quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Questões de Calendário

Apenas uma convenção… sim, é apenas uma convenção, como tantas outras, esta forma de medir o tempo. Mas medir o tempo é importante, e é necessário, por isso é perfeitamente natural que se use para esse efeito, como uma das unidades base, o tempo que a Terra demora a completar uma volta em torno do Sol. Apesar de a noção de Ano ser muito anterior à descoberta do movimento de translação da Terra em torno do Sol, a verdade é que os vários calendários criados pelo homem quase sempre se basearam no ciclo repetitivo das estações e, consequentemente, estão associados a esse movimento.

Esta definição, aparentemente simples, implicou, no entanto, várias dificuldades desde os primeiros calendários até ao Calendário Gregoriano que utilizamos actualmente. Estas dificuldades resultaram do facto de o tempo necessário para a Terra percorrer uma órbita completa em torno do Sol não se poder medir num número inteiro de dias. Mais concretamente, o Ano Tropical tem uma duração de 365,24218967 dias, ou 365 dias 5 horas 48 minutos e um pouco mais de 45 segundos. Este facto levou à necessidade da introdução de anos bissextos como forma de compensar a diferença.

No entanto, apesar destas correcções, e devido ao facto de o período orbital da Terra não ser constante, existe a necessidade de, ocasionalmente, introduzir correcções adicionais. Nesse sentido o ano de 2008 terá um segundo adicional, acrescentado nos instantes finais que antecedem a passagem para 2009. Por isso quando fizerem a contagem decrescente de despedida de 2008 e boas vindas de 2009, não se esqueçam de contar da seguinte forma: dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um, um, ZERO!

Já agora, seguindo as convenções do Calendário Gregoriano, o Cantinho dos Devaneios faz hoje exactamente um ano, o que, tendo sido 2008 um ano bissexto, equivale a 366 dias. Não que isso tenha alguma especial importância, apenas a consequência de uma convenção…

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Pequenos prazeres

A vida é feita de pequenos prazeres. São estes que, em grande medida, nos fazem felizes.

Por esta razão este Cantinho tem agora um novo vizinho, o Cantinho dos pequenos prazeres, que aguarda a vossa visita.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Quatro pontos brancos



No dia em que apresentou o livro em Lisboa, no CCB, o autor referia-se, a certa altura, à grave doença que o atormentou entre fins de 2007 e início de 2008.

Numa das piores fases da doença lembra-se de te visto quatro pontos brancos. Não, não eram pontos de luz, apenas pontos brancos, quatro pontos brancos em forma de um quadrilátero irregular. Coloca as mãos à sua frente, a cerca de 20 a 30 centímetros uma da outra, com o indicador e o polegar apontando a audiência e formando os contornos da letra ‘C’, os polegares por baixo e os indicadores em cima, com a distância entre os polegares maior que a distância entre os indicadores, formando, com as pontas daqueles quatro dedos, uma réplica do tal quadrilátero irregular.

“Não sei porquê, nem qual o significado, mas soube que era eu naqueles quatro pontos.” Não terão sido estas, exactamente, as palavras utilizadas pelo autor, que a memória já muitas vezes me atraiçoa, mas foi esta a ideia transmitida. Quatro pontos brancos…

Na dedicatória do livro pode ler-se “A Pilar, que não deixou que eu morresse”. Obrigado Pilar!

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

O Coleccionador – parte V

(Continuação de O Coleccionador – parte I, parte II, parte III e parte IV)

Ligou a máquina no modo de visualização e o mostrador iluminou-se com a última foto que tinha tirado. Não, não queria ainda ver a última, gostava de rever as fotos pela ordem em que tinham sido tiradas, por isso pressionou mais alguns botões e começou a passar as fotos uma a uma.

A mulher que sobe apressadamente a avenida, o condutor que gesticula em protesto contra outro condutor, a mulher que corre carregada de sacos para apanhar o autocarro…

… Senhora Amélia Antunes, gabinete três…

… a professora que lidera uma fila indiana de crianças, a fila indiana, a criança reguila que teima em sair da fila, a outra professora que fecha a fila indiana, o homem que faz sinal a um táxi, o sem abrigo que dorme indiferente num dos bancos de jardim que ladeiam a avenida…

… Senhora Joana Mendonça, gabinete um…

… dois adolescentes que falam animadamente e sem pressa de chegar a casa, o arrumador de carros que faz sinal junto a uma interrupção no contínuo de carros estacionados, o condutor que meio dentro do carro buzina para que lhe venham desimpedir o caminho de saída do local onde estacionou…

Repentinamente um clarão inundou a sala de espera. Levantou os olhos em direcção à porta de entrada a tempo de ver a silhueta fugaz de um homem que, no corredor do lado de fora da sala, inicia o percurso em direcção à saída do consultório. Reconhece naquela silhueta a mesma cara que ao longo dos últimos dias vira inúmeras vezes nas onze fotos que aquele software tinha identificado no computador de casa.

Num impulso meteu a máquina fotográfica na mochila e correu em direcção à porta. Estranhou o facto de a mulher sentada dois lugares à sua esquerda também se ter levantado e correr atrás dele, mas para já a sua preocupação era apenas a de alcançar aquele homem. Atravessou a sala, percorreu o corredor em direcção à porta de saída do consultório, galgou os dois lanços de escadas que o separavam da saída do prédio e deteve-se no passeio da avenida. Apenas uma fracção de segundo depois a mulher imobilizou-se ofegante à sua esquerda, enquanto ambos olhavam para um lado e para o outro.

“Ali!...” disse ele em voz alta, na certeza de que a mulher procurava exactamente o mesmo que ele. Correram os dois pela avenida acima em perseguição daquela figura que se afastava num passo apressado.

Ao chegar perto do homem gritou-lhe “Espere!” e pegou-lhe no braço esquerdo, fazendo com que ele se virasse.

Pararam os três encarando-se e medindo-se mutuamente. Ficaram ali imóveis durante alguns segundos, o homem com ar sereno, à espera, e eles os dois ainda ofegantes da perseguição.

Percebendo que era a ele que cabia quebrar aquele impasse, fez uma última inspiração profunda e perguntou “Diga-me, o que foi fazer ali ao consultório? Também é coleccionador de caras?...”

O homem olhou para os dois e sorriu. Retirou a pequena máquina fotográfica do bolso, carregou em alguns botões e virou-a de forma a mostrar-lhes a imagem onde os dois apareciam sentados na sala de espera. “Não, não sou coleccionador de caras nem de nomes, sou coleccionador de coleccionadores… e hoje apanhei dois de uma só vez!” Virou as costas e seguiu avenida acima no mesmo passo apressado.

Fim

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O Coleccionador – parte IV

(Continuação de O Coleccionador – parte I, parte II e parte III)

Entrou na sala de espera e olhou à volta à procura do local mais reservado. Era a primeira vez que estava naquele consultório, por isso olhou a toda a volta para se aperceber do espaço. Identificou rapidamente o lugar ideal. Por baixo do local onde a televisão estava pendurada havia várias cadeiras livres e isoladas. Era exactamente o que procurava, um local onde poderia tomar as suas notas sem se sentir observada pelas pessoas à volta.

Ao passar pela mesa no centro da sala pegou numa revista ao acaso. Não que se interessasse por aquele tipo de leitura, mas pelo disfarce que a revista lhe poderia proporcionar se achasse que alguém a observava.

Poderia ter trazido um livro de casa para aquele mesmo objectivo, mas quando lia gostava de se abstrair por completo do mundo à sua volta e de entrar na narrativa, como se fosse uma personagem invisível da mesma. Não, a leitura não era compatível com o que ia fazer àquele sítio, pois impedi-la-ia de prestar atenção aos nomes anunciados.

Daquele lugar não poderia assistir ao programa que passava na televisão, mas também não estava interessada em assistir aos concursos onde gente estúpida, era assim que qualificava aquelas pessoas, vinha mostrar a sua ignorância, nem ao humor barato dos apresentadores, ou à música sem gosto dos artistas convidados.

Há muito que se convencera pertencer à restrita minoria dos que abominavam aquele tipo de programação, da mesma forma que pertencia à ainda mais restrita minoria das pessoas que sentem prazer nas coisas mais simples e insignificantes. Estava plenamente convencida de que ela era uma das poucas excepções que confirmavam as regras formatadas e estereotipadas da sociedade onde tinha a infelicidade de viver. Estava só, mas já se tinha resignado a essa condição.

Preparou o caderno de apontamentos, pegou no lápis e escreveu a data e o local no topo de uma folha limpa, do lado direito do caderno.

Ainda não tinha acabado de escrever a data quando, pelo sistema sonoro, uma voz feminina fez o primeiro chamamento, na mesma voz monocórdica que já se tinha habituado a encontrar nestes locais.

Senhor Joaquim Soares, gabinete dois…

Um homem entrou na sala e olhou na direcção dela. Desviou o olhar e puxou a revista que tinha apanhado da mesa para cima do caderno e começou a folheá-la. Após alguns breves segundos o homem atravessou a sala e foi sentar-se perto dela, deixando uma cadeira vazia entre eles. Preferia estar sozinha, mas achou que a curta distância que os separava seria suficiente para não se sentir incomodada. Talvez também ele pertencesse àquela mesma restrita minoria… Ficou a observá-lo pelo canto do olho, fingindo prestar atenção à revista.

Ao vê-lo abrir a mochila imaginou, por momentos, que o veria tirar um caderno de notas e um lápis, e depois escolher uma página limpa do lado direito do caderno para escrever o local e a data… mas não, da mochila saiu uma máquina fotográfica. Não percebia muito de fotografia, nem de equipamento fotográfico, mas pareceu-lhe tratar-se de uma máquina sofisticada. Depois viu-o ligar a máquina e olhar para o mostrador electrónico onde se foram sucedendo imagens que ela não conseguiu distinguir.

***

Entrou na sala de espera do consultório e olhou à volta. Estranhou ver uma pessoa sentada na cadeira que ele próprio costumava escolher sempre que aqui vinha.

Vinha a esta consulta duas ou três vezes por ano para fazer o acompanhamento daquele seu problema crónico. Não que este problema o incomodasse com essa frequência, mas porque em matéria de saúde há muito que decidira viver de acordo com o princípio de que mais vale prevenir que remediar. Sabia a que sofrimento estaria sujeito se o problema se manifestasse, por isso aqui vinha regularmente duas vezes por ano, ou sempre que algum sintoma o deixava desconfiado.

Sabia que teria de esperar bastante pela sua vez de ser atendido, apesar de ter chegado pontualmente na hora para que tinha a consulta marcada. Nunca conseguira entender este fenómeno dos consultórios… porque razão se marcava uma hora se depois nunca era cumprida!?...

