quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O viajante – parte IX

(Continuação de O viajante – Partes I, II, III, IV, V, VI, VII e VIII)

Sabia que a leitura daquela carta lhe traria sofrimento, mas lentamente, ainda indeciso sobre o que fazer, foi rasgando um dos lados do envelope. Depois, já com o envelope aberto, hesitou de novo mais alguns segundos antes de meter dois dedos dentro do envelope para alcançar a folha de papel e puxá-la para fora. Fez uma nova hesitação e abriu, finalmente, a folha e olhou para aquelas linhas manuscritas.

A carta pareceu-lhe estranhamente curta. Pensou que ela não tivera, talvez, a coragem para se alongar muito em explicações que sabia que ele teria obrigação de compreender. Na verdade não eram necessárias muitas palavras para dizer que se vira obrigada a procurar uma nova felicidade e para lhe pedir que entendesse a decisão dela e não a procurasse... e o fecho da carta, desejando-lhe que fosse feliz, também não necessitaria mais de duas ou três linhas de texto.

Com a carta aberta na mão olhou pela janela para contemplar aquela belíssima paisagem durante mais alguns segundos. Depois fez uma inspiração profunda e dispôs-se, finalmente, a ler a carta.

“Meu amor, passam-se hoje exactamente seis meses desde a data em que tu não regressaste. Têm sido tempos muito difíceis para mim e para as nossas meninas. Não que elas tenham consciência do que se passa, mas têm imensas saudades tuas e não param de perguntar por ti.”

Os olhos encheram-se-lhe repentinamente de lágrimas. Parou de ler, largou a carta em cima da mesa, recostou-se na cadeira com as mãos nos olhos e chorou como chora um homem. Um choro silencioso, mas um choro abundante, arrancado não do fundo dos olhos mas do mais profundo das entranhas. Tinha estado a tentar conter aquelas lágrimas desde que tomara consciência da situação em que se encontrava, mas agora não podia aguentar mais, por isso deixou de lutar, deixou de engolir em seco, e deixou que elas corressem livremente.

Claro que tinham saudades, aquelas duas meninas adoravam-no, e ele adorava-as a elas. Mas a saudade delas já estaria curada por esta altura, enquanto a dele lhe ardia agora no peito com uma intensidade avassaladora.

Perdeu a noção de quanto tempo ficou ali, e perdeu a noção da quantidade das lágrimas libertadas. Finalmente retirou lentamente as mãos dos olhos, e voltou a olhar para a sala e para a paisagem exterior, ainda com a visão perturbada pelas últimas lágrimas que tinham ficado prisioneiras nos olhos, impedidas de seguir o caminho das restantes.

Pegou num dos guardanapos de papel e limpou os olhos, a boca e o nariz, e bebeu mais um pouco água para limpar o gosto salgado que sentia nos lábios e na boca. Depois respirou fundo e voltou a pegar na carta abandonada em cima da mesa.

“O mundo inteiro não tem parado de falar no teu caso, o que só contribuiu para agravar este sofrimento meu. Os primeiros quatro meses foram os mais difíceis, ainda aturdida pelos acontecimentos e incapaz de pensar e de raciocinar correctamente.

Depois fui recuperando um pouco a calma e o discernimento e tudo ficou mais calmo e sereno quando finalmente tomei a minha decisão.”

Claro, a tomada da decisão devia ter sido muito difícil, mas depois de tomada tudo terá ficado mais calmo. O sofrimento terá ficado ainda durante muito tempo, mas também esse terá acabado por ser ultrapassado.

“De acordo com os peritos que analisaram a cápsula de dados, recuperada junto daquele planeta de onde partiste para algum lugar incerto do universo, o sistema de teletransporte da tua nave terá tido uma falha grave. O teu regresso à Terra só poderá acontecer se tiveres tomado a decisão de usar o sistema de teletransporte alternativo, com as inevitáveis consequências que isso implica.

Os peritos não foram capazes de determinar a que local do espaço foste parar na sequência da avaria, por isso, assumindo que vais regressar, é impossível saber quando isso vai acontecer.

