imagem de um caixão, despido de quaisquer símbolos religiosos, que dois desconhecidos deixam deslizar, com o auxílio de cordas, para dentro de um buraco aberto no chão.

A imagem desloca-se agora um pouco, mostrando uma mulher de joelhos, abraçada a três crianças, numa mancha de luto sobressaindo do verde do relvado. Uma fila de gente que ele não consegue identificar, espera a sua vez para ir, por momentos, aumentar aquela mancha de luto que permanece imóvel e silenciosa no verde do relvado, enquanto os dois desconhecidos se desfazem das cordas para, com o auxílio de uma pá e de uma enxada, começarem a devolver ao buraco aberto no chão a terra arrancada horas antes à força de picareta.

A imagem mudou repentinamente. Reconheceu a sala da sua casa, embora o mobiliário e a cor das paredes estivessem diferentes. Pela porta, vinda do corredor, vê entrar na sala a figura de um rapaz. Parece-lhe reconhecer o seu filho mais velho, mas acha-o diferente… percebe então que este não é o filho mais velho, mas sim o irmão, pouco menos de dois anos mais novo. Antes que pudesse perceber o que se estava a passar entra na sala outro rapaz, um pouco mais alto, e no qual reconhece, agora sim, a cara do filho mais velho. Enquanto os dois rapazes se dirigem para o sofá, entra na sala uma figura que reconhece ser da filha, a mais nova dos três, também ela bastante mais crescida do que quando ele a vira pela última vez.

Enquanto se sentam no sofá ouve a voz do mais velho dizer “Mãe, já arrumamos os quartos, vamos ver um pouco de televisão”. De outro local da casa, uma voz que ele não teve dificuldade em reconhecer responde “Está bem, o almoço está quase…”.

Centrou a sua atenção no trio sentado no sofá, deviam ter passado pelo menos dois anos desde o dia daquela outra imagem onde os vira fundidos na mancha de luto sobre o verde do relvado. Mas ao contrário do que tinha visto nessa outra imagem, nesta não havia sinais de tristeza.

A imagem da sala desvanece-se para dar lugar a uma sucessão de novas imagens, as quais lhe aparecem em catadupa, apenas pequenos excertos uns a seguir aos outros, pedaços da vida dos filhos ao longo do seu crescimento. À frente dos seus olhos vê passarem-se três vidas, às quais se juntam novas vidas de netos e netas que apenas conhecerão aquele avô através das fotografias gastas no velho álbum de família… Vidas vulgares, mas vidas longas e globalmente felizes…

Sentiu-se satisfeito e sem hesitações fechou os olhos.

Já em cima da maca, o bombeiro corre o fecho do saco, escondendo aquele corpo acabado de resgatar do amontoado de destroços. Já tinha perdido a conta ao número de corpos que, ao longo de vários anos, ajudara a resgatar de carros acidentados, por isso já há muito que deixara de se impressionar com este tipo de situações. Mas havia alguma coisa diferente neste caso… não sabia bem o quê… voltou a abrir um pouco o fecho, apenas o suficiente para olhar de novo para aquela cara ensanguentada. E foi então que viu, por detrás dos cortes e das manchas de sangue, um sorriso e uma estranha expressão de felicidade. Voltou a fechar o fecho e empurrou a maca para dentro da ambulância.

(com possível continuação… numa outra dimensão…)

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Quase-vida – parte I

Soube naquele preciso instante que ia morrer. Assim, sem mais, de forma completamente inesperada e ainda tão jovem…

O reboque do camião deslizava, desgovernado, na sua direcção e não tinha como fugir do seu caminho antes de ficar esmagado contra a parede atrás de si. Só um grande milagre o poderia salvar desta situação, mas ele nunca acreditara em milagres, e também não se achava merecedor da misericórdia de algum deus em cuja existência nunca conseguira acreditar.

Ao menos seria tudo muito rápido, o sofrimento seria muito breve ou, quem sabe, talvez fosse tudo tão rápido que não chegaria a sentir qualquer dor. O sofrimento maior não seria o da dor física, mas o da dor de estar consciente daquele inevitável destino naqueles últimos instantes.

Sempre desejara morrer assim, de uma forma rápida, sem sofrimento, sem aquela degradação gradual tão típica do envelhecimento e, muito especialmente, sem perda de lucidez. Mas nunca imaginara que a morte chegasse assim tão cedo, ainda com tanta vontade de viver, com tantas lutas para travar e tantos sonhos para realizar…

Pensou na mulher... que seria dela, de repente com toda a responsabilidade de educar e acompanhar os três filhos órfãos de pai?... “órfãos!”… aquela palavra abateu-se sobre ele esmagando-o com uma força maior que aquela que havia de lhe tirar a vida dentro de breves instantes. Deu-se conta que não poderia acompanhar o crescimento daqueles três pequenos seres que ele amava acima de tudo na vida.

Sentiu uma repentina e intensa raiva! Não era justo! Ele que sempre vivera tão intensamente o papel de pai, via-se assim privado desse papel de uma forma tão abrupta! Que seria deles agora?!...

Esforçou-se por relembrar cada detalhe dos últimos instantes em que os tinha visto naquela mesma manhã, há pouco mais de uma hora, quando os deixara à porta da escola.

O reboque estava cada vez mais perto, esgotando aqueles breves instantes que lhe restavam…

Estranhou a velocidade com que todos aqueles pensamentos se lhe sucediam no seu cérebro, como se tudo à sua volta se desenrolasse agora em câmara lenta. Talvez fosse mesmo assim, talvez o cérebro, na percepção da proximidade do seu fim, tentasse aproveitar ao máximo os últimos instantes, trabalhando a toda a velocidade. Talvez fosse esta a justificação para as experiências de quase-morte relatadas por pessoas que tendo estado à beira da morte, lhe escaparam por muito pouco e nos últimos instantes.

Questionou-se sobre se também ele iniciaria uma viagem por um túnel azul em direcção a uma luz intensa, se se sentiria flutuar acima do seu corpo esmagado, ou se veria toda a sua vida passar-lhe em frente aos olhos.

Pensou na estrema inutilidade daquela última possibilidade… de que lhe servia rever a vida que ele próprio tinha vivido, como se não soubesse como a tinha vivido, como se não tivesse sido ele próprio a vivê-la, como se ele não soubesse o que tinha feito bem e o que tinha feito mal… seria bem melhor se pudesse usar esses tão breves, mas preciosos, instantes para rever os filhos. Daria tudo por esta troca! Não daria a vida porque essa já nada valia, mas daria a alma a um qualquer demónio… mas ele nunca acreditara em demónios!

(continua)