Aquele lugar, ocupado por aquela mulher, era, de facto, o lugar que ele preferia. Mas os outros lugares ao lado daquele eram igualmente bons, por isso dirigiu-se para uma cadeira dois lugares à direita daquela mulher que entretanto tinha desviado o olhar para uma revista puxada de baixo de um caderno de notas.

Olhou para ela enquanto atravessava a sala, interrogando-se se, tal como ele, também ela abominava o tipo de programação das televisões, ou se teria escolhido aquele lugar para poder adiantar algum trabalho ou, quem sabe, para escrever no diário o resumo das mágoas e dos prazeres daquele dia que se aproximava do fim. Talvez fosse isso, e talvez fosse essa a razão pela qual tinha puxado daquela revista, procurando esconder de olhos potencialmente indiscretos as secretas frases escritas no diário.

Não queria ser indiscreto, nem estava minimamente interessado no que ela pudesse querer escrever, por isso abriu a mochila e retirou a máquina fotográfica. Não, não pretendia fazer fotos ali naquele local, em primeiro lugar porque não conseguiria passar despercebido e em segundo lugar porque as condições de luz da sala de espera o obrigariam a utilizar o flash, e ele sempre detestara aquela súbita explosão de luz artificial. Não, o objectivo era, simplesmente, o de rever as fotos acabadas de fazer naquela grande avenida, em frente ao consultório.

Naquele dia o patrão estava fora, em viagem de negócios, e o volume de trabalho na empresa não o atormentava especialmente, por isso tinha decidido sair um pouco mais cedo para, antes da hora marcada para a consulta, poder fazer algumas fotos naquele local onde, àquela hora, uma multidão de gente passava apressada no caminho para casa.

(Continua)

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

O Coleccionador – parte III

(Continuação de O Coleccionador – parte I e parte II)

Entrou na sala de espera e sentou-se a um canto. Depois preparou o caderno de apontamentos, pegou no lápis e escreveu a data e o local no topo de uma folha limpa, do lado direito do caderno.

Desde pequenina que nunca gostara de começar assuntos novos nas páginas do lado esquerdo de um caderno. Não que preferisse o lado direito ao esquerdo, mas simplesmente porque não gostava de começar assuntos novos nas costas da folha onde já havia assuntos anteriores. Muitas vezes tinha ouvido os protestos da mãe por causa daquele tipo de desperdícios “Não nos podemos dar ao luxo de desperdiçar!... pensas que cavamos o dinheiro?!”. Ainda tentou explicar, mas o único que conseguiu foi um taxativo “Se tens espaço livre tens de o usar! Quando ganhares o teu próprio dinheiro logo fazes como te apetecer!”. E assim tinha acontecido, desde que saíra da casa dos pais que se permitia este pequeno desperdício, esta violação da sua rigorosa consciência ecológica.

Pelo sistema de som da sala de espera ouve-se uma voz feminina em tom monocórdico:

Senhor Joaquim Gomes, Senhor António Parente, Senhora Dona Ana Marques, Senhor Manuel Gaspar, Senhora Dona Arminda Aires, dirijam-se à sala de triagem…

Tomou nota dos nomes, sem esquecer o “Senhor” e a “Senhora Dona”. Esboçou um breve sorriso pelo facto de os Senhores não terem o direito de ser Dons.

Há vários anos que tinha este hábito de frequentar salas de espera, apenas para poder ouvir os nomes das pessoas que são chamadas. Nunca tinha entendido a razão deste fascínio pelos nomes anunciados, mas já tinha desistido de tentar encontrar uma explicação, da mesma forma que também já tinha deixado de se achar louca por causa disso. O que importava era que aquilo lhe dava prazer e isso era quanto lhe bastava. E deste seu prazer nada de mal poderia resultar, quer para ela quer para qualquer outra pessoa, por isso há muito que tinha deixado de se sentir culpada ou envergonhada consigo própria, embora sempre tivesse escolhido manter aquele segredo apenas para ela.

Não, não lhe bastava tomar conhecimento dos nomes, pois se fosse esse o caso bastaria abrir uma lista telefónica ao acaso. Não, os nomes tinham de ser pronunciados por alguém, anunciados em voz alta, expostos…

… Menina Joana Melo, gabinete de pediatria, Senhor Rui Peres, sala quatro…

Este fascínio tinha começado quando era ainda uma adolescente, num dia em que a mãe a levou ao hospital para fazer um curativo num corte que, na sua inexperiência em matéria de tarefas domésticas, tinha feito enquanto descascava umas batatas para o jantar. Ali na sala de espera a enfermeira de bata branca, que de tempos a tempos vinha à sala para chamar três ou quatro nomes, tinha-a feito esquecer as dores do corte e o mau humor da mãe.

Mas só anos mais tarde, numa ocasião em que teve de ir a um tribunal testemunhar a favor do patrão numa disputa com um fornecedor, é que, ao ouvir a chamada à porta da sala de audiências, se decidiu a explorar melhor aquele fascínio.

Começou então a frequentar todo o tipo de salas de espera e a tomar nota dos nomes num caderno idêntico aquele que agora tinha em cima do colo. Passou incontáveis horas em hospitais, clínicas, tribunais, conservatórias de registo civil, bancos, etc.

… Senhora Dona Margarida Janeiro, Senhor Artur Pereira, Senhora Dona Alice Coelho, Senhora Dona Armanda Lopes, é favor dirigirem-se ao balcão de atendimento central…

A princípio era bastante mais fácil. Não faltavam as salas de espera onde as pessoas eram sempre chamadas pelo nome. Além disso, o exercício da sua actividade profissional levava-a com alguma frequência a serviços públicos onde tinha de esperar pela sua vez antes de ser atendida.

Nessa altura ainda considerou arranjar um emprego num local daqueles, mas rapidamente desistiu da ideia, não só porque aquele tipo de funções era muito mal pago, mas também porque achou que a atenção dedicada a ouvir os nomes, à medida que fossem sendo chamados, a impediriam de se concentrar no trabalho propriamente dito.

… Senhora Dona Ana Fernandes, sala dois, Senhora Dona Fernanda Nunes, sala um…

Depois começaram a aparecer aqueles sistemas de senhas em que as pessoas passavam a ser tratadas como um mero e insignificante número. Até mesmo a voz de chamamento tinha sido substituída por um mostrador electrónico. Detestava aquele tipo de sistemas!

Agora estava limitada a um reduzido número de locais onde ainda se chamavam as pessoas pelo nome. Além disso, as novas tarefas e as responsabilidades acrescidas que a promoção no trabalho lhe tinha trazido mantinham-na presa ao escritório o dia inteiro. Por isso tinha de se contentar com estas saídas ocasionais ao final do dia.

… Senhor Jorge Gouveia, Senhor Ricardo Amaral, Senhora Dona Margarida Martins, Senhor Luís Correia, gabinete de triagem…

Enquanto escrevia os últimos nomes que a voz tinha anunciado no sistema sonoro, foi interrompida por um clarão. Olhou à volta para ver a origem daquele súbito e fugaz impulso de luz, mas não conseguiu encontrar nada de anormal… Teria sido um relâmpago?... Não, o dia estava completamente limpo… talvez um flash de uma máquina fotográfica…

Não soube explicar porquê, mas naquele preciso instante teve a certeza de que tinha mesmo sido um flash, e que o alvo fotografado tinha sido ela própria. Sentiu-se incomodada, por isso pegou nas suas coisas, levantou-se e saiu.

(Continua)

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

O Coleccionador – parte II

(Continuação de O Coleccionador – parte I)

Ficou algum tempo a espiar aquele outro fotógrafo através da objectiva. Não era muito anormal encontrar outros fotógrafos que, tal como ele, gostavam de coleccionar fotos de gente anónima. Não que fosse muito comum, mas já por diversas vezes tinha encontrado outros, e tinha perfeita consciência de que ele não era um caso isolado.

Nunca se tinha dado ao trabalho de meter conversa com os outros coleccionadores que foi encontrando do outro lado da objectiva. Na primeira vez em que se deu conta que existiam outros fotógrafos como ele ainda considerou meter conversa, mas rapidamente desconsiderou essa possibilidade… por nenhuma razão em particular, simplesmente porque achou que nada teria a ganhar com esse contacto.

Por isso, não se surpreendeu com a descoberta deste dia. Limitou-se a fotografa-lo na certeza de que o outro também já o teria fotografado, ou ainda o iria fotografar a ele.

… a senhora que tenta, em vão, arrancar o velho da mesa de jogo, um rapaz que bebe água no bebedouro, outro rapaz que passa na sua bicicleta, a menina acabada de cair no charco de água junto ao bebedouro, o homem que espera encostado a um tronco, a mãe que beija o dedo arranhado de onde se perdeu uma gota de sangue…

Pensou no novo software que tinha instalado no computador de casa e que tinha deixado a executar.

Há algum tempo que acompanhava a evolução daquele programa, desenvolvido por uma vasta comunidade de especialistas no mundo inteiro, e disponibilizado livremente num modelo de open source. No entanto as versões disponíveis até então eram ainda muito rudimentares e, consequentemente, apenas acessíveis a especialistas, classificação na qual ele estava longe de se poder incluir. Mas esta realidade tinha mudado há alguns dias, quando a disponibilização de uma nova versão tinha tornado a instalação e utilização daquele software muito mais fácil e intuitiva.

… a menina que come um gelado, a senhora que dormita no banco de jardim, a mulher que fala exaltada sobre um qualquer problema, o sem abrigo que mendiga uma esmola, o homem mergulhado na história de um livro e completamente abstraído da agitação à sua volta, a menina com a cara suja do gelado, a mãe da menina do charco que a repreende, a menina do charco que choraminga, mais pela repreensão que pela queda…

Já por diversas vezes se tinha dado conta que tinha mais de uma foto da mesma pessoa, mas desistira de fazer uma pesquisa mais profunda na sua colecção para identificar mais repetições, pois o elevado número de fotos que tinha tornaria impraticável uma tal tarefa sem a ajuda de alguma forma de automatismo.

Mas este novo software, com as suas capacidades para identificar características distintivas em imagens de rostos, e a capacidade para comparar essas características num elevado número de imagens, poderia tornar esta tarefa muito mais fácil. Tinha apenas de esperar o tempo necessário para o programa “digerir” todo aquele grande volume de informação.

… a mãe que tenta limpar a cara suja da menina do gelado, o homem que segura o chapéu que o vento lhe quer levar, a menina que tenta fugir ao lenço molhado com que a mãe lhe quer limpar a cara, a mulher que olha o pedinte enquanto deposita uma moeda na mão estendida, a mulher que tenta compor o cabelo que uma breve e suave rajada de vento tenta descompor…

A expectativa de encontrar alguns resultados quando chegasse a casa não o estava a deixar concentrar devidamente, por isso deu por terminada a sessão do dia.