E assim tenho vivido nestes meses, prisioneira da incerteza de uma decisão que tu tomaste há seis meses atrás, mas que permanece escondida numa descontinuidade do tempo entre o momento em que a tomaste e um futuro que não sei quando chegará, ou se chegará.

Esta incerteza foi, precisamente, o factor de maior sofrimento para mim e o que me levou a tomar esta decisão. Simplesmente não poderia continuar a viver nesta incerteza!”

Claro que não podia... Por muito que isso lhe custasse aceitar, sabia que as coisas não se poderiam ter passado de maneira diferente. Apesar de saber aquilo com que contava, não estava preparado, por isso baixou a carta e voltou a olhar para a rua, através da janela, tentando encontrar naquela paisagem idílica a coragem necessária para ler o último parágrafo.

Respirou fundo uma vez mais e voltou a levantar a mão esquerda com a qual segurava a carta, finalmente disposto a terminar a sua leitura.

“Parto hoje com as nossas filhas. Parto numa nave não muito diferente da tua. Nela faremos pequenas viagens no tempo, voltando a uma órbita em torno da terra a cada seis meses. Em cada regresso farei uma breve comunicação com a Terra, para fazer um ponto de situação, antes de partir para nova viagem de igual duração. Interromperei esta sequência quando ouvir a tua voz. Não conseguimos e não queremos viver sem ti! Até já!...”

FIM

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

O viajante – parte VIII

(Continuação de O viajante – Partes I, II, III, IV, V, VI e VII)

A expressão dela tornou-se um pouco mais sombria. Fez uma pausa antes de responder:

“Os seus pais partiram já há mais de dez anos, primeiro o seu pai, depois a sua mãe, menos de um ano depois.”

Depois voltando a um discurso mais animado, “Mas os seus irmãos continuam vivos e prometeram que se recusariam a receber a morte enquanto o senhor não voltasse”.

Enquanto escutava aquelas palavras um sorriso amargo desenhou-se-lhe nos lábios, ao mesmo tempo que uma lágrima lhe caia pela cara. Sabia que seria assim, que os pais não poderiam ter uma vida suficientemente longa para ainda estarem vivos naquela altura, mas esta confirmação provocou-lhe um aperto no coração, como se a notícia fosse totalmente inesperada. Teria, certamente, mais motivos para sentir o coração apertado nos dias seguintes...

Ela, percebendo o efeito das notícias que tinha acabado de dar, prosseguiu:

“Julgo que agora mesmo devem estar precisamente a reunir-se nesse local onde costumam encontrar-se nas datas que lhe referi.”

“Mas como? Eles já sabem que eu regressei?”

“Sim, várias dezenas de antenas estavam apontadas para o espaço à espera de receber o seu sinal de SOS. Por esta altura a notícia do seu regresso já circula em todos os meios de comunicação. Os peritos tinham previsto que o seu regresso aconteceria entre as sete horas de ontem e as vinte e três de amanhã, por isso havia muita gente na expectativa à escuta do seu sinal.”

“O meu regresso foi previsto?... como?...”

“Alguns anos depois da sua viagem foi feito um esforço para encontrar o seu rasto. Nessa altura havia já algumas teorias sobre o local para onde o sistema de teletransporte o teria levado na altura em que avariou, baseadas nos dados de telemetria encontrados na cápsula que deixou antes da tentativa de regresso.

Tendo como base essas teorias, e procurando tirar partido do facto de a sua nave emitir um sinal de rádio a cada minuto, foram colocadas várias antenas bastante sensíveis em locais do espaço onde se considerou que esses sinais poderiam estar prestes a chegar.”

Claro, como não tinha pensado nisso!? A nave emitia, de facto, um sinal de rádio a cada sessenta segundos. Codificada nesse sinal era enviada a informação sobre a data e a hora a bordo da nave. Uma vez que estes sinais de rádio viajavam à velocidade da luz, algumas antenas bem posicionadas haveriam de, eventualmente, captar algum desses sinais. Bastaria que duas antenas colocadas em dois locais distintos detectassem o sinal para permitir o cálculo do ponto de origem do sinal, usando um processo de triangulação.

