sexta-feira, 26 de setembro de 2008

A Criação de Deus – parte III

(continuação de A Criação de Deus – parte II)

Chegaram finalmente aquele local onde todos os dias subiam para planear o dia de caça. Dali podiam ver, lá em baixo, uma vasta área onde vários animais costumavam alimentar-se. E dali podiam delinear os planos para matar e levar para a caverna um daqueles animais.

E hoje, depois do fracasso da caçada do dia anterior, era especialmente importante conseguirem voltar para a caverna com alguma coisa que os pudesse compensar da fome mal disfarçada com os poucos alimentos reunidos pelas mulheres e pelos jovens.

Acercou-se do limiar do rochedo e ali se deixou ficar a olhar aquele espaço, enquanto os outros começavam a discutir as melhores formas de prosseguir o dia… também ele costumava participar nestas discussões, mas neste dia, depois dos acontecimentos do dia anterior e dos pensamentos, dúvidas e receios da noite, preferiu ficar ali, de olhar vago, respirando o ar ainda fresco do início do dia.

Vieram-lhe à memória as imagens daquele jovem deitado no chão da caverna… a recordação daquela estranha e dolorosa sensação que o tinha atormentado durante todo o dia e que, sabia-o, em muito tinha contribuído para o fracasso da caçada… a recordação da alegria que sentira quando, ao voltar à caverna, tinha encontrado o jovem já bastante melhor… a noite de guarda… as pequenas luzes no céu escuro… a grande luz que não tinha aparecido nessa noite… a grande luz que trouxera o dia e que agora o aquecia…

Estes pensamentos foram interrompidos, não pela acesa discussão atrás de si, mas por uma quase imperceptível movimentação na vegetação lá em baixo. Agachou-se no limite do rochedo para melhor inspeccionar a zona, não que esperasse encontrar ali algum alvo de caça, ou que, ainda influenciado pela sua inesperada tarefa de guarda na noite anterior, temesse uma qualquer ameaça… não havia uma razão em particular, apenas a mais simples das curiosidades.

A princípio não conseguiu detectar qualquer indício, mas alguns instantes depois um novo movimento denunciou-lhe o corpo de uma fera, tão fundida com a vegetação que só o movimento a tornou visível. Sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo, não porque temesse um ataque daquela fera, pois sabia bem que nada se atreveria a atacar um grupo tão grande, mas por se tratar de uma fera igual aquela que ele havia enfrentado, há não muito tempo, para defender aquele mesmo jovem, e que quase lhe arrancara um dos braços. Sem se dar conta agarrou o braço, no sítio onde agora havia uma enorme cicatriz, como se tivesse ficado mais intensa aquela mesma dor que sempre o acompanhava e à qual já quase se habituara. Depois, esquecendo de novo a dor do braço, olhou para a pele que lhe cobria o corpo, a mesma pele que antes cobrira o corpo da fera que o atacara e que, desde então, ele fazia questão de usar sempre.

Um movimento mais brusco lá em baixo chamou-lhe de novo a atenção… a fera parecia estar a atacar algum animal… olhou melhor e viu, então, uma cria toda encolhida, vergada pelo medo dos dentes bem afiados e pelo rugido da mãe. Não era a primeira vez que assistia a situações destas, em que um animal utilizava a sua força e o seu poder contra a sua própria cria. No seu próprio grupo era frequente os mais velhos fazerem o mesmo em relação aos jovens, e ele próprio já o tinha feito. Lembrava-se também, ainda que vagamente, de várias situações em que ele mesmo, ainda jovem, tinha também sido o alvo deste tipo de comportamento.

Sabia que o objectivo daquela fera não era o de ferir a sua própria cria, muito pelo contrário, sabia que este tipo de situação só poderia ser justificado pelo facto de a cria ter feito algo de errado, e esta era a forma de lhe mostrar isso. Não, o objectivo não era atacar, o objectivo era outro… não sabia bem como classificar este outro objectivo, pois não tinha, no seu ainda rudimentar vocabulário, qualquer palavra que permitisse traduzir correctamente o que estava a ver. Por momentos questionou-se sobre aquele estranho facto de a mesma força poder ser usada tanto para atacar como para aquele outro objectivo, o qual, apesar de não saber como classificar, sabia ser o oposto do primeiro.

Pensou como seria bom se ele próprio continuasse a ter alguém que tomasse conta dele, que o protegesse dos perigos e dos seus medos… alguém ou alguma coisa… ficou ali bloqueado com aquele desejo… não sabia porquê, mas não conseguia pensar noutra coisa… e foi então que teve aquela ideia!... e se houvesse mesmo alguém?... ou alguma coisa?...

***

E foi assim que, pela primeira vez, o homem criou Deus, um Deus à imagem das suas necessidades, das suas dúvidas e dos seus medos.

Talvez não tenha sido desta forma… talvez não tenha sido de uma forma muito diferente…

4 comentários:

Sao Teixeira Pereira disse...

Talvez tenha sido assim...
Pelo menos a criação do "Deus" que a maioria idealiza...
Julgo que sim, que é isso que a maioria das pessoas espera do seu Deus...

No entanto, ..., não é essa a minha concepção de Deus.
Mas claro, ..., eu sei que sou diferente. De acordo com a concepção geral sou mais agnóstica que crente.

Mas eu considero-me crente!
Profundamente crente!
Só que eu criei para mim um Deus diferente...
Na minha criação,..., Deus não toma conta de mim. Pelo contrário! É um Deus que acredita em mim, gosta de mim como sou, incentiva-me a continuar e diz-me que EU sou capaz de tomar conta de mim!

Anônimo disse...

fantástico. é muito capaz de ser esta a explicação ou outra parecida.
o meu conceito de Deus, é mais aquele, se alguém que me ouve sem eu ter que abrir a boca e que por vezes até me responde quando lhe peço alguma coisa.
ainda não o coloquei à "prova" para me defender, mas também não estou no tempo das cavernas.

Rui disse...

Sim, se não foi exactamente assim, foi parecido. Pena que depois o Homem se tenha deixado raptar pela sua criação.

Gostei muito.

Anônimo disse...

só uma perguntinha, vamos outra vez esperar mais dois meses por nova actualização?