Enquanto arrumava o equipamento na mochila apercebeu-se da câmara do outro fotografo apontada na sua direcção. Sim, aquela seria certamente uma boa altura para o fotografar. Ignorou-o e levantou-se para voltar para casa.

Assim que entrou em casa dirigiu-se imediatamente, ainda com a mochila nas costas, à secretária onde tinha o computador. Mexeu ligeiramente o rato para desactivar o screen saver e ver os eventuais resultados do programa.

A janela principal do programa mostra-lhe algumas pastas com resultados, com a indicação do número de fotografias dentro de cada uma das pastas. A sua atenção centra-se numa pasta com a indicação de que contém onze fotografias.

Onze!?…” questionou-se em voz alta.

Abriu rapidamente a pasta e uma nova janela abriu-se para lhe mostrar as miniaturas das onze fotografias. Depois de as analisar uma a uma, não teve dúvidas em concordar serem da mesma pessoa.

(Continua)

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

O Coleccionador – parte I

Olhou à volta para procurar um local apropriado. Estudou as várias possibilidades, ponderando os ângulos de visibilidade, a proximidade das pessoas, as condições de luz e a discrição que cada local lhe proporcionaria.

Sim, aquele banco isolado na sombra do pinheiro era um local ideal. Sentou-se e começou a preparar o equipamento. Retirou e esticou o mono-pé, montou a lente no corpo da máquina e depois a máquina no mono-pé. Ligou a máquina, fez alguns ajustes e preparou-se para os primeiros disparos.

Apontou aleatoriamente, ajustando a lente e fez uma primeira foto. Estudou o resultado no mostrador da máquina para se certificar que tinha escolhido as configurações de velocidade e abertura apropriadas, depois, satisfeito com o resultado, voltou a apontar a máquina e foi disparando, captando as mais variadas expressões daquela gente anónima.

O homem que entra no parque, o funcionário que cuida de um canteiro, o jovem que corre atrás de uma bola, a mulher que discute com o homem que entra no parque, uma mulher que fala com outra, a mulher que ouve a outra que fala com ela…

Há mais de quinze anos que descobrira aquele fascínio pelo rosto humano e pelas suas inúmeras expressões. Tinha começado ainda com a sua velha máquina analógica, captando os primeiros instantâneos na película comprada a metro no fotógrafo vizinho do prédio onde vivia. Recordava com alguma saudade aquele tempo e a excitação e expectativa para ver o resultado, primeiro no negativo revelado da película, e depois no positivo impresso.

Agora, com a máquina digital, tudo era mais simples. Podia ver o resultado quase imediatamente e, dependendo da capacidade do cartão de memória, podia ficar horas e horas a disparar, sem ter de se preocupar com a troca do rolo. Depois, já em casa, a passagem das fotos para o computador abria-lhe todo um novo mundo de possibilidades, tanto no que diz respeito ao arquivo, como ao nível dos processamentos que poderia aplicar às imagens.

Lembrou-se daquele novo software que tinha deixado a executar no computador de casa… teria alguns resultados quando chegasse a casa?...

... a menina de cabelos ao vento no baloiço, um jovem que olha a sua namorada no intervalo entre dois beijos apaixonados, um velho que joga um trunfo na mesa da sueca, uma criança que atira um punhado de areia na direcção de um qualquer monstro imaginário, o pai da menina empurrando o baloiço, uma mãe que ampara o seu filhote enquanto este ensaia os primeiros passos, um beijo apaixonado…

Há muito que deixara de se sentir uma espécie de ladrão, roubando e guardando aquelas breves fracções de segundo. A princípio a falta de uma lente apropriada, obrigava-o a aproximar-se bastante das pessoas, o que normalmente dava origem às mais variadas reacções. Muitas vezes teve de fugir para evitar a fúria dos seus alvos, como se fosse um crime captar e registar aqueles breves raios de luz.

Nunca conseguira compreender aquelas reacções. Afinal, os raios de luz que captava com a sua câmara já não pertenciam a ninguém, já tinham abandonado as caras daquelas pessoas em direcção a um qualquer obstáculo, ou em direcção ao infinito. E no entanto as pessoas reagiam como se lhes estivesse a roubar algo muito precioso.

Além disso, ele gostava de captar expressões genuínas e naturais, mas as pessoas, ao aperceberem-se de que estavam a ser fotografadas, quando não reagiam violentamente, tinham a irritante tendência de fazer pose, esboçando expressões estereotipadas que eram exactamente o oposto daquilo que procurava.

Por estas razões tinha investido na compra de uma lente com uma distância focal maior, e dera por bem empregue o dinheiro gasto, pois passara a poder fotografar à vontade a uma distância muito maior, à qual ninguém dava por ele e, dessa forma, podia captar as expressões genuínas dos seus alvos.

… O pai que chama o filho com as mãos em concha em torno da boca, uma jovem de olhos fechados e auscultadores nas orelhas que aquece ao sol, um bebé que dorme no seu carrinho de rua, um filho que corre fingindo não ouvir o chamamento do pai, um velho que vê a sua manilha cair no ás do adversário de jogo, uma criança que chora a gota de sangue perdida no arranhão, um outro fotógrafo escondido num local sombrio…

(Continua)

domingo, 19 de outubro de 2008

Quase-vida – parte II

(continuação de Quase-vida – parte I)

O reboque ocupava-lhe agora todo o campo de visão, escondendo-lhe o resto do mundo, escondendo-o do olhar dos que à volta assistiam à cena, no horror de saberem que poderiam ser eles a estar ali naquele mesmo local a enfrentar aquele mesmo destino mas, ao mesmo tempo, aliviados por lhe terem escapado.

Então, repentinamente, a imagem do reboque desapareceu dando lugar à imagem de um caixão, despido de quaisquer símbolos religiosos, que dois desconhecidos deixam deslizar, com o auxílio de cordas, para dentro de um buraco aberto no chão.

A imagem desloca-se agora um pouco, mostrando uma mulher de joelhos, abraçada a três crianças, numa mancha de luto sobressaindo do verde do relvado. Uma fila de gente que ele não consegue identificar, espera a sua vez para ir, por momentos, aumentar aquela mancha de luto que permanece imóvel e silenciosa no verde do relvado, enquanto os dois desconhecidos se desfazem das cordas para, com o auxílio de uma pá e de uma enxada, começarem a devolver ao buraco aberto no chão a terra arrancada horas antes à força de picareta.

A imagem mudou repentinamente. Reconheceu a sala da sua casa, embora o mobiliário e a cor das paredes estivessem diferentes. Pela porta, vinda do corredor, vê entrar na sala a figura de um rapaz. Parece-lhe reconhecer o seu filho mais velho, mas acha-o diferente… percebe então que este não é o filho mais velho, mas sim o irmão, pouco menos de dois anos mais novo. Antes que pudesse perceber o que se estava a passar entra na sala outro rapaz, um pouco mais alto, e no qual reconhece, agora sim, a cara do filho mais velho. Enquanto os dois rapazes se dirigem para o sofá, entra na sala uma figura que reconhece ser da filha, a mais nova dos três, também ela bastante mais crescida do que quando ele a vira pela última vez.

Enquanto se sentam no sofá ouve a voz do mais velho dizer “Mãe, já arrumamos os quartos, vamos ver um pouco de televisão”. De outro local da casa, uma voz que ele não teve dificuldade em reconhecer responde “Está bem, o almoço está quase…”.

Centrou a sua atenção no trio sentado no sofá, deviam ter passado pelo menos dois anos desde o dia daquela outra imagem onde os vira fundidos na mancha de luto sobre o verde do relvado. Mas ao contrário do que tinha visto nessa outra imagem, nesta não havia sinais de tristeza.

A imagem da sala desvanece-se para dar lugar a uma sucessão de novas imagens, as quais lhe aparecem em catadupa, apenas pequenos excertos uns a seguir aos outros, pedaços da vida dos filhos ao longo do seu crescimento. À frente dos seus olhos vê passarem-se três vidas, às quais se juntam novas vidas de netos e netas que apenas conhecerão aquele avô através das fotografias gastas no velho álbum de família… Vidas vulgares, mas vidas longas e globalmente felizes…

Sentiu-se satisfeito e sem hesitações fechou os olhos.

Já em cima da maca, o bombeiro corre o fecho do saco, escondendo aquele corpo acabado de resgatar do amontoado de destroços. Já tinha perdido a conta ao número de corpos que, ao longo de vários anos, ajudara a resgatar de carros acidentados, por isso já há muito que deixara de se impressionar com este tipo de situações. Mas havia alguma coisa diferente neste caso… não sabia bem o quê… voltou a abrir um pouco o fecho, apenas o suficiente para olhar de novo para aquela cara ensanguentada. E foi então que viu, por detrás dos cortes e das manchas de sangue, um sorriso e uma estranha expressão de felicidade. Voltou a fechar o fecho e empurrou a maca para dentro da ambulância.

(com possível continuação… numa outra dimensão…)

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Quase-vida – parte I

Soube naquele preciso instante que ia morrer. Assim, sem mais, de forma completamente inesperada e ainda tão jovem…

O reboque do camião deslizava, desgovernado, na sua direcção e não tinha como fugir do seu caminho antes de ficar esmagado contra a parede atrás de si. Só um grande milagre o poderia salvar desta situação, mas ele nunca acreditara em milagres, e também não se achava merecedor da misericórdia de algum deus em cuja existência nunca conseguira acreditar.

Ao menos seria tudo muito rápido, o sofrimento seria muito breve ou, quem sabe, talvez fosse tudo tão rápido que não chegaria a sentir qualquer dor. O sofrimento maior não seria o da dor física, mas o da dor de estar consciente daquele inevitável destino naqueles últimos instantes.

Sempre desejara morrer assim, de uma forma rápida, sem sofrimento, sem aquela degradação gradual tão típica do envelhecimento e, muito especialmente, sem perda de lucidez. Mas nunca imaginara que a morte chegasse assim tão cedo, ainda com tanta vontade de viver, com tantas lutas para travar e tantos sonhos para realizar…

Pensou na mulher... que seria dela, de repente com toda a responsabilidade de educar e acompanhar os três filhos órfãos de pai?... “órfãos!”… aquela palavra abateu-se sobre ele esmagando-o com uma força maior que aquela que havia de lhe tirar a vida dentro de breves instantes. Deu-se conta que não poderia acompanhar o crescimento daqueles três pequenos seres que ele amava acima de tudo na vida.

Sentiu uma repentina e intensa raiva! Não era justo! Ele que sempre vivera tão intensamente o papel de pai, via-se assim privado desse papel de uma forma tão abrupta! Que seria deles agora?!...