”Foi necessário esperar alguns anos, julgo que quatro, para que uma dessas antenas recebesse os primeiros sinais. Depois, com base nessa informação, foi relativamente fácil reposicionar as outras antenas, e em menos de seis meses foi possível determinar com bastante exactidão o local de onde se teletransportou pela última vez. Com base nessa informação foi feita uma estimativa da data da sua chegada.

Desde então tem havido alguns especialistas a contestar estas previsões e a apresentar teorias alternativas, mas, como acabamos de verificar, estavam enganados.”

Teve vontade de lhe perguntar pela mulher e pelas filhas, mas por alguma razão ela tinha evitado falar-lhe nelas, por isso olhou de novo a carta em cima da mesa. Ela, apercebendo-se disso, achou que seria melhor deixá-lo a sós. Sorriu-lhe e disse-lhe “Se precisar de alguma coisa chame-me” antes de se retirar da sala.

(Continua)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O viajante – parte VII

(Continuação de O viajante – Partes I, II, III, IV, V e VI)

Pegou no envelope e ficou ali a olhar para ele durante algum tempo. Imaginava o que estava escrito naquela carta e por isso mesmo ponderava se queria abri-la, ou se preferia ignora-la. Certamente ela teria decidido escrever-lhe quando, depois de se ter cansado de o esperar, se decidira a refazer a sua vida. Naquela carta encontraria as justificações que já imaginava, e as quais compreendia perfeitamente. Encontraria também o pedido para ele não a procurar, evitando assim abrir as feridas mal curadas daquela espera e daquela decisão que fora obrigada a tomar...

Foi interrompido nestes pensamentos por alguém que batia à porta da sala. Antes que pudesse mandar entrar já a porta se abria, mostrando-lhe a cara da mulher que vira sentada do lado de fora.

“Desculpe incomodá-lo, mas achei que talvez quisesse tomar alguma coisa, uma água ou um sumo... e uns bolinhos...” e ficou a olhar para ele, com um sorriso simpático no rosto.

A intensidade do turbilhão de emoções por que tinha acabado de passar tinham-no levado a ignorar os sinais do seu próprio corpo. Precisou, por isso, de alguns segundos para raciocinar sobre a oferta que acabara de lhe ser feita. “Sim, de facto uma água seria bem vinda... e talvez aceite também alguns desses bolinhos... fiquei curioso para saborear o resultado destes quase quarenta anos de evolução na arte da confeitaria...”

Ela sorriu mais abertamente e entrou na sala, dirigindo-se a uma porta na parede do lado esquerdo. De dentro do armário retirou dois copos, duas garrafas de água, alguns pacotes com imagens de frutas, algumas embalagens pequenas de diversos tipos, e alguns guardanapos de papel. Depois, recuperando o sorriso simpático entrelaçou as pontas dos dedos e, olhando-o de frente, disse-lhe: “Se precisar de mais alguma coisa não hesite em chamar-me.”

Ia já junto à porta quando ele falou: “Sabe quem eu sou?”

Ela voltou-se para ele e respondeu: “Claro que sim. O senhor é uma das pessoas mais conhecidas da actualidade.”

“A sério?... e eu que, por momentos, achei que se poderiam ter esquecido de mim!...”

Ela entretanto tinha-se aproximado de novo e olhava-o agora com uma cara mais séria.

“De modo nenhum, o senhor teve um papel importantíssimo no desenvolvimento dos sistemas de teletransporte e foi o primeiro homem a ser teletransportado para fora do nosso sistema solar. Depois, nessa mesma viagem, teve um problema com o sistema de teletransporte e foi obrigado a usar o sistema alternativo, o que implicou uma viagem no tempo de mais de trinta e oito anos. Acabou de chegar dessa viagem.

Além disso, o senhor continua a ser uma das poucas pessoas que teve a possibilidade de viajar no tempo.”

