quinta-feira, 13 de novembro de 2008

O Coleccionador – parte II

(Continuação de O Coleccionador – parte I)

Ficou algum tempo a espiar aquele outro fotógrafo através da objectiva. Não era muito anormal encontrar outros fotógrafos que, tal como ele, gostavam de coleccionar fotos de gente anónima. Não que fosse muito comum, mas já por diversas vezes tinha encontrado outros, e tinha perfeita consciência de que ele não era um caso isolado.

Nunca se tinha dado ao trabalho de meter conversa com os outros coleccionadores que foi encontrando do outro lado da objectiva. Na primeira vez em que se deu conta que existiam outros fotógrafos como ele ainda considerou meter conversa, mas rapidamente desconsiderou essa possibilidade… por nenhuma razão em particular, simplesmente porque achou que nada teria a ganhar com esse contacto.

Por isso, não se surpreendeu com a descoberta deste dia. Limitou-se a fotografa-lo na certeza de que o outro também já o teria fotografado, ou ainda o iria fotografar a ele.

… a senhora que tenta, em vão, arrancar o velho da mesa de jogo, um rapaz que bebe água no bebedouro, outro rapaz que passa na sua bicicleta, a menina acabada de cair no charco de água junto ao bebedouro, o homem que espera encostado a um tronco, a mãe que beija o dedo arranhado de onde se perdeu uma gota de sangue…

Pensou no novo software que tinha instalado no computador de casa e que tinha deixado a executar.

Há algum tempo que acompanhava a evolução daquele programa, desenvolvido por uma vasta comunidade de especialistas no mundo inteiro, e disponibilizado livremente num modelo de open source. No entanto as versões disponíveis até então eram ainda muito rudimentares e, consequentemente, apenas acessíveis a especialistas, classificação na qual ele estava longe de se poder incluir. Mas esta realidade tinha mudado há alguns dias, quando a disponibilização de uma nova versão tinha tornado a instalação e utilização daquele software muito mais fácil e intuitiva.

… a menina que come um gelado, a senhora que dormita no banco de jardim, a mulher que fala exaltada sobre um qualquer problema, o sem abrigo que mendiga uma esmola, o homem mergulhado na história de um livro e completamente abstraído da agitação à sua volta, a menina com a cara suja do gelado, a mãe da menina do charco que a repreende, a menina do charco que choraminga, mais pela repreensão que pela queda…

Já por diversas vezes se tinha dado conta que tinha mais de uma foto da mesma pessoa, mas desistira de fazer uma pesquisa mais profunda na sua colecção para identificar mais repetições, pois o elevado número de fotos que tinha tornaria impraticável uma tal tarefa sem a ajuda de alguma forma de automatismo.

Mas este novo software, com as suas capacidades para identificar características distintivas em imagens de rostos, e a capacidade para comparar essas características num elevado número de imagens, poderia tornar esta tarefa muito mais fácil. Tinha apenas de esperar o tempo necessário para o programa “digerir” todo aquele grande volume de informação.

… a mãe que tenta limpar a cara suja da menina do gelado, o homem que segura o chapéu que o vento lhe quer levar, a menina que tenta fugir ao lenço molhado com que a mãe lhe quer limpar a cara, a mulher que olha o pedinte enquanto deposita uma moeda na mão estendida, a mulher que tenta compor o cabelo que uma breve e suave rajada de vento tenta descompor…

A expectativa de encontrar alguns resultados quando chegasse a casa não o estava a deixar concentrar devidamente, por isso deu por terminada a sessão do dia.

Enquanto arrumava o equipamento na mochila apercebeu-se da câmara do outro fotografo apontada na sua direcção. Sim, aquela seria certamente uma boa altura para o fotografar. Ignorou-o e levantou-se para voltar para casa.

Assim que entrou em casa dirigiu-se imediatamente, ainda com a mochila nas costas, à secretária onde tinha o computador. Mexeu ligeiramente o rato para desactivar o screen saver e ver os eventuais resultados do programa.

A janela principal do programa mostra-lhe algumas pastas com resultados, com a indicação do número de fotografias dentro de cada uma das pastas. A sua atenção centra-se numa pasta com a indicação de que contém onze fotografias.

Onze!?…” questionou-se em voz alta.

Abriu rapidamente a pasta e uma nova janela abriu-se para lhe mostrar as miniaturas das onze fotografias. Depois de as analisar uma a uma, não teve dúvidas em concordar serem da mesma pessoa.

(Continua)

4 comentários:

Anônimo disse...

eram do fotografo ao lado
ou se ele próprio reflectido no lago

mfc disse...

Vou ter que esperar... com alguma ansiedade, diga-se.

Fenix disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
lélé disse...

Tal como à Fenix, também me pareceu vislumbrar por aí a tecnologia sofisticadíssima do CSI...
Na primeira parte e continuando nesta, claro, tocas num ponto que me interessa bastante: porque é que, quando sabemos... não, para ser mais exacta, vou falar apenas por mim, porque, neste aspecto, pelo menos, há muita gente diferente... Porque é que, quando tomo conhecimento de que alguém me observa, perco toda a naturalidade, espontaneidade, fico toda atrapalhada? Se vejo uma máquina fotográfica apontada a mim, tento esconder-me; se alguém me ouve a cantar, a voz vai-se, quiçá, para os calcanhares?
Agora, em relação ao teu conto, tendo em consideração os teus contos anteriores, tudo é expectável, excepto algo que possa ser expectável... Por isso, fico muito curiosa, quanto ao desenrolar desta colecção...