Esforçou-se por relembrar cada detalhe dos últimos instantes em que os tinha visto naquela mesma manhã, há pouco mais de uma hora, quando os deixara à porta da escola.

O reboque estava cada vez mais perto, esgotando aqueles breves instantes que lhe restavam…

Estranhou a velocidade com que todos aqueles pensamentos se lhe sucediam no seu cérebro, como se tudo à sua volta se desenrolasse agora em câmara lenta. Talvez fosse mesmo assim, talvez o cérebro, na percepção da proximidade do seu fim, tentasse aproveitar ao máximo os últimos instantes, trabalhando a toda a velocidade. Talvez fosse esta a justificação para as experiências de quase-morte relatadas por pessoas que tendo estado à beira da morte, lhe escaparam por muito pouco e nos últimos instantes.

Questionou-se sobre se também ele iniciaria uma viagem por um túnel azul em direcção a uma luz intensa, se se sentiria flutuar acima do seu corpo esmagado, ou se veria toda a sua vida passar-lhe em frente aos olhos.

Pensou na estrema inutilidade daquela última possibilidade… de que lhe servia rever a vida que ele próprio tinha vivido, como se não soubesse como a tinha vivido, como se não tivesse sido ele próprio a vivê-la, como se ele não soubesse o que tinha feito bem e o que tinha feito mal… seria bem melhor se pudesse usar esses tão breves, mas preciosos, instantes para rever os filhos. Daria tudo por esta troca! Não daria a vida porque essa já nada valia, mas daria a alma a um qualquer demónio… mas ele nunca acreditara em demónios!

(continua)

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

A Criação de Deus – parte III

(continuação de A Criação de Deus – parte II)

Chegaram finalmente aquele local onde todos os dias subiam para planear o dia de caça. Dali podiam ver, lá em baixo, uma vasta área onde vários animais costumavam alimentar-se. E dali podiam delinear os planos para matar e levar para a caverna um daqueles animais.

E hoje, depois do fracasso da caçada do dia anterior, era especialmente importante conseguirem voltar para a caverna com alguma coisa que os pudesse compensar da fome mal disfarçada com os poucos alimentos reunidos pelas mulheres e pelos jovens.

Acercou-se do limiar do rochedo e ali se deixou ficar a olhar aquele espaço, enquanto os outros começavam a discutir as melhores formas de prosseguir o dia… também ele costumava participar nestas discussões, mas neste dia, depois dos acontecimentos do dia anterior e dos pensamentos, dúvidas e receios da noite, preferiu ficar ali, de olhar vago, respirando o ar ainda fresco do início do dia.

Vieram-lhe à memória as imagens daquele jovem deitado no chão da caverna… a recordação daquela estranha e dolorosa sensação que o tinha atormentado durante todo o dia e que, sabia-o, em muito tinha contribuído para o fracasso da caçada… a recordação da alegria que sentira quando, ao voltar à caverna, tinha encontrado o jovem já bastante melhor… a noite de guarda… as pequenas luzes no céu escuro… a grande luz que não tinha aparecido nessa noite… a grande luz que trouxera o dia e que agora o aquecia…

Estes pensamentos foram interrompidos, não pela acesa discussão atrás de si, mas por uma quase imperceptível movimentação na vegetação lá em baixo. Agachou-se no limite do rochedo para melhor inspeccionar a zona, não que esperasse encontrar ali algum alvo de caça, ou que, ainda influenciado pela sua inesperada tarefa de guarda na noite anterior, temesse uma qualquer ameaça… não havia uma razão em particular, apenas a mais simples das curiosidades.

A princípio não conseguiu detectar qualquer indício, mas alguns instantes depois um novo movimento denunciou-lhe o corpo de uma fera, tão fundida com a vegetação que só o movimento a tornou visível. Sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo, não porque temesse um ataque daquela fera, pois sabia bem que nada se atreveria a atacar um grupo tão grande, mas por se tratar de uma fera igual aquela que ele havia enfrentado, há não muito tempo, para defender aquele mesmo jovem, e que quase lhe arrancara um dos braços. Sem se dar conta agarrou o braço, no sítio onde agora havia uma enorme cicatriz, como se tivesse ficado mais intensa aquela mesma dor que sempre o acompanhava e à qual já quase se habituara. Depois, esquecendo de novo a dor do braço, olhou para a pele que lhe cobria o corpo, a mesma pele que antes cobrira o corpo da fera que o atacara e que, desde então, ele fazia questão de usar sempre.

Um movimento mais brusco lá em baixo chamou-lhe de novo a atenção… a fera parecia estar a atacar algum animal… olhou melhor e viu, então, uma cria toda encolhida, vergada pelo medo dos dentes bem afiados e pelo rugido da mãe. Não era a primeira vez que assistia a situações destas, em que um animal utilizava a sua força e o seu poder contra a sua própria cria. No seu próprio grupo era frequente os mais velhos fazerem o mesmo em relação aos jovens, e ele próprio já o tinha feito. Lembrava-se também, ainda que vagamente, de várias situações em que ele mesmo, ainda jovem, tinha também sido o alvo deste tipo de comportamento.

Sabia que o objectivo daquela fera não era o de ferir a sua própria cria, muito pelo contrário, sabia que este tipo de situação só poderia ser justificado pelo facto de a cria ter feito algo de errado, e esta era a forma de lhe mostrar isso. Não, o objectivo não era atacar, o objectivo era outro… não sabia bem como classificar este outro objectivo, pois não tinha, no seu ainda rudimentar vocabulário, qualquer palavra que permitisse traduzir correctamente o que estava a ver. Por momentos questionou-se sobre aquele estranho facto de a mesma força poder ser usada tanto para atacar como para aquele outro objectivo, o qual, apesar de não saber como classificar, sabia ser o oposto do primeiro.

Pensou como seria bom se ele próprio continuasse a ter alguém que tomasse conta dele, que o protegesse dos perigos e dos seus medos… alguém ou alguma coisa… ficou ali bloqueado com aquele desejo… não sabia porquê, mas não conseguia pensar noutra coisa… e foi então que teve aquela ideia!... e se houvesse mesmo alguém?... ou alguma coisa?...

***

E foi assim que, pela primeira vez, o homem criou Deus, um Deus à imagem das suas necessidades, das suas dúvidas e dos seus medos.

Talvez não tenha sido desta forma… talvez não tenha sido de uma forma muito diferente…

quinta-feira, 31 de julho de 2008

A Criação de Deus – parte II

(continuação de A Criação de Deus – parte I)

Não sabia porque razão não conseguia adormecer e entrar naquele estranho mundo em que mergulhava todas as noites.

Não era o frio que lhe tirava o sono, pois a época do frio já tinha passado e o ligeiro arrefecimento da noite era facilmente derrotado pelas peles que usava para cobrir o corpo. Também não era o calor porque a época do calor ainda estava para chegar e as noites quentes da caverna nunca o eram o suficiente para impedir o descanso. Seria portanto outra a desconhecida razão para a falta do desejado descanso.

Por mais que tentasse fechar os olhos e esvaziar o pensamento, este acabava sempre por arrastá-lo para um outro mundo não menos estranho, um mundo de lembranças, de dúvidas e de medos.

Levantou-se e dirigiu-se à entrada da caverna, onde o companheiro de serviço permanecia atento a todos os movimentos e a todos os ruídos que enchiam a noite, pronto para dar o alarme ao menor sinal de que algum perigo se aproximava. O outro, na surpresa de ouvir de dentro da caverna os ruídos denunciadores de movimentações suspeitas que temia ouvir vindos do lado de fora, voltou-se repentinamente de pau levantado, pronto para enfrentar aquela inesperada ameaça. Ao aperceber-se da silhueta no escuro da caverna baixou o pau e, com um breve urro, voltou a sua atenção de novo para a noite.

Foi colocar-se ao lado do outro, escutando a noite e olhando o escuro do céu e os pequenos pontos de luz que o enchiam. O outro, entendendo neste comportamento uma inesperada rendição do seu turno de guarda, virou-se para dentro da caverna e, com um último urro, entrou e dirigiu-se para o local que normalmente ocupava quando dormia.

Ali ficou atento à noite, empenhado na sua nova missão de guarda… olhou de novo o céu recheado daquelas pequenas luzes, algumas mais nítidas, outras quase imperceptíveis, outras ainda que pareciam apagar-se para logo de seguida se voltarem a acender.

Não tinha aparecido hoje aquela outra luz, maior e mais intensa, que uma vezes aparecia outras vezes não, umas vezes aparecia inteira, outras vezes aparecia diminuída e chegava mesmo a ser apenas uma linha quase imperceptível, como se fosse uma fera escondida à espreita e à espera de saltar em cima de qualquer coisa que passasse por perto e de que pudesse alimentar-se… Não estava nesta noite essa outra luz, ou talvez estivesse escondida, tão escondida que nem mesmo se conseguia ver aquela quase imperceptível linha… estremeceu ao pensar que podia ser ele o observado, que poderia ser ele a preza prestes a ser caçada…

O que seria essa estranha luz que hoje não tinha aparecido?... o que seriam todas aquelas outras pequenas luzes?... e o que seria aquela outra luz muito mais forte que levava a escuridão e lhes fazia chegar o dia?...

Um ruído suspeito nas proximidades da caverna fê-lo abandonar estes pensamentos… escutou um pouco mais… podia ser apenas um pequeno animal insignificante, poderia ser um animal que, depois de caçado, lhes traria alimento, mas a noite escura também podia esconder alguma coisa bastante mais perigosa, por isso não hesitou e começou aos berros, e a bater com paus nas rochas à volta da entrada. Num instante vários outros se vieram juntar ao alarido e várias pedras foram lançadas em todas as direcções. Depois, quase repentinamente, calaram-se de novo para escutarem o súbito silêncio da noite e ali ficaram, também em silêncio, à escuta do mais pequeno e insignificante sinal até que, aos poucos, o ruído da noite foi retomando a normalidade. Na falta de novos sinais ameaçadores, todos foram voltando para os seus lugares de descanso deixando na entrada da caverna o mesmo imprevisto guarda.

Não tardou a voltar aos mesmos pensamentos e às mesmas dúvidas…

(continua)

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Nostalgia

Gostaria de já ter colocado aqui a parte II de "A Criação de Deus", mas tem-me faltado o tempo para fazer os últimos ajustes ao texto já escrito (e para pôr alguma leitura em dia). No entretanto deixo aqui uma pequena provocação à amiga RC do blog A geometria das palavras:

Nostalgia, no tal dia, do tal dia...

quinta-feira, 10 de julho de 2008

A Criação de Deus - parte I

Não sabia porque se sentia daquela forma, ali sentado ao lado daquele jovem deitado…

Não sabia porque o corpo do jovem tremia tanto, como se tivesse frio, apesar de a pele dele estar tão quente e o suor lhe escorrer pelo corpo…

Não sabia porque estava ele ali deitado, tão imóvel, ele que normalmente era um dos mais activos quando, juntamente com os outros jovens e mulheres, vasculhava o terreno à volta da caverna à procura de alimento.