“Como assim?... foi detectado algum problema com essa tecnologia?”

“Não, pelo contrário, a tecnologia funciona muitíssimo bem, mas os responsáveis mundiais consideraram que seria perigoso permitir esse tipo de viagens, devido aos potenciais problemas na coordenação e na recepção desses passageiros no momento do regresso, e ao perigo de muitas pessoas importantes e poderosas viajar para o futuro, criando problemas de vazio no presente. Por isso foram aprovadas leis proibindo esse tipo de viagens.”

Ele ficou ali a olhar para ela, sem saber o que dizer, enquanto mastigava o conteúdo de um dos pacotes que ela lhe tinha colocado em cima da mesa. Foi ela quem retomou a palavra:

“A sua viagem teve início a vinte e dois de Abril, desde essa altura que esta data e a data de vinte e dois de Outubro são assinaladas, especialmente pelos seus amigos e familiares que continuam a reunir-se no terminal de onde partiu para essa viagem.”

“Duas vezes por ano?... não chegaria uma?...”

“A seu tempo compreenderá as razões”, disse sorrindo. ”Os principais dinamizadores desses encontros começaram por ser os seus pais e os seus irmãos, aos quais se juntaram os seus amigos.”

“Os meus pais e os meus irmãos...” fez uma pausa ”que é feito deles?”

(Continua)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

O viajante – parte VI

(Continuação de O viajante – Partes I, II, III, IV e V)

Após alguns segundos de desorientação apercebeu-se do que se estava a passar. Percebeu que nenhuma força puxava a nave para cima, em vez disso a mesma aceleração puxava-os, a ele e à nave, para baixo. Tinha acabado de ser teletransportado do local onde se encontrava, em órbita com o Sol, directamente para algum lugar na Terra e o que sentia era apenas a força da gravidade.

Sentiu alguma agitação no exterior da nave. A cara de um homem surgiu-lhe na janela à sua esquerda, perscrutando o interior da nave e, finalmente, fixando o olhar nele. Depois o homem fez-lhe sinal com a mão para que saísse da nave.

Moveu-se muito lentamente. Apesar de ter passado apenas alguns dias na situação de imponderabilidade, o súbito retorno à gravidade normal da superfície da Terra fazia com que se sentisse muito pesado e desajeitado.

Abriu a porta e saiu lentamente da nave. O homem que vira pela janela afastava-se para um dos lados da sala, enquanto por uma porta aberta à sua frente um outro homem, vestido de forma mais distinta que o anterior, se dirigia a ele mostrando um largo sorriso. “Capitão, é uma enorme honra recebê-lo de volta aqui na Terra”. Fez uma pausa enquanto lhe estendia a mão aberta que ele se apressou a apertar, balbuciando um tímido e quase imperceptível “Obrigado”.

Sou o responsável actual da Agência Espacial e foi com grande entusiasmo que recebi a notícia de que tinha sido detectado o seu sinal de SOS. Como deve saber, muito tempo se passou aqui na Terra desde a sua viagem pioneira. Muito se escreveu e se especulou a seu respeito ao longo destes anos, mas a maioria dos peritos, e das pessoas em geral, sempre acreditou que o senhor haveria de regressar um dia.”

Tentou encontrar algumas palavras para responder, mas nada lhe ocorreu naquele momento. Alimentava ainda a vaga esperança de que não se tivessem, afinal, passado tantos anos, e de que o computador e o sistema de teletransporte a bordo da sua nave tivessem errado o cálculo da data de chegada. Mas não, tudo indicava, pelo discurso daquele homem, que se tinham passado aqueles anos todos. E com a perda desta última réstia de esperança, fugiam-lhe também as palavras.

Imagino a forma como se sente...” Continuou o homem, sentindo o embaraço em que ele se encontrava. Depois, encarando-o com uma expressão mais séria, prosseguiu, “Imagino que não seja fácil entender que se tenham passado quase quarenta anos aqui na Terra, quando para si se passaram apenas alguns dias. Mas não se preocupe, vai ter algumas surpresas boas, vamos ajuda-lo a adaptar-se a este novo mundo, vamos ajuda-lo a viver uma vida feliz.”

