sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O Coleccionador – parte IV

(Continuação de O Coleccionador – parte I, parte II e parte III)

Entrou na sala de espera e olhou à volta à procura do local mais reservado. Era a primeira vez que estava naquele consultório, por isso olhou a toda a volta para se aperceber do espaço. Identificou rapidamente o lugar ideal. Por baixo do local onde a televisão estava pendurada havia várias cadeiras livres e isoladas. Era exactamente o que procurava, um local onde poderia tomar as suas notas sem se sentir observada pelas pessoas à volta.

Ao passar pela mesa no centro da sala pegou numa revista ao acaso. Não que se interessasse por aquele tipo de leitura, mas pelo disfarce que a revista lhe poderia proporcionar se achasse que alguém a observava.

Poderia ter trazido um livro de casa para aquele mesmo objectivo, mas quando lia gostava de se abstrair por completo do mundo à sua volta e de entrar na narrativa, como se fosse uma personagem invisível da mesma. Não, a leitura não era compatível com o que ia fazer àquele sítio, pois impedi-la-ia de prestar atenção aos nomes anunciados.

Daquele lugar não poderia assistir ao programa que passava na televisão, mas também não estava interessada em assistir aos concursos onde gente estúpida, era assim que qualificava aquelas pessoas, vinha mostrar a sua ignorância, nem ao humor barato dos apresentadores, ou à música sem gosto dos artistas convidados.

Há muito que se convencera pertencer à restrita minoria dos que abominavam aquele tipo de programação, da mesma forma que pertencia à ainda mais restrita minoria das pessoas que sentem prazer nas coisas mais simples e insignificantes. Estava plenamente convencida de que ela era uma das poucas excepções que confirmavam as regras formatadas e estereotipadas da sociedade onde tinha a infelicidade de viver. Estava só, mas já se tinha resignado a essa condição.

Preparou o caderno de apontamentos, pegou no lápis e escreveu a data e o local no topo de uma folha limpa, do lado direito do caderno.

Ainda não tinha acabado de escrever a data quando, pelo sistema sonoro, uma voz feminina fez o primeiro chamamento, na mesma voz monocórdica que já se tinha habituado a encontrar nestes locais.

Senhor Joaquim Soares, gabinete dois…

Um homem entrou na sala e olhou na direcção dela. Desviou o olhar e puxou a revista que tinha apanhado da mesa para cima do caderno e começou a folheá-la. Após alguns breves segundos o homem atravessou a sala e foi sentar-se perto dela, deixando uma cadeira vazia entre eles. Preferia estar sozinha, mas achou que a curta distância que os separava seria suficiente para não se sentir incomodada. Talvez também ele pertencesse àquela mesma restrita minoria… Ficou a observá-lo pelo canto do olho, fingindo prestar atenção à revista.

Ao vê-lo abrir a mochila imaginou, por momentos, que o veria tirar um caderno de notas e um lápis, e depois escolher uma página limpa do lado direito do caderno para escrever o local e a data… mas não, da mochila saiu uma máquina fotográfica. Não percebia muito de fotografia, nem de equipamento fotográfico, mas pareceu-lhe tratar-se de uma máquina sofisticada. Depois viu-o ligar a máquina e olhar para o mostrador electrónico onde se foram sucedendo imagens que ela não conseguiu distinguir.

***

Entrou na sala de espera do consultório e olhou à volta. Estranhou ver uma pessoa sentada na cadeira que ele próprio costumava escolher sempre que aqui vinha.

Vinha a esta consulta duas ou três vezes por ano para fazer o acompanhamento daquele seu problema crónico. Não que este problema o incomodasse com essa frequência, mas porque em matéria de saúde há muito que decidira viver de acordo com o princípio de que mais vale prevenir que remediar. Sabia a que sofrimento estaria sujeito se o problema se manifestasse, por isso aqui vinha regularmente duas vezes por ano, ou sempre que algum sintoma o deixava desconfiado.

Sabia que teria de esperar bastante pela sua vez de ser atendido, apesar de ter chegado pontualmente na hora para que tinha a consulta marcada. Nunca conseguira entender este fenómeno dos consultórios… porque razão se marcava uma hora se depois nunca era cumprida!?...

Aquele lugar, ocupado por aquela mulher, era, de facto, o lugar que ele preferia. Mas os outros lugares ao lado daquele eram igualmente bons, por isso dirigiu-se para uma cadeira dois lugares à direita daquela mulher que entretanto tinha desviado o olhar para uma revista puxada de baixo de um caderno de notas.

Olhou para ela enquanto atravessava a sala, interrogando-se se, tal como ele, também ela abominava o tipo de programação das televisões, ou se teria escolhido aquele lugar para poder adiantar algum trabalho ou, quem sabe, para escrever no diário o resumo das mágoas e dos prazeres daquele dia que se aproximava do fim. Talvez fosse isso, e talvez fosse essa a razão pela qual tinha puxado daquela revista, procurando esconder de olhos potencialmente indiscretos as secretas frases escritas no diário.

Não queria ser indiscreto, nem estava minimamente interessado no que ela pudesse querer escrever, por isso abriu a mochila e retirou a máquina fotográfica. Não, não pretendia fazer fotos ali naquele local, em primeiro lugar porque não conseguiria passar despercebido e em segundo lugar porque as condições de luz da sala de espera o obrigariam a utilizar o flash, e ele sempre detestara aquela súbita explosão de luz artificial. Não, o objectivo era, simplesmente, o de rever as fotos acabadas de fazer naquela grande avenida, em frente ao consultório.

Naquele dia o patrão estava fora, em viagem de negócios, e o volume de trabalho na empresa não o atormentava especialmente, por isso tinha decidido sair um pouco mais cedo para, antes da hora marcada para a consulta, poder fazer algumas fotos naquele local onde, àquela hora, uma multidão de gente passava apressada no caminho para casa.

(Continua)

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

O Coleccionador – parte III

(Continuação de O Coleccionador – parte I e parte II)

Entrou na sala de espera e sentou-se a um canto. Depois preparou o caderno de apontamentos, pegou no lápis e escreveu a data e o local no topo de uma folha limpa, do lado direito do caderno.