Não sabia que invisível fera se teria apoderado daquele corpo… vieram-lhe à memória as imagens daquele dia, ainda não muito longínquo, em que se tinha atravessado no caminho entre uma fera e aquele mesmo jovem… Não sabia o que o tinha levado a defende-lo e a enfrentar a fera com uma força que julgava não ter… Não sabia porque era mais dolorosa esta dor que agora sentia que aquela que tinha sentido no braço ferido pelos dentes da fera…

Não sabia porquê, mas sabia que voltaria a colocar-se entre aquele jovem e uma qualquer fera que o ameaçasse, mesmo que fosse a maior de todas… não sabia porquê, mas sabia que se pudesse tomaria para si esta fera invisível, libertando o jovem das suas garras.

Não sabia o que o segurava naquela caverna, insensível ao chamamento dos outros, impacientes por iniciar a caçada do dia.

Não sabia o que o tinha feito parar à entrada da caverna para se virar para trás e olhar demoradamente aquele jovem, depois de relutantemente ter cedido ao chamamento dos outros e aos encontrões que um dos mais impacientes viera dar-lhe para que se levantasse… não sabia o porquê daquele medo que dele se apoderou… não sabia porque se lhe enchiam os olhos à medida que lentamente se virava e descia ao encontro dos outros…

Não sabia o porquê daquela dor que o acompanhou durante todo o dia pelas sucessivas vãs tentativas para caçar algum animal que pudesse servir de alimento para si e para o resto do grupo.

Não sabia porque se tinha sentido tão feliz quando, ao regressarem da caçada de mãos vazias, e à distância que o seu olhar conseguia alcançar, tinha vislumbrado o jovem sentado junto à entrada da caverna. Não sabia como o desânimo do insucesso da caçada se tinha transformado, tão repentinamente, naquela energia que o tinha feito correr em direcção à caverna.

Não sabia porque razão, ainda ofegante da subida apressada pelo amontoado rochoso que separava a planície da entrada da caverna, tinha sentido aquele impulso para tocar e agarrar aquele jovem, para se certificar que já não tremia, que já não estava quente, que já não suava, que aquela fera invisível tinha desistido do seu corpo ou tinha, de alguma forma, sido vencida.

Não sabia que este ao lado de quem agora se sentava era seu filho, porque não tinha a noção de paternidade, apenas o inexplicável instinto que o impelia a defender a sua herança genética.

Não sabia a idade daquele jovem porque, embora tivesse a noção da sucessão das estações, do frio para a chegada das flores, das flores para o calor, do calor para a as arvores despidas de folhas e destas de novo para o frio, não tinha a noção de tempo, e também não saberia como extrapolar à contagem destas passagens o rudimentar uso que fazia dos dedos da mão, aos quais recorria para transmitir aos seus colegas de caça o número de animais presentes num dado local.

(continua)

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Lavagem...

Sentia-a suja, imunda mesmo!... Tinha passado por muitas batalhas, muitas delas perdidas, tinha caído no chão e tinha sido arrastada, espezinhada…

Sentiu-se completamente esmagado com o peso de toda aquela sujidade, como se o universo inteiro se tivesse abatido sobre ele e não o deixasse respirar… não, não podia esperar mais!... a lavagem tinha de ser feita rapidamente!

Depois do jantar esperou que os restantes membros da família se fossem retirando, aos poucos, para o merecido descanso e deixou-se ficar, aguentando o cansaço e o desejo de procurar igual conforto.

Esperou um pouco mais para dar tempo a que todos adormecessem. Aquela lavagem era uma tarefa solitária, só dele, um acto do mais elementar egoísmo que não podia ser partilhado nem interrompido.

Dirigiu-se à estante da sala e retirou um CD, depois dirigiu-se à aparelhagem, colocou o CD no leitor, ligou os auscultadores, puxou uma almofada de uma cadeira próxima e colocou-a no chão junto do móvel da aparelhagem.

Apagou a luz e, no escuro, deitou-se no chão com a cabeça na almofada e colocou os auscultadores. Durante algum tempo deixou-se ficar ali sentindo o silêncio, a escuridão e o conforto do chão duro nas costas. Depois, lentamente, levantou o braço direito e, tacteando pelo leitor, carregou no botão de “Play”. Esperou pelos primeiros acordes para ajustar o volume e depois baixou o braço colocando-o ao longo do corpo, na perfeita simetria com o braço esquerdo.

Fechou os olhos. Todos os seus sentidos estavam concentrados naquela música que agora se começava a desenrolar.

Menos de um minuto passado desde o início da primeira faixa, a entrada do baixo, logo seguida pela entrada do coro, primeiro com as vozes masculinas e pouco depois com as femininas, provocou-lhe um arrepio que se propagou a todas as partes do corpo. Sentiu as raízes de cada cabelo do seu corpo como se fossem alfinetes espetados na pele.

Pouco depois, a entrada da soprano inunda-lhe os olhos. Sente-se flutuar, como se tivesse sido transportado daquela sala e daquele chão para uma outra dimensão. A intensidade de sensações assume proporções cada vez maiores até que o coro, adivinhando a necessidade de uma pausa urgente naquele turbilhão de emoções, se esvai num “et lux perpetua luceat eis”.

Mas a pausa é curta, ainda mal acabara de recuperar o fôlego e já o “Kyrie eleison” lhe arrancava de novo a respiração…

“Dies irae”

“Tuba Mirum”

“Rex tremendae”

Do lado direito, um primeiro fio, impossível de conter por mais tempo no limitado volume da cavidade ocular, abriu caminho pelo canto exterior do olho, seguindo depois, muito lentamente, em direcção à orelha, passando junto à almofada do auscultador em direcção ao pescoço e perdendo-se no emaranhado de cabelo entalado contra a almofada.

Talvez por uma menor produção da glândula lacrimal esquerda, talvez por uma ligeira inclinação da cabeça mais para o lado direito, ou talvez por um maior volume da cavidade ocular esquerda, resultante de alguma imperceptível falta de simetria na anatomia facial, que, como bem sabemos, os dois lados, esquerdo e direito, nunca são exactamente iguais, do lado esquerdo só alguns breves segundos depois escorreu um fio semelhante ao que havia escorrido do direito.

Sentiu cada milímetro daqueles dois percursos, um após o outro, daquelas duas primeiras lágrimas, lentas e hesitantes, à medida que iam vencendo a resistência imposta pela pele ainda seca. Não, não fez qualquer tentativa para enxugar os olhos ou para limpar os rastos molhados de ambos os lados da cara. Não, aquelas lágrimas tinham de percorrer o seu caminho sem qualquer perturbação…

“Recordare”

“Confutatis maledictis”

Os fios lentamente traçados por aquelas duas primeiras lágrimas eram agora fluxos contínuos, percorridos sem dificuldade e espalhando-se pelo cabelo e pela almofada.

“Lacrimosa”

“Domine Jesu”

“Hostias”

Pelos fios abertos passam agora os últimos vestígios de uma cheia que, aos poucos, se esgota.

“Sanctus”

“Benedictus”

Acabaram-se as lágrimas…

“Agnus Dei”

“Communion”.

No súbito silêncio, abriu lentamente os olhos, agora quase completamente secos… Retomou a consciência do mundo à sua volta, do escuro da sala, do chão duro debaixo das costas, do cabelo molhado junto ao pescoço…

Ficou ali, de olhos abertos olhando o escuro. Interrogou-se, como fazia sempre, sobre aquele curioso facto de uma obra concebida para acompanhar na morte ter esta capacidade de, a ele, lhe trazer tanta vida… e como seria se o autor tivesse vivido o tempo suficiente para ser ele a terminar aquela obra deixada incompleta?… que sensações e emoções teria sentido naqueles últimos quarenta e cinco minutos ao ouvir essa obra completa?...

Levantou-se, desligou a aparelhagem e arrumou a almofada e os auscultadores e dirigiu-se para a cama.

A alma estava agora limpa… enrugada, tal como uma qualquer peça de roupa acabada de recolher do estendal, mas limpa… Imaculadamente limpa.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Sonhos Cruzados - parte V

(continuação de Sonhos Cruzados – partes I, II, III e IV)

Acordou pouco depois da hora habitual a que acordava durante a semana.

Procurou recordar o sonho da noite para ver se a carta que tinha enviado à morena tinha chegado intacta ao seu destinatário, e para ver se esta lhe tinha enviado alguma resposta…

Apercebeu-se da inutilidade dos seus esforços do dia anterior, mas foi com bastante entusiasmo que recordou o exacto número de unhas que a morena de cabelo comprido e olhos castanhos pintara de vermelho bem vivo.

Sentiu-se bastante satisfeita com o facto de terem encontrado uma forma de comunicar, mas haveria tempo para voltar a pensar no assunto durante a tarde, por isso voltou a fechar os olhos na tentativa de aproveitar a manhã de sábado para se recompor do cansaço acumulado ao longo da semana.

Acordou pouco depois da hora habitual a que acordava durante a semana.

Procurou recordar o sonho da noite para ver se tinha havido alguma evolução… mas desta vez o sonho fora estranhamente curto… apenas um acordar para voltar a adormecer numa manhã de sábado… optou por não pensar muito no assunto e resolveu, seguindo o exemplo da loira, fechar os olhos na tentativa de aproveitar a manhã de sábado para se recompor do cansaço acumulado ao longo da semana.