O homem colocou-lhe a mão esquerda sobre o seu omoplata direito, num gesto que o encaminhava pela porta aberta. Avançou e passou pela porta, depois o homem indicou-lhe uma outra porta, que uma jovem, vestida com um uniforme não muito diferente do que vestia o homem que o tinha espreitado pela janela da nave, se prontificou a abrir carregando num botão. Enquanto passava por ela a jovem dirigiu-lhe um sorriso genuíno e simpático ao qual ele se sentiu obrigado a corresponder. Entraram ambos numa cabine em tudo idêntica à cabine de um elevador. A porta fechou-se atrás deles e o homem introduziu algumas instruções num ecrã cheio de estranhos símbolos e números.

Enquanto a porta se abria para um corredor de aspecto muito diferente daquele que ali estava há apenas alguns segundos atrás, o homem voltou a falar, “A tecnologia de teletransporte veio revolucionar todos os meios de transporte do planeta. Deixaram de existir carros, comboios, barcos e aviões, pois deixaram de ser necessários. Por exemplo, agora mesmo acabamos de ser teletransportados de um dos vários terminais da Agência Espacial para os escritórios centrais, a mais de mil quilómetros de distância.

Avançaram pelo corredor em direcção a uma secretária onde uma mulher bonita, de uns trinta a trinta e cinco anos, mexia as mãos por entre um emaranhado de estranhas imagens que se iam movendo elegantemente à sua frente. Certamente um computador moderno, sem teclado, e sem monitor, apenas um conjunto de imagens virtuais suspensas e com as quais aquela mulher parecia brincar habilmente. Apercebendo-se da presença deles a mulher parou o que estava a fazer, e olhou-os dirigindo-lhes um largo sorriso.

O homem abriu uma porta à esquerda da mulher e convidou-o a entrar. Entraram para uma sala ampla e muito bem iluminada pelo azul profundo de um céu sem nuvens que entrava pelas janelas que ocupavam por completo uma das paredes. Do lado de fora da janela era também visível um relvado bem tratado e, mais ao fundo, uma praia e um mar calmo a perder de vista. Dentro da sala uma mesa de grandes dimensões, rodeada de cadeiras de aspecto confortável, ocupava grande parte do espaço.

Seguindo a indicação do homem, sentou-se numa das cadeiras mais próximas da janela. O homem, permanecendo de pé, voltou a falar. “Seguindo as normas e os procedimentos actuais da Agência, o senhor terá de ser observado por um grupo de médicos. Não que se suspeite que alguma coisa esteja menos bem com a sua saúde, mas porque a isso obrigam as normas e os procedimentos a que me referi. No entanto, achei que antes disso seria interessante para si receber uma coisa que há muito lhe foi dirigida. Demore o tempo que achar necessário, a minha secretária vai ficar à espera que o senhor lhe diga quando estiver pronto para prosseguir.

O homem meteu a mão num dos bolsos do casaco e retirou de lá um envelope branco que colocou à frente dele, em cima da mesa. Depois virou-se e saiu fechando a porta.

No envelope à sua frente estava escrito o nome dele, na inconfundível caligrafia da sua mulher e mãe das suas filhas.

(Continua)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

O viajante – parte V

(Continuação de O viajante – Partes I, II, III e IV)

Com o dedo suspenso a menos de dois centímetros do botão que activaria o sistema de teletransporte, e que o faria viajar quase quarenta anos para o futuro, pensou na realidade que iria encontrar quando chegasse à Terra.

Pensou de novo na mulher. Imaginou como ela se sentiria naquela incerteza sobre o que lhe teria acontecido a ele. Se estaria vivo, ou se os seus restos mortais vagueariam algures numa parte incerta do universo... Se, estando vivo e em condições de regressar à Terra, demoraria dias ou anos até estar de volta... Não tinha dúvidas de que o amor que os unia era muito grande, mas também sabia que nenhum amor poderia resistir à incerteza em que a sua amada se encontraria. Sabia que, mais tarde ou mais cedo, ela teria de desistir da espera e refazer a sua vida com outro homem. Além disso, em vez da mulher ainda jovem e bonita que vira pela última vez a apenas alguns dias atrás, encontraria uma avó com mais de setenta anos.

