(continuação de Quase-vida – parte I)
O reboque ocupava-lhe agora todo o campo de visão, escondendo-lhe o resto do mundo, escondendo-o do olhar dos que à volta assistiam à cena, no horror de saberem que poderiam ser eles a estar ali naquele mesmo local a enfrentar aquele mesmo destino mas, ao mesmo tempo, aliviados por lhe terem escapado.
Então, repentinamente, a imagem do reboque desapareceu dando lugar à imagem de um caixão, despido de quaisquer símbolos religiosos, que dois desconhecidos deixam deslizar, com o auxílio de cordas, para dentro de um buraco aberto no chão.
A imagem desloca-se agora um pouco, mostrando uma mulher de joelhos, abraçada a três crianças, numa mancha de luto sobressaindo do verde do relvado. Uma fila de gente que ele não consegue identificar, espera a sua vez para ir, por momentos, aumentar aquela mancha de luto que permanece imóvel e silenciosa no verde do relvado, enquanto os dois desconhecidos se desfazem das cordas para, com o auxílio de uma pá e de uma enxada, começarem a devolver ao buraco aberto no chão a terra arrancada horas antes à força de picareta.
A imagem mudou repentinamente. Reconheceu a sala da sua casa, embora o mobiliário e a cor das paredes estivessem diferentes. Pela porta, vinda do corredor, vê entrar na sala a figura de um rapaz. Parece-lhe reconhecer o seu filho mais velho, mas acha-o diferente… percebe então que este não é o filho mais velho, mas sim o irmão, pouco menos de dois anos mais novo. Antes que pudesse perceber o que se estava a passar entra na sala outro rapaz, um pouco mais alto, e no qual reconhece, agora sim, a cara do filho mais velho. Enquanto os dois rapazes se dirigem para o sofá, entra na sala uma figura que reconhece ser da filha, a mais nova dos três, também ela bastante mais crescida do que quando ele a vira pela última vez.
Enquanto se sentam no sofá ouve a voz do mais velho dizer “Mãe, já arrumamos os quartos, vamos ver um pouco de televisão”. De outro local da casa, uma voz que ele não teve dificuldade em reconhecer responde “Está bem, o almoço está quase…”.
Centrou a sua atenção no trio sentado no sofá, deviam ter passado pelo menos dois anos desde o dia daquela outra imagem onde os vira fundidos na mancha de luto sobre o verde do relvado. Mas ao contrário do que tinha visto nessa outra imagem, nesta não havia sinais de tristeza.
A imagem da sala desvanece-se para dar lugar a uma sucessão de novas imagens, as quais lhe aparecem em catadupa, apenas pequenos excertos uns a seguir aos outros, pedaços da vida dos filhos ao longo do seu crescimento. À frente dos seus olhos vê passarem-se três vidas, às quais se juntam novas vidas de netos e netas que apenas conhecerão aquele avô através das fotografias gastas no velho álbum de família… Vidas vulgares, mas vidas longas e globalmente felizes…
Sentiu-se satisfeito e sem hesitações fechou os olhos.
Já em cima da maca, o bombeiro corre o fecho do saco, escondendo aquele corpo acabado de resgatar do amontoado de destroços. Já tinha perdido a conta ao número de corpos que, ao longo de vários anos, ajudara a resgatar de carros acidentados, por isso já há muito que deixara de se impressionar com este tipo de situações. Mas havia alguma coisa diferente neste caso… não sabia bem o quê… voltou a abrir um pouco o fecho, apenas o suficiente para olhar de novo para aquela cara ensanguentada. E foi então que viu, por detrás dos cortes e das manchas de sangue, um sorriso e uma estranha expressão de felicidade. Voltou a fechar o fecho e empurrou a maca para dentro da ambulância.
(com possível continuação… numa outra dimensão…)
4 comentários:
demais
agora quero conhecer a parte de ver "de cima"
Os anjos não sabem guiar.
Gostei.
Acho que esses momentos, em que já não se está vivo e ainda não se está morto, são os que fazem as pessoas dizer que têm medo da morte... Vivi isso de perto... Acredito que sejam momentos sem dor, tanto física, como psíquica...
Mas, quando nos dizem que o decapitado só morreu momentos após lhe terem cortado a cabeça, o que, a ver pelas galinhas, é a pura verdade, a gente começa logo a imaginar que por ali se entra na "twilight zone"...
Gostei do conto!
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