Acordou com o toque da campainha da porta. Os sucessivos toques das campainhas dos apartamentos vizinhos permitiram-lhe deduzir tratar-se de alguém a distribuir publicidade…

Acordou com o toque da campainha da porta. Os sucessivos toques das campainhas dos apartamentos vizinhos permitiram-lhe deduzir tratar-se de alguém a distribuir publicidade…

Não tinha de se incomodar, algum dos seus vizinhos ou vizinhas abriria a porta, mas sentia-se estranha, por isso levantou-se e dirigiu-se à casa de banho de olhos meio fechados…

Não tinha de se incomodar, algum dos seus vizinhos ou vizinhas abriria a porta, mas sentia-se estranha, por isso levantou-se e dirigiu-se à casa de banho de olhos meio fechados…

Sentiu-se perdida no quarto e foi com alguma dificuldade que acabou por dar com a porta da casa de banho. Sentia-se cada vez mais estranha…

Sentiu-se perdida no quarto e foi com alguma dificuldade que acabou por dar com a porta da casa de banho. Sentia-se cada vez mais estranha…

Levou as mãos à cara e depois ao cabelo… de repente sentiu o seu mundo desabar…

Levou as mãos à cara e depois ao cabelo… de repente sentiu o seu mundo desabar…

Numa súbita urgência de negar com os olhos a afirmação transmitida pelo tacto, correu a mão pela parede pelo lado de fora da porta da casa de banho até encontrar o interruptor…

Numa súbita urgência de negar com os olhos a afirmação transmitida pelo tacto, correu a mão pela parede pelo lado de fora da porta da casa de banho até encontrar o interruptor…

Com a mão a proteger os olhos da súbita luminosidade olhou-se ao espelho e deixou escapar um grito de horror…

Com a mão a proteger os olhos da súbita luminosidade olhou-se ao espelho e deixou escapar um grito de horror…

Do lado de lá olhavam-na uns olhos castanhos plantados numa cara morena de cabelo escuro comprido, emaranhado pela almofada…

Do lado de lá olhavam-na uns olhos azuis plantados numa cara branca de cabelo loiro e curto, levemente desalinhado pela almofada…

Puxou o cabelo para a frente dos olhos para ter a certeza de que não estava a ser enganada pelo espelho… mas não, lá estava o cabelo comprido e escuro…

Agarrou nuns quantos cabelos e arrancou-os para os poder olhar directamente e ter a certeza de que não estava a ser enganada pelo espelho… mas não, eram bem loiros aqueles cabelos entre os seus dedos, como era viva a dor de onde acabara de os arrancar…

Incrédula, recuou até à porta da casa de banho e deteve-se um pouco a olhar à sua volta.

Incrédula, recuou até à porta da casa de banho e deteve-se um pouco a olhar à sua volta.

Virou-se para o quarto, vagamente iluminado pela luz atrás de si e, de novo, olhou à volta.

Virou-se para o quarto, vagamente iluminado pela luz atrás de si e, de novo, olhou à volta.

Saiu apressadamente do quarto e percorreu a casa toda olhando vagamente em todas as direcções…

Saiu apressadamente do quarto e percorreu a casa toda olhando vagamente em todas as direcções…

Não havia dúvida, estava na casa da morena!…

Não havia dúvida, estava na casa da loira!…

Encostada numa parede deixou-se deslizar até ficar sentada no chão.

Encostada numa parede deixou-se deslizar até ficar sentada no chão.

Tentou recordar-se do seu nome… mas por mais que tentasse só conseguia lembrar-se do nome da morena…

Tentou recordar-se do seu nome… mas por mais que tentasse só conseguia lembrar-se do nome da loira…

Não havia dúvida, estava no corpo da morena… no mundo da morena... e com as memórias da morena!...

Não havia dúvida, estava no corpo da loira… no mundo da loira... e com as memórias da loira!...

***

Não voltou a saber da loira de cabelo curto e olhos azuis, nem mesmo em sonhos.

Não voltou a saber da morena de cabelo comprido e olhos castanhos, nem mesmo em sonhos.

FIM

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Sonhos Cruzados – parte IV

(continuação de Sonhos Cruzados – partes I, II e III)

Por alguns instantes, ali sentada na cama, apoderou-se dela uma enorme frustração pela inutilidade daquele trabalho, como se tivesse sido ela própria a tê-lo e não a loira de cabelo curto e olhos azuis. Tantas horas de cuidadosa dedicação e memorização… e tudo para nada!…

Depois, pensando melhor, concluiu que aquela tinha sido apenas a primeira etapa de um caminho de descoberta, do qual não podia desistir logo ao primeiro fracasso! Não, de facto desistir não fazia o género dela.

Enquanto tomava o banho matinal foi tentando organizar as ideias e tentando descobrir alguma porta entreaberta, ou a ponta de um véu que pudesse levantar para, finalmente, revelar os segredos escondidos…

Lembrou-se da possibilidade de recorrer a algum evento desportivo, social, ou político de nível mundial. Mesmo que não conseguissem estabelecer um outro tipo de contacto, talvez fosse possível encontrarem-se em algum local que ambas conseguissem estabelecer como referência…

Foi então que se deu conta de que se recordava com bastante detalhe de todas as caras que se haviam cruzado na frente dos olhos azuis da loira de cabelo curto. E também as caras que se haviam cruzado na frente dos seus olhos castanhos apareciam claras nas imagens recordadas dos sonhos da loira.

Foi tentando identificar outros detalhes dos quais se recordava com clareza para depois procurar alguma forma de os usar para passar informação… lembrava-se das roupas que a outra vestia, da cor do batom, do verniz das unhas, daquilo que comia… “o verniz das unhas!” exclamou em voz alta… Sim, essa poderia ser uma forma!...

Saiu rapidamente do banho e, depois de se secar cuidadosamente, pintou algumas unhas das mãos, o mesmo número de unhas do primeiro dígito do seu número de telefone, começando pelo indicativo internacional. Se o esquema funcionasse, e se a loira seguisse o exemplo, bastariam alguns dias para ambas saberem em que países viviam. Depois, com mais alguns dias, teriam o número de telefone completo e poderiam, finalmente, entrar em contacto.

Sentiu-se ridícula assim com algumas unhas pintadas e outras por pintar… e certamente iria ser alvo da curiosidade dos colegas no laboratório, mas tudo isso lhe parecia pouco importante face ao objectivo em vista… De qualquer modo, tal como vinha acontecendo nas últimas semanas, o volume de trabalho que a esperava não deixaria muitas oportunidades para alimentar conversas à volta do assunto.

Chegou a casa já bastante tarde. Tinha conseguido terminar todo o trabalho que se havia proposto fazer, mas agora estava muito cansada… Felizmente era sexta-feira!... no dia seguinte poderia descansar um pouco mais… e poderia voltar a pensar na loira de cabelo curto e olhos azuis, e nas possíveis formas de com ela comunicar. Mas, para já, era urgente descansar… e era também urgente que a loira acordasse…

Não teve dificuldade em adormecer.

(continua, mas o fim está próximo)

sábado, 3 de maio de 2008

Sonhos Cruzados - parte III

(continuação de Sonhos Cruzados – parte I e parte II)

Ali continuou sentada, na beira da cama, tentando encontrar uma explicação… Era como se tanto ela como a morena do sonho fossem, de facto, pessoas reais… duas pessoas ligadas uma à outra, de tal forma que enquanto uma vivia o seu dia, a outra sonhava, na sua noite, aquele dia vivido…

Como seria possível uma coisa assim?... que magias?... que deuses?... que demónios?... que forças ocultas estariam por detrás de uma tal ligação?... e porquê ela?... porquê elas?! E quem seria a morena?... onde viveria?... em que país e em que cidade?...

Fechou os olhos e esforçou-se por se lembrar de algum detalhe que lhe pudesse dar uma pista. Assim foi percorrendo os sonhos das últimas duas noites, tentando encontrar alguma informação que lhe permitisse ter uma ideia acerca do local onde vivia a morena de cabelo comprido e olhos castanhos. Mas por mais que tentasse, e apesar de a maior parte das imagens daqueles sonhos lhe aparecerem tão claras como se tivesse sido ela a vê-las com os seus próprios olhos, não conseguia recordar qualquer detalhe que a pudesse ajudar naquela tarefa. Além disso, continuava a não conseguir recordar o nome da morena nem língua que falava.

Estava num beco sem saída… o local onde a outra vivia poderia ser um entre muitos milhares espalhados pelo globo… e mesmo que a fisionomia dela e das outras pessoas com quem se cruzara lhe permitissem excluir algumas zonas do globo, ficavam ainda muitas outras possibilidades.

Saiu da cama enquanto continuava a pensar numa forma de sair daquele impasse. Enquanto tomava o banho matinal, que desta vez não servia de despertador, pois o seu cérebro começara a trabalhar a todo o vapor assim que acordara, tomou uma decisão. Ao longo do dia trataria de plantar nas suas memórias várias referências que, depois de sonhadas pela morena, poderiam dar a esta alguma referência. Já que ela não conseguira recordar-se de qualquer informação útil, talvez conseguisse passar à outra informações sobre ela própria.

Sentada no autocarro, a caminho do escritório, foi pensado como seria aquele hipotético futuro encontro entre ela e a morena… de que forma influenciaria as suas vidas?... de que falariam?... conseguiriam comunicar-se numa língua que ambas entendessem?... e como sonhariam depois esse encontro?...

Ocorreu-lhe que a morena poderia viver precisamente do outro lado do planeta… a noite de uma coincidindo com o dia da outra… e a vigília de uma com o sono e o sonho da outra…

Já no escritório ligou o computador e começou a navegar pela internet procurando fotografias e descrições dos locais e dos monumentos mais simbólicos do país. Juntou tudo num documento, no qual acrescentou uma página onde, em letras bem grandes, escreveu o nome do país e da cidade em que vivia. Ao longo do dia, foi visitando várias vezes este documento, percorrendo cuidadosamente cada página, para garantir que este ficaria devidamente implantado na sua memória.

Quando o paquete interno do escritório lhe trouxe a correspondência do dia, sorriu ao pensar que o que estava a tentar fazer era, nada mais, nada menos, que enviar uma carta à morena de cabelo comprido e olhos castanhos. Não estava a usar o serviço dos correios, nem colocara qualquer endereço de destino, mas, ainda assim, era de uma carta que se tratava, e sabia que seria recebida pelo destinatário pretendido.

Foi com muita expectativa que, já em casa, esperou pelo sono que, assim esperava, haveria de levar à morena toda aquela preciosa informação. No entanto, a expectativa e o sono não costumam ser bons companheiros, e era já bastante tarde quando finalmente conseguiu adormecer.

