quinta-feira, 31 de julho de 2008

A Criação de Deus – parte II

(continuação de A Criação de Deus – parte I)

Não sabia porque razão não conseguia adormecer e entrar naquele estranho mundo em que mergulhava todas as noites.

Não era o frio que lhe tirava o sono, pois a época do frio já tinha passado e o ligeiro arrefecimento da noite era facilmente derrotado pelas peles que usava para cobrir o corpo. Também não era o calor porque a época do calor ainda estava para chegar e as noites quentes da caverna nunca o eram o suficiente para impedir o descanso. Seria portanto outra a desconhecida razão para a falta do desejado descanso.

Por mais que tentasse fechar os olhos e esvaziar o pensamento, este acabava sempre por arrastá-lo para um outro mundo não menos estranho, um mundo de lembranças, de dúvidas e de medos.

Levantou-se e dirigiu-se à entrada da caverna, onde o companheiro de serviço permanecia atento a todos os movimentos e a todos os ruídos que enchiam a noite, pronto para dar o alarme ao menor sinal de que algum perigo se aproximava. O outro, na surpresa de ouvir de dentro da caverna os ruídos denunciadores de movimentações suspeitas que temia ouvir vindos do lado de fora, voltou-se repentinamente de pau levantado, pronto para enfrentar aquela inesperada ameaça. Ao aperceber-se da silhueta no escuro da caverna baixou o pau e, com um breve urro, voltou a sua atenção de novo para a noite.

Foi colocar-se ao lado do outro, escutando a noite e olhando o escuro do céu e os pequenos pontos de luz que o enchiam. O outro, entendendo neste comportamento uma inesperada rendição do seu turno de guarda, virou-se para dentro da caverna e, com um último urro, entrou e dirigiu-se para o local que normalmente ocupava quando dormia.

Ali ficou atento à noite, empenhado na sua nova missão de guarda… olhou de novo o céu recheado daquelas pequenas luzes, algumas mais nítidas, outras quase imperceptíveis, outras ainda que pareciam apagar-se para logo de seguida se voltarem a acender.

Não tinha aparecido hoje aquela outra luz, maior e mais intensa, que uma vezes aparecia outras vezes não, umas vezes aparecia inteira, outras vezes aparecia diminuída e chegava mesmo a ser apenas uma linha quase imperceptível, como se fosse uma fera escondida à espreita e à espera de saltar em cima de qualquer coisa que passasse por perto e de que pudesse alimentar-se… Não estava nesta noite essa outra luz, ou talvez estivesse escondida, tão escondida que nem mesmo se conseguia ver aquela quase imperceptível linha… estremeceu ao pensar que podia ser ele o observado, que poderia ser ele a preza prestes a ser caçada…

O que seria essa estranha luz que hoje não tinha aparecido?... o que seriam todas aquelas outras pequenas luzes?... e o que seria aquela outra luz muito mais forte que levava a escuridão e lhes fazia chegar o dia?...

Um ruído suspeito nas proximidades da caverna fê-lo abandonar estes pensamentos… escutou um pouco mais… podia ser apenas um pequeno animal insignificante, poderia ser um animal que, depois de caçado, lhes traria alimento, mas a noite escura também podia esconder alguma coisa bastante mais perigosa, por isso não hesitou e começou aos berros, e a bater com paus nas rochas à volta da entrada. Num instante vários outros se vieram juntar ao alarido e várias pedras foram lançadas em todas as direcções. Depois, quase repentinamente, calaram-se de novo para escutarem o súbito silêncio da noite e ali ficaram, também em silêncio, à escuta do mais pequeno e insignificante sinal até que, aos poucos, o ruído da noite foi retomando a normalidade. Na falta de novos sinais ameaçadores, todos foram voltando para os seus lugares de descanso deixando na entrada da caverna o mesmo imprevisto guarda.

Não tardou a voltar aos mesmos pensamentos e às mesmas dúvidas…

(continua)

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Nostalgia

Gostaria de já ter colocado aqui a parte II de "A Criação de Deus", mas tem-me faltado o tempo para fazer os últimos ajustes ao texto já escrito (e para pôr alguma leitura em dia). No entretanto deixo aqui uma pequena provocação à amiga RC do blog A geometria das palavras:

Nostalgia, no tal dia, do tal dia...

quinta-feira, 10 de julho de 2008

A Criação de Deus - parte I

Não sabia porque se sentia daquela forma, ali sentado ao lado daquele jovem deitado…

Não sabia porque o corpo do jovem tremia tanto, como se tivesse frio, apesar de a pele dele estar tão quente e o suor lhe escorrer pelo corpo…

Não sabia porque estava ele ali deitado, tão imóvel, ele que normalmente era um dos mais activos quando, juntamente com os outros jovens e mulheres, vasculhava o terreno à volta da caverna à procura de alimento.

Não sabia que invisível fera se teria apoderado daquele corpo… vieram-lhe à memória as imagens daquele dia, ainda não muito longínquo, em que se tinha atravessado no caminho entre uma fera e aquele mesmo jovem… Não sabia o que o tinha levado a defende-lo e a enfrentar a fera com uma força que julgava não ter… Não sabia porque era mais dolorosa esta dor que agora sentia que aquela que tinha sentido no braço ferido pelos dentes da fera…

Não sabia porquê, mas sabia que voltaria a colocar-se entre aquele jovem e uma qualquer fera que o ameaçasse, mesmo que fosse a maior de todas… não sabia porquê, mas sabia que se pudesse tomaria para si esta fera invisível, libertando o jovem das suas garras.

Não sabia o que o segurava naquela caverna, insensível ao chamamento dos outros, impacientes por iniciar a caçada do dia.

Não sabia o que o tinha feito parar à entrada da caverna para se virar para trás e olhar demoradamente aquele jovem, depois de relutantemente ter cedido ao chamamento dos outros e aos encontrões que um dos mais impacientes viera dar-lhe para que se levantasse… não sabia o porquê daquele medo que dele se apoderou… não sabia porque se lhe enchiam os olhos à medida que lentamente se virava e descia ao encontro dos outros…

Não sabia o porquê daquela dor que o acompanhou durante todo o dia pelas sucessivas vãs tentativas para caçar algum animal que pudesse servir de alimento para si e para o resto do grupo.

Não sabia porque se tinha sentido tão feliz quando, ao regressarem da caçada de mãos vazias, e à distância que o seu olhar conseguia alcançar, tinha vislumbrado o jovem sentado junto à entrada da caverna. Não sabia como o desânimo do insucesso da caçada se tinha transformado, tão repentinamente, naquela energia que o tinha feito correr em direcção à caverna.

Não sabia porque razão, ainda ofegante da subida apressada pelo amontoado rochoso que separava a planície da entrada da caverna, tinha sentido aquele impulso para tocar e agarrar aquele jovem, para se certificar que já não tremia, que já não estava quente, que já não suava, que aquela fera invisível tinha desistido do seu corpo ou tinha, de alguma forma, sido vencida.

Não sabia que este ao lado de quem agora se sentava era seu filho, porque não tinha a noção de paternidade, apenas o inexplicável instinto que o impelia a defender a sua herança genética.

Não sabia a idade daquele jovem porque, embora tivesse a noção da sucessão das estações, do frio para a chegada das flores, das flores para o calor, do calor para a as arvores despidas de folhas e destas de novo para o frio, não tinha a noção de tempo, e também não saberia como extrapolar à contagem destas passagens o rudimentar uso que fazia dos dedos da mão, aos quais recorria para transmitir aos seus colegas de caça o número de animais presentes num dado local.

(continua)