Pensou nas filhas. Reviu-as mentalmente nas suas brincadeiras, nas suas travessuras, nas suas gracinhas, nos seus momentos de ternura... Cresceriam sem ele!... Cresceriam ao lado de um padrasto a quem veriam como pai e a quem os seus próprios netos chamariam de avô.

Pensou nos pais, já com uma idade demasiado avançada para que pudesse alimentar a esperança de ainda os encontrar vivos. Morreriam sem que soubessem o que lhe tinha acontecido, morreriam sem que ele tivesse oportunidade de se despedir deles, de lhes dar um último carinho, em jeito de retribuição pelos muitos carinhos que deles sempre recebera, de os acompanhar até à sua última morada...

Pensou nos colegas e amigos. Encontraria a maioria já numa idade avançada, enquanto outros, à semelhança dos pais, já teriam morrido.

Apercebeu-se de que não teria ninguém quando chegasse! Estaria verdadeiramente só e sem qualquer referência ao mundo que deixara há apenas alguns dias. Pensou se realmente queria voltar, ou se preferia programar o sistema de teletransporte para o levar directamente à superfície do Sol onde seria instantaneamente incinerado. Seria tudo tão rápido que nem chegaria a sentir dor.

Apressou-se a afastar aqueles pensamentos! Não, não estava disposto a entregar-se assim tão facilmente! Voltaria, conheceria as filhas, mais velhas do que ele, conheceria os netos, reconstruiria a sua vida, faria novos amigos, encontraria um novo amor, uma nova família e novos filhos. Não seria fácil, mas estava certo de que encontraria o caminho para uma nova felicidade.

Num impulso, e antes que pudesse mudar de ideias, carregou no botão. Instantes depois a luz intensa do Sol entrava-lhe pelas janelas do lado direito da nave. Precisou de alguns momentos para que os seus olhos se adaptassem àquele súbito aumento de luminosidade. Depois, ainda encandeado, procurou os controlos da nave e manobrou-a de forma a virar as janelas para o escuro do vazio do universo.

Já estava! Mais de trinta e oito anos se tinham passado na Terra entre o momento em que, naquele impulso, tinha carregado no botão e este momento em que se encontrava agora.

No computador deu as instruções necessárias para que este determinasse a localização exacta da Terra naquele momento. O ponto de chegada que tinha sido previamente programado no sistema de teletransporte não se encontrava muito próximo da Terra. A razão para isso prendia-se com a dificuldade em conseguir afinar com precisão milimétrica o local de destino de um teletransporte. Neste caso, e considerando a distância a que estava o ponto de partida, o erro no ponto de destino poderia chegar aos milhares de quilómetros. Por esta razão, o ponto de destino previamente programado no STTA, e nas proximidades do qual se encontrava agora, fora escolhido numa órbita em torno do Sol, entre a órbita de Vénus e a órbita da Terra. Por isso era agora necessário determinar onde se encontrava a Terra. Em simultâneo activou também o sinal de SOS.

Ocorreu-lhe então a possibilidade de a espécie humana já não existir, de se ter autodestruído em alguma guerra... de aquela mesma tecnologia que permitira o teletransporte poder ter sido fatalmente utilizada como arma de destruição e aniquilação. Se assim fosse seria ele o último representante vivo da raça humana...

Mas não, o computador informou-o que as antenas da nave estavam a captar sinais electromagnéticos, num padrão típico dos utilizados para telecomunicações. Apesar de o computador não conseguir descodificar qualquer dos sinais recebidos, era evidente que havia vida inteligente activa algures não muito longe.

Pensou na possibilidade de já não se lembrarem dele e de o tomarem por um extraterrestre...