O despertador arrancou-a do sono à hora habitual de qualquer dia de trabalho. Preparava-se para sair da cama quando lhe vieram à memória as primeiras imagens daquele sonho… tinha sonhado de novo com a loira de cabelo curto e olhos azuis…

Ali continuou sentada, na beira da cama, relembrando cada detalhe do sonho… o beliscão no braço, as conclusões a que a outra tinha chegado, a tentativa de saber alguma coisa sobre ela própria e, finalmente, a tentativa de lhe enviar uma carta com informações sobre o local onde vivia…

Tentou então lembrar-se daquelas páginas daquela carta que a loira lhe tentara enviar, mas, por mais que se esforçasse, não conseguiu recordar nem o que estava escrito nem as imagens das fotografias tão criteriosamente seleccionadas…

(continua)

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Sonhos Cruzados - parte II

(continuação de Sonhos Cruzados – parte I)

Enquanto entrava no duche para se colocar debaixo da chuva de água quente que todas as manhãs a resgatava, definitivamente, da sonolência, interrogou-se sobre aquele estranho sonho, tentando recordar mais detalhes e mais imagens. E foi de olhos fechados, com a água do chuveiro a cair-lhe na cabeça e a escorre-lhe pelo corpo, que se deu conta do sonho daquela outra mulher com quem tinha sonhado… apercebeu-se que a outra, a loira de cabelo curto e olhos azuis, tinha sonhado com ela, a morena de cabelo comprido e olhos castanhos…

Ali ficou estática, recordando aquele sonho que se prolongava pelo dia de trabalho de uma mulher loira de cabelo curto e olhos azuis… um dia de trabalho intenso, aqui e ali salpicado pelas recordações de um sonho onde era uma morena de cabelo comprido e olhos castanhos…

Estava bastante confusa… ela, morena de cabelos compridos e olhos castanhos, tinha tido um sonho no qual era uma outra mulher, loira de cabelo curto e olhos azuis, que, por sua vez, tinha tido um sonho no qual era uma outra… A loira do sonho tinha sonhado com o dia que ela própria, a morena, tinha vivido ontem!…

As imagens daquele sonho apareciam-lhe tão nítidas como se as tivesse vivido de verdade… Abriu os olhos e debruçou-se um pouco para se conseguir olhar no espelho, já meio embaciado pelo vapor do chuveiro, só para ter a certeza de que este lhe devolvia a imagem de uma cara com cabelo escuro e comprido…

Ocorreu-lhe então uma ideia perturbadora… a ideia de que ela própria poderia não ser mais do que um sonho sonhado pela loira de cabelo curto e olhos azuis… Quase instintivamente beliscou-se violentamente no braço, na expectativa de acordar em sobressalto e de correr para a casa de banho para encontrar a sua imagem, de cabelo loiro curto e olhos azuis, reflectida no espelho.

Mas não… ali continuava, com a água quente a escorrer-lhe pelo corpo e uma dor bem viva no braço esquerdo… Podia então concluir que ela era real e que a outra, a loira de cabelo curto e olhos azuis, era apenas uma criação da sua imaginação… um sonho estranho, mas apenas isso, um sonho!...

Apressou-se a terminar o banho e a arranjar-se para sair de casa para mais um dia de trabalho. Tinha um programa bastante apertado de experiências para realizar e não podia dar-se ao luxo de perder tempo por causa de um simples sonho.

Ao longo do dia só a dor persistente no seu braço esquerdo, e a mancha que gradualmente se fora transformando de vermelho para verde escuro, lhe trouxeram recordações ocasionais daquela manhã e das imagens plantadas durante a noite. Passava já bastante da normal hora de jantar quando, finalmente, conseguiu concluir o programa de experiências e de observações que tinha programado para aquele dia.

Finalmente em casa, e depois de comer qualquer coisa rápida, sentou-se no sofá e ligou a televisão no canal de notícias para se pôr a par com o que tinha acontecido pelo mundo. No entanto, o cansaço apoderou-se rapidamente dela, e foi já meio cambaleante que se dirigiu para o quarto e se enfiou dentro da cama. Não teve dificuldades em adormecer.

O despertador arrancou-a do sono à hora habitual de qualquer dia de trabalho. Preparava-se para sair da cama quando lhe vieram à memória as primeiras imagens daquele sonho… tinha sonhado de novo com a morena de cabelo comprido e olhos castanhos…

Apercebeu-se então que também a morena tinha sonhado com ela… lembrou-se das dúvidas da morena e do beliscão no braço… lembrou-se da conclusão a que chegara pelo facto de não ter acordado… seria possível?... seria ela, a loira, um mero sonho da morena?... Quase instintivamente sentou-se na cama e beliscou-se violentamente no braço, na expectativa de acordar em sobressalto e de correr para a casa de banho para encontrar a sua imagem, de cabelo escuro comprido e olhos castanhos, reflectida no espelho.

Mas não… ali continuava, sentada naquela mesma cama com uma dor bem viva no braço esquerdo…

(continua)

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Sonhos cruzados - parte I

Saiu penosamente da cama e foi cambaleando até à casa de banho. Deixou-se ficar sentada na sanita mais do que o tempo necessário para se aliviar das necessidades fisiológicas matinais, o tempo necessário para que o seu corpo e o seu cérebro despertassem. Finalmente levantou-se e, já mais desperta, meteu a mão pela porta para chegar ao interruptor e acender a luz. De olhos entreabertos para evitar o encandeamento da súbita luminosidade, olhou-se ao espelho, cumprindo o ritual de todas as manhãs.

A repentina surpresa fê-la abrir completamente os olhos para ver melhor aquela imagem que o espelho lhe devolvia, como se não fossem aqueles olhos azuis os mesmos que todas as manhãs a olhavam do lado de lá, como se fosse diferente aquele cabelo loiro de corte curto, ainda desalinhado pela almofada.

Virou-se para o chuveiro, achando-se estúpida por se ter surpreendido com o reflexo da sua imagem que tão bem conhecia, e preparava-se para abrir a água quente quando lhe vieram à memória imagens plantadas durante a noite… imagens de um espelho não muito diferente daquele ao qual tinha acabado de virar as costas, numa casa de banho não muito diferente desta sua… mas era bastante diferente a imagem que agora recordava, reflectida naquele outro espelho… a imagem de uma cara bonita, de olhos castanhos e cabelo escuro e comprido.

Enquanto entrava no duche para se colocar debaixo da chuva de água quente que todas as manhãs a resgatava, definitivamente, da sonolência, interrogou-se sobre aquele estranho sonho, tentando recordar mais detalhes e mais imagens. Estas foram-lhe aparecendo cada vez mais nítidas, quase reais, como se fossem fragmentos de um dia realmente vivido num outro corpo…

Finalmente desperta, e finalmente consciente das responsabilidades que a esperavam no escritório, apressou-se a sair do banho e a preparar-se para sair de casa. Engoliu rapidamente um copo de leite frio e saiu de casa ainda a mastigar uma bolacha.

Já no autocarro, vieram-lhe ao pensamento imagens da morena do sonho, também ela apressada para sair de casa e apanhar o autocarro. Para onde iria ela, qual seria o seu destino matinal?... Concentrou-se um pouco mais naquelas imagens, às quais se sucederam novas imagens, nítidas como se as tivesse vivido de verdade, de uma viagem de autocarro, depois um breve percurso a pé e, finalmente, a entrada num edifício moderno…

Saiu do autocarro e, enquanto percorria a pé o percurso final até ao escritório, continuou também a percorrer aquelas recordações… vestia agora uma bata branca e, enquanto metia as mãos por baixo do cabelo comprido para o libertar da bata, deixando-o solto, viu-se novamente reflectida no espelho, morena de cabelo comprido e olhos castanhos, bonita… depois, satisfeita com a imagem que o espelho lhe mostrava, afastou-se e entrou no laboratório onde se sentou no seu lugar e depositou os olhos castanhos no microscópio.

A recordação destas memórias foi interrompida com a chegada ao escritório. O patrão também já tinha chegado. O dia de trabalho que agora começava ia ser muito intenso, por isso entregou-se rapidamente às suas responsabilidades.

Na breve pausa para o almoço recordou a também breve pausa do almoço sonhado. Também ela, a morena, parecia atarefada, não pelo volume de trabalho que um qualquer patrão lhe entregava, mas pelo entusiasmo do trabalho em si. Não conseguia recordar-se da exacta natureza do trabalho dela, mas pressentia uma excitação que ela própria nunca sentira naquele trabalho de secretária de administração.

Muito do sucesso da viagem de negócios do patrão dependia do trabalho que ainda havia para fazer, e o sucesso dela própria dependia, também, deste mesmo sucesso. A tarde correu, por isso, ainda mais intensa que a manhã. Felizmente o dia seguinte, com o patrão em viagem, seria mais calmo.

A noite ia já avançada quando finalmente deixou tudo pronto e desceu para apanhar um táxi que a levasse de volta a casa. Enquanto o táxi a transportava através das luzes da cidade, o seu pensamento transportou-a de novo numa viagem pelas memórias adquiridas durante a noite. Deu-se conta que tinha sonhado um dia completo daquela outra mulher, morena de olhos castanhos, bonita… um dia desde o acordar até ao adormecer, passando por toda a azáfama de um dia de trabalho num laboratório.

Surpreendeu-se de novo com a nitidez com que se recordava de tudo, embora, por outro lado, não conseguisse recordar-se do nome dela, da morena… nem do nome dos seus colegas… esforçou-se por tentar reconstruir alguns dos diálogos sonhados, mas apesar de recordar com clareza o que tinha sido dito, não conseguia reconstruir as palavras, nem a língua em que tinham sido pronunciadas…

Mas estava demasiado cansada, por isso desligou-se do sonho e, já em casa, comeu qualquer coisa rápida e foi para a cama. Não teve dificuldades em adormecer.

Saiu penosamente da cama e foi cambaleando até à casa de banho. Deixou-se ficar sentada na sanita mais do que o tempo necessário para se aliviar das necessidades fisiológicas matinais, o tempo necessário para que o seu corpo e o seu cérebro despertassem. Finalmente levantou-se e, já mais desperta, meteu a mão pela porta para chegar ao interruptor e acender a luz. De olhos entreabertos para evitar o encandeamento da súbita luminosidade, olhou-se ao espelho, cumprindo o ritual de todas as manhãs.

A repentina surpresa fê-la abrir completamente os olhos para ver melhor aquela imagem que o espelho lhe devolvia, como se não fossem aqueles olhos castanhos os mesmos que todas as manhãs a olhavam do lado de lá, como se fosse diferente aquele cabelo escuro e comprido, ainda desalinhado pela almofada.

Virou-se para o chuveiro, achando-se estúpida por se ter surpreendido com o reflexo da sua imagem que tão bem conhecia, e preparava-se para abrir a água quente quando lhe vieram à memória imagens plantadas durante a noite… imagens de um espelho não muito diferente daquele ao qual tinha acabado de virar as costas, numa casa de banho não muito diferente desta sua… mas era bastante diferente a imagem que agora recordava, reflectida naquele outro espelho… a imagem de uma cara bonita, de olhos azuis e cabelo curto e loiro.

(continua)

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Encontro

Nunca se tinha sentido tão triste e tão angustiada. Precisava de chegar a casa para se esconder, para chorar, para gritar!… entrou na casa de banho e lavou a cara com água fria, numa tentativa desesperada de segurar as lágrimas que lhe rebentavam nos olhos, e o grito que lhe subia pela garganta. Olhou a sua cara molhada no espelho e viu-a totalmente transfigurada naquela máscara de sofrimento. Secou apressadamente a cara, saiu da casa de banho, contornou os corredores, meteu pela escadaria e iniciou a descida.

