(continuação de Caprichos do Acaso - parte I e parte II)
Durante toda a semana não se tinha falado de outra coisa. Tinham sido incontáveis os debates promovidos pelos vários órgãos de comunicação social, tentando explorar ao máximo o filão mediático resultante da terceira repetição da mesma sequência no sorteio do loto.
Eram também incontáveis as diferentes teorias para explicar o sucedido. Desde os que afirmavam a pés juntos que a única explicação era a da existência de uma fraude, até aos que acreditavam tratar-se de um sinal divino da proximidade do fim do mundo. Havia também, mas em menor número, os que acreditavam tratar-se de uma mera coincidência.
No entanto, as longas e minuciosas investigações, feitas pelos peritos e pelas autoridades, nada conseguiram encontrar que sustentasse a tese de fraude. Também as autoridades do país vizinho, chamadas a investigar o sorteio feito nas instalações da entidade promotora do loto local, nada conseguiram encontrar que pudesse indiciar algo de anormal.
Ao longo da semana foi anormalmente elevada a afluência de fiéis aos locais de culto de várias religiões, para onde convergiram em massa todos aqueles que, receando a eminência do fim do mundo, se tentavam redimir dos pecados cometidos.
Entre os que acreditavam tratar-se de uma coincidência, e nos quais se incluía o perito promovido a comentador televisivo, circulavam os argumentos já anteriormente utilizados: que a probabilidade era muito baixa, mas não era nula… que qualquer outra combinação de outros três sorteios seria igualmente improvável… que o mundo não era mais do que uma grande sucessão de acontecimentos improváveis…
Na mais completa ausência de evidências da existência de fraude, a entidade promotora do jogo decidiu que o sorteio seguinte se faria nas condições normais, ou seja, nas suas instalações, com a sua tômbola, com as suas bolas, e à hora habitual. Naturalmente, o sorteio seria supervisionado por um grande batalhão de observadores, atentos a qualquer sinal que pudesse indiciar alguma forma de vício.
E assim, à hora marcada e com um número sem precedentes de espectadores, se inicia o novo sorteio. A imagem começa por mostrar demoradamente as bolas cuidadosamente ordenadas e com os números bem visíveis. Depois o ângulo abre para mostrar a tômbola ainda parada e que, breves segundos depois, começa a girar. As bolas caem dentro da tômbola onde se vão entrechocando até que uma delas inicia o seu movimento em direcção à primeira posição da calha… é o um…
O mundo ficou ainda mais suspenso… parecia inevitável a repetição daquela mesma sequência das três semanas anteriores! Os que defendiam a tese de fraude apressaram-se a chamar de incompetentes os investigadores, pois era inadmissível que não tivessem ainda desvendado o caso… Os que acreditavam na eminência do fim do mundo apressaram-se a retomar as suas preces, na convicção de estarem a presenciar mais um sinal divino…
A segunda bola inicia o trajecto da tômbola para a segunda posição na calha, onde se imobiliza ao lado da primeira, é o quarenta e um…
Nos bastidores do sorteio os responsáveis da entidade promotora do jogo, juntamente com o batalhão de observadores, respiraram de alívio e de um momento para o outro o ambiente, que se havia tornado tenso com a saída da primeira bola, desanuviou-se. Pelo mundo fora só alguns fiéis mais fervorosos pareceram ficar desiludidos por não se repetir aquele sinal considerado divino, como se ansiassem que o mundo estivesse mesmo à beira do fim.
Entretanto uma nova bola toma o seu lugar na calha, é o quarenta e dois… pouco depois junta-se-lhe a bola treze… depois a cinco… depois a seis… e, finalmente, a bola suplementar, a vinte e três.
Em sua casa, o perito comentador televisivo olha intrigado para a sequência de números, entretanto transcritos para um pedaço de papel, na mesma ordem em que tinham sido sorteados. De súbito levanta-se do sofá, dirige-se ao quarto do filho adolescente e pega na calculadora abandonada em cima da secretária. Liga a calculadora, carrega em duas teclas e fica a olhar alternadamente para o mostrador da calculadora e para o pedaço de papel com a sequência sorteada…
Sorriu e falou em voz alta:
“Mais uma chave improvável… tão improvável quanto qualquer outra, mas…”
Olhou de novo para a sequência…
“Pitágoras… que diria Pitágoras se fosse vivo e tivesse presenciado o sorteio de hoje?...”
FIM
8 comentários:
Adorei..
um bjnho.
Depois disso, devem ter acusado o "loto" de fraude (acusar sempre!), porque andou três vezes a fazer sair a mesma sequência e, quando toda a gente, finalmente convencida, jogou essa sequência, simplesmente tirou-lhes o tapete de debaixo dos pés e muito provavelmente (uma probabilidade com bastante força, digamos) arrecadou um bom dinheirinho...
diria: não tem mais nadinha para fazer do que andar a olhar para bolas com números ? :)
O Acaso tem destas coisas! Acabámos por cruzar textos, em que a probabilidade dança ao som das cordas a vibrar.
beijinhos
Desconfio que o Pitágoras, se cá voltasse, perdia o dinheiro todo no Casino.
Dos Caprichos, gostei bastante.
Acho que Pitágoras diria que se trata dos primeiros 11 algarismos da raíz quadrada de 2 (1,4142135623730950488016887242097)!
:-)
Abraço
... ou o tamanho da hipotenusa de um triângulo rectângulo com catetos de tamanho um...
:-)
Sim, tens razão!
Até porque no tempo em que ele viveu ainda não usavam a designação de "raíz quadrada" e diziam apenas "o número que multiplicado por si mesmo é 2".
:-)
Por acaso, vinha cá agora acresentar o que tu já acrescentás-te..., sobre a hipótenusa do triângulo rectângulo, de catetos de comprimento 1.
Atrazei-me...
:-)
Abraço
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