sábado, 8 de março de 2008

Caprichos do Acaso - parte II

(continuação de Caprichos do Acaso - parte I)

Foi notícia de abertura do noticiário. Não por falta das habituais notícias sobre guerras, atentados, desastres, escândalos, desfalques, ou outras igualmente capazes de prender a atenção dos espectadores. Não pela falta de fenómenos novos ou bizarros, mas pelo bizarro fenómeno da repetição de um acontecimento já anteriormente acontecido.

O mesmo jornalista que na semana anterior tinha transmitido com alguma indiferença a notícia do primeiro acontecimento, usa agora o mesmo estilo com que costuma informar acerca das mais importantes notícias:

“Pela segunda semana consecutiva o sorteio do loto ditou exactamente a mesma chave. Os números de um a sete voltaram a sair, rigorosamente por esta ordem, repetindo o sorteio de há uma semana. Esta insólita repetição vem levantar fortes suspeitas de fraude e, por isso mesmo, foi já mandado instaurar um rigoroso inquérito para apurar eventuais irregularidades.”

Lá passaram, de novo, as imagens do sorteio, desta vez abreviadas aos momentos em que as várias bolas rolam da tômbola para a calha onde tomam o seu lugar, perfeitamente ordenadas de um a seis, com a bola sete a tomar posição exclusiva reservada ao número suplementar.

Seguiram-se imagens de um comunicado à imprensa, feito pelo responsável da entidade promotora do jogo, onde se anuncia o levantamento imediato do rigoroso inquérito necessário ao apuramento de eventuais irregularidades.

O jornalista anuncia a presença de um perito, chamado a comentar o sucedido, a quem pergunta:

“É possível, num sorteio que se supõe aleatório, haver semelhante repetição?”

“Bem, essa pergunta é bastante mais complexa do que imagina… É que, ao contrário do que possa parecer, os conceitos ‘possível’ e ‘aleatório’, não são de fácil definição.

O que é, afinal, um acontecimento aleatório?... um acontecimento que é influenciado por alguma forma de caos, contrariando a visão daqueles que acreditam num universo determinístico?... ou um acontecimento que simplesmente não conseguimos prever, dado o elevado número de condicionantes e de factores em jogo?

E onde está a fronteira entre o possível e o impossível?... Richard Feynman, prémio Nobel da Física em 1965, desenvolveu uma teoria em que defende que nada é impossível, e que mesmo o acontecimento mais bizarro tem alguma probabilidade de se verificar.

Portanto, e para evitar ficar aqui indefinidamente a divagar sobre estes assuntos, que a maior parte dos telespectadores acharia profundamente maçadores, vou limitar-me a analisar a situação numa perspectiva meramente probabilística.

E, do ponto de vista probabilístico, o facto de uma chave ter sido sorteada uma vez não implica que ela não se possa repetir uma segunda vez. Em cada sorteio cada chave é tão provável quanto qualquer outra, ou talvez seja mais correcto dizer que é tão improvável quanto qualquer outra. E como cada sorteio é completamente independente dos anteriores, nada impede a existência de repetições.

O número de sequências possíveis em dois sorteios de loto é demasiado grande, bastará dizer que se trata de um número com vinte e quatro algarismos para se ter uma ideia. Estou a referir-me ao número de sequências possíveis e não ao número de chaves, pois a situação que está em análise é a da dupla extracção da bola um até à bola sete, exactamente por esta ordem. Se estivesse a referir-me às chaves, a ordem não seria relevante e portanto a análise seria diferente.

Ora, nesse número de possíveis sequências apenas uma corresponde à sequência que se verificou nos dois últimos sorteios. Consequentemente a respectiva probabilidade era muito pequena…”

O jornalista, ávido por uma revelação bombástica, procura saltar rapidamente para as conclusões: “Ou seja, o mais provável é haver alguma anomalia, ou algum tipo de fraude, para que se tenha verificado esta repetição?”

“Não, não, de modo algum! O que eu disse relativamente à sequência que se verificou é válido para qualquer outra sequência, pois todas elas são igualmente improváveis… na verdade a sequência verificada no conjunto das duas últimas semanas era tão provável, ou improvável, quanto a sequência das duas semanas que lhe precederam.”

O jornalista, muito pouco convencido com as afirmações do perito, ou talvez desiludido por não ter podido revelar a inevitabilidade de uma fraude, dá por terminada a entrevista e avança para outros elementos de reportagem.

Ao longo da semana os apostadores premiados, em muito menor número que o habitual, pois ninguém esperava a repetição dos mesmos números, lá foram reclamando os respectivos prémios. Um dos dois apostadores premiados com o primeiro prémio na semana anterior, e que tinha insistido em repetir a mesma chave tal como vinha fazendo desde a primeira vez que jogara, foi o único totalista premiado.

Os apostadores habituais e os ocasionais lá foram registando as suas apostas para o sorteio seguinte, tal como vinha acontecendo desde a primeira semana em que se tinha iniciado este jogo.

Nas instalações da entidade promotora do jogo, a tômbola foi posta à prova incessantemente, com extracções atrás de extracções, na expectativa de encontrar algum padrão, algum vício, ou algum indício. As chaves assim obtidas foram sendo minuciosamente registadas por uma equipa de auditores, de peritos e de inspectores da polícia. No entanto, a análise estatística dos resultados obtidos revelou uma distribuição uniforme pelos vários números, consistente com o que seria de esperar de um processo que se pretendia aleatório.

Considerando que as investigações em curso não tinham, ainda, tido o tempo necessário para produzir conclusões definitivas, a entidade promotora do jogo decidiu pedir ajuda à entidade congénere do país vizinho, para fazer nas respectivas instalações a extracção seguinte.

E foi assim que, após a extracção normal do jogo local, a tômbola do país vizinho foi de novo preparada para aquele inédito sorteio. Chegado o momento, o processo de extracção é iniciado e as bolas vão saindo, cada uma na sua vez: bola um… bola dois… bola três… bola quatro… bola cinco… bola seis… bola sete.

(Continua)

5 comentários:

odradek disse...

Muito interessantes, o texto e a análise. Não tinha tido conhecimento desta história do sorteio do loto!

vieira calado disse...

Penso que é (quase) infinitamente mais provável tratar-se de fraude ou
entrada duma cópia da emissão anterior, do que haver coincidência. Ela é possível, mas a probabilidade é
infinitesimal.
E é preciso perceber o que são os arranjos ou combinações dos números em causa.
Cumprimentos

calminha disse...

com fraude ou não também me faz lembrar a fraude nas noticias de certo tipo de jornalismo, parece que andam a "caçar", em vez de informar com verdade...isso é que preocupa.
boa semana abraço

Anônimo disse...

mas isso aconteceu mesmo ou foi repetição do sorteio?

Ninguém disse...

Hummm...cheira-me a esturro...