O elevador seria mais rápido do que descer a pé os quatro andares que a separavam da rua, mas não queria encontrar-se com mais ninguém, muito menos no espaço apertado do elevador. As escadas, pelo contrário, estariam desertas, e mesmo que se cruzasse com alguém menos comodista, poderia continuar a descer apressadamente, reduzindo os eventuais encontros a simples cruzamentos de ombro com ombro... não de olhos com olhos, que esses seguiam colados aos degraus que lhe fugiam debaixo dos pés a grande velocidade, com a mão firme no corrimão para evitar alguma fatal perda de equilíbrio.

O frio do inverno tardio bateu-lhe na cara, ajudando-a a reprimir as lágrimas. Avançou pela rua, meio curvada, não para se esconder do frio, mas para se esconder do mundo e das outras pessoas que passavam. Apressou o passo pelo caminho mais curto, seguindo curvada e encostada às paredes dos prédios, numa tentativa desesperada de se esconder dos olhares da multidão que, apesar de frios e indiferentes, a trespassavam como flechas em chama.

Subitamente, ao virar para outra rua, chocou de frente com alguém que vinha no sentido oposto, também curvada e também encostada às paredes dos prédios, numa igual tentativa de se esconder de frios e indiferentes olhares.

Frente a frente olharam-se mutuamente. Nunca se tinham visto, mas reconheceram na cara uma da outra a mesma tristeza, a mesma angústia, a mesma máscara de sofrimento.

Instintivamente envolveram-se num abraço forte e contínuo, não num abraço de amantes, mas num abraço de irmãs. As lágrimas, impossíveis de reprimir por mais tempo, irromperam em enxurradas incontroláveis e os gritos soltaram-se das gargantas. Num tempo que não conseguiram contabilizar, o universo ficou reduzido a elas próprias, alheias à vida que continuava a correr à sua volta e aos olhares de quem passava.

Finalmente, como se obedecessem ambas a um subtil sinal de um oculto maestro, afastaram-se um pouco, mãos nas mãos, olhos nos olhos, já sem as lágrimas que entretanto se tinham esgotado.

A angústia foi-se transformando em coragem, e as máscaras de sofrimento foram dando lugar às expressões características de quem tomou uma decisão e sabe o que tem de fazer para a pôr em prática. Num derradeiro olhar, e sem terem trocado uma única palavra, viraram-se e iniciaram o caminho de regresso de cabeça erguida, na altivez da certeza da decisão tomada, prontas para enfrentar o mundo.

terça-feira, 25 de março de 2008

Carta

Srª Dona Morte,

Tomo esta liberdade em lhe escrever para lhe fazer um pedido. Não se trata de um pedido qualquer, pois não ousaria ocupar-lhe o seu precioso tempo, tão necessário no desempenho da sua infindável missão, com um assunto de somenos importância, arriscando-me mesmo, quem sabe, a um exemplar castigo supremo.

Não, não se trata de lhe pedir que adie esse encontro que tem marcado comigo na sua agenda secreta, ou talvez não tenha qualquer encontro marcado e decida, a cada dia ou a cada momento que passa, com quem se encontrar a seguir. Em qualquer dos casos, sei-o bem, seria de todo inútil fazer-lhe tal pedido e, por isso mesmo, não ousaria incomoda-la apenas por esse motivo.

Não, também não se trata de lhe pedir informações sobre a data prevista para esse nosso encontro, tentando dessa forma saber acerca da sua proximidade ou distância, pois viver com essa informação não seria viver.

É, portanto, outra a natureza do pedido que venho fazer-lhe. O que lhe venho pedir é um pouco mais de equidade entre esse seu papel de encontrar e este outro, o meu, de encontrado. Não lhe peço que altere a sua agenda ou, se for esse o caso, que altere os critérios com que a cada momento decide com quem se vai encontrar. Peço-lhe sim a recíproca capacidade de também eu poder marcar o fatídico e final encontro consigo, podendo, dessa forma, antecipa-lo se esse for o meu desejo.

A Srª Dona Morte argumentará, certamente, que essa é uma capacidade de que já disponho, pois não faltam por ai formas e mecanismos que permitam a um comum mortal fazer valer a sua vontade em se encontrar consigo. De facto não faltam pontes, edifícios, escarpas, e outros locais com altura suficiente, e dos quais se possa mergulhar na sua direcção. Também não faltam os comboios, os carros e os camiões, e outras ferozes máquinas capazes de fazer cumprir esse objectivo. Não faltam, ainda, as farmácias com os farmacêuticos de serviço sempre prontos para, nas suas avidezes de comerciantes, venderem, sem necessidade da supostamente necessária receita médica, as substâncias apropriadas para atingir o fim em causa.

O problema, Srª Dona Morte, é que os homens e mulheres, cansados de verem completamente ignorados e recusados todos os pedidos que repetidamente lhe fazem para adiar encontros, ocuparam-se no desenvolvimento de uma ciência a que chamaram medicina, e com a qual, através de complexos malabarismos, lá vão conseguindo importantes adiamentos. Ora, acontece que esta mesma ciência é, por vezes, usada como instrumento de verdadeira tortura, prendendo à vida pessoas que, privadas do necessário uso das suas capacidades motoras, se vêm impossibilitadas de recorrer aos mecanismos acima referidos.

A Srª Dona Morte poderá sugerir que peça aos ilustres representantes políticos deste país, para que façam aprovar a necessária legislação no sentido de tornar legítimo o recurso à eutanásia, permitindo, desse modo, a um mortal impossibilitado de se encontrar consigo pelos seus próprios meios, a possibilidade de o fazer recorrendo a uma caridosa ajuda externa.

Saiba, no entanto, que esta não seria tarefa fácil. Seria, antes de mais, necessário convencer os referidos políticos a incluírem nas suas agendas este assunto, o que, por si só, seria uma grande conquista, pois não pode ser dado como certo o desejado retorno em índices de popularidade ou no número de votos conquistados em época de eleições. Por outro lado, seria necessário ultrapassar a feroz oposição das instituições religiosas, as quais, com o argumento da salvação, não hesitariam em fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para impedir a aprovação de tal legislação, como se fossem elas e não eu as legítimas proprietárias deste corpo ateu.

Pelas razões apresentadas peço-lhe, Srª Dona Morte, se alguma vez a chamar, por favor venha.


Atenciosamente,

O Devaneante do Cantinho

sábado, 15 de março de 2008

Caprichos do Acaso - parte III

(continuação de Caprichos do Acaso - parte I e parte II)

Durante toda a semana não se tinha falado de outra coisa. Tinham sido incontáveis os debates promovidos pelos vários órgãos de comunicação social, tentando explorar ao máximo o filão mediático resultante da terceira repetição da mesma sequência no sorteio do loto.

Eram também incontáveis as diferentes teorias para explicar o sucedido. Desde os que afirmavam a pés juntos que a única explicação era a da existência de uma fraude, até aos que acreditavam tratar-se de um sinal divino da proximidade do fim do mundo. Havia também, mas em menor número, os que acreditavam tratar-se de uma mera coincidência.

No entanto, as longas e minuciosas investigações, feitas pelos peritos e pelas autoridades, nada conseguiram encontrar que sustentasse a tese de fraude. Também as autoridades do país vizinho, chamadas a investigar o sorteio feito nas instalações da entidade promotora do loto local, nada conseguiram encontrar que pudesse indiciar algo de anormal.

Ao longo da semana foi anormalmente elevada a afluência de fiéis aos locais de culto de várias religiões, para onde convergiram em massa todos aqueles que, receando a eminência do fim do mundo, se tentavam redimir dos pecados cometidos.

Entre os que acreditavam tratar-se de uma coincidência, e nos quais se incluía o perito promovido a comentador televisivo, circulavam os argumentos já anteriormente utilizados: que a probabilidade era muito baixa, mas não era nula… que qualquer outra combinação de outros três sorteios seria igualmente improvável… que o mundo não era mais do que uma grande sucessão de acontecimentos improváveis…

Na mais completa ausência de evidências da existência de fraude, a entidade promotora do jogo decidiu que o sorteio seguinte se faria nas condições normais, ou seja, nas suas instalações, com a sua tômbola, com as suas bolas, e à hora habitual. Naturalmente, o sorteio seria supervisionado por um grande batalhão de observadores, atentos a qualquer sinal que pudesse indiciar alguma forma de vício.

E assim, à hora marcada e com um número sem precedentes de espectadores, se inicia o novo sorteio. A imagem começa por mostrar demoradamente as bolas cuidadosamente ordenadas e com os números bem visíveis. Depois o ângulo abre para mostrar a tômbola ainda parada e que, breves segundos depois, começa a girar. As bolas caem dentro da tômbola onde se vão entrechocando até que uma delas inicia o seu movimento em direcção à primeira posição da calha… é o um…

O mundo ficou ainda mais suspenso… parecia inevitável a repetição daquela mesma sequência das três semanas anteriores! Os que defendiam a tese de fraude apressaram-se a chamar de incompetentes os investigadores, pois era inadmissível que não tivessem ainda desvendado o caso… Os que acreditavam na eminência do fim do mundo apressaram-se a retomar as suas preces, na convicção de estarem a presenciar mais um sinal divino…

A segunda bola inicia o trajecto da tômbola para a segunda posição na calha, onde se imobiliza ao lado da primeira, é o quarenta e um…

Nos bastidores do sorteio os responsáveis da entidade promotora do jogo, juntamente com o batalhão de observadores, respiraram de alívio e de um momento para o outro o ambiente, que se havia tornado tenso com a saída da primeira bola, desanuviou-se. Pelo mundo fora só alguns fiéis mais fervorosos pareceram ficar desiludidos por não se repetir aquele sinal considerado divino, como se ansiassem que o mundo estivesse mesmo à beira do fim.

Entretanto uma nova bola toma o seu lugar na calha, é o quarenta e dois… pouco depois junta-se-lhe a bola treze… depois a cinco… depois a seis… e, finalmente, a bola suplementar, a vinte e três.

Em sua casa, o perito comentador televisivo olha intrigado para a sequência de números, entretanto transcritos para um pedaço de papel, na mesma ordem em que tinham sido sorteados. De súbito levanta-se do sofá, dirige-se ao quarto do filho adolescente e pega na calculadora abandonada em cima da secretária. Liga a calculadora, carrega em duas teclas e fica a olhar alternadamente para o mostrador da calculadora e para o pedaço de papel com a sequência sorteada…

Sorriu e falou em voz alta:

“Mais uma chave improvável… tão improvável quanto qualquer outra, mas…”

Olhou de novo para a sequência…

Pitágoras que diria Pitágoras se fosse vivo e tivesse presenciado o sorteio de hoje?...”

FIM