Repentinamente uma luz branca substituiu o escuro do espaço em todas as janelas da nave. Ao mesmo tempo sentiu-se puxado para baixo, como se a nave estivesse a ser acelerada para cima por uma qualquer força.

(Continua)

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O viajante – parte IV

(Continuação de O viajante – Parte I, Parte II e Parte III)

No ecrã do computador uma mensagem lembrava-o de que aquela estimativa era aproximada, e pedia-lhe instruções para teletransportar a nave para outro local, a fim de poder calcular uma triangulação para um cálculo mais exacto.

Talvez... talvez a estimativa estivesse, afinal, muito longe da realidade... talvez não estivesse tão desesperantemente longe da Terra... Sabia que esta era uma possibilidade muito remota, mas continuava a recusar-se a acreditar naquele cenário tão pessimista.

Sem perder tempo, deu as instruções necessárias para a utilização do STTA e configurou um destino a cerca de trinta dias luz dali. Era mais distante que o necessário para fazer um cálculo com a precisão adequada, mas ele queria ter a certeza.

Uma breve oscilação e uma súbita alteração dos padrões de pontos luminosos que entravam pela janela deram-lhe a indicação de que a operação de teletransporte se concluíra. Juntamente com a viagem no espaço tinha também viajado cerca de trinta e sete horas para o futuro. Uma insignificância face ao que o esperava se a primeira estimativa se confirmasse.

Olhou de novo para o exterior da nave. A mesma visão com que antes se deslumbrara parecia-lhe agora fria... grotesca... brutal!...

Na Terra, por esta altura, já teriam percebido que algo de errado se tinha passado com a missão. Provavelmente já teriam enviado uma sonda não tripulada para o local da missão, e talvez até já tivesse sido recuperada a cápsula de informação que ele lá deixara. Sabia, no entanto, que todos esses esforços em nada o poderiam ajudar a ele. Mesmo que a análise dos dados da cápsula permitisse identificar a avaria do STTI, dificilmente permitiria determinar a que local do espaço a nave tinha ido parar. Além disso, seriam necessários vários dias, ou talvez semanas, para analisar toda a informação da cápsula, e ele tinha já menos de cinquenta horas de oxigénio nos tanques da nave. Não podia, por isso, ficar à espera que o viessem resgatar. Estava sozinho, mais sozinho que algum outro homem alguma vez tinha estado.

Repentinamente vieram-lhe à memória as palavras e a expressão da mulher quando ele a informara, eufórico, que tinha sido escolhido para aquela missão, “Não vás, tenho medo!...”. Depois lembrou-se das filhas gémeas, no momento em que as abraçara e as levantara do chão para se despedir delas antes de partir para o período de quarentena que precedeu a missão.

Estas memórias foram interrompidas por uma alteração no ecrã do computador. O programa de cálculo da triangulação tinha terminado e a imagem mostrava-lhe já as novas coordenadas. Contrariamente ao que desejava estas coordenadas eram muito próximas da primeira estimativa. Não havia dúvidas de que estava muito longe da Terra.

A sua atenção foi, entretanto, desviada para outros dados. O programa de cálculo estava preparado para, depois de calculada a triangulação, programar automaticamente o sistema de teletransporte activo, neste caso o STTA, para levar a nave de volta a um ponto predefinido numa órbita em torno do Sol. A zona inferior do ecrã mostrava-lhe, juntamente com as coordenadas do ponto de destino e de outros parâmetros de configuração do STTA, um campo onde, dentro de poucos segundos, deveria aparecer a estimativa da data de chegada àquele ponto, medida em relação ao referencial da Terra.

A data apareceu, finalmente, e ele calculou mentalmente a diferença entre essa data e a data actual. A utilização do STTA implicava que chegaria à Terra mais de trinta e oito anos depois de ter iniciado aquela viagem... Bastavam agora algumas instruções muito simples para executar aquele teletransporte. Para ele essa viagem demoraria uma insignificante fracção de segundo, mas nessa mesma fracção de segundo passar-se-iam quase quarenta anos na Terra! Mais do que a idade que ele tinha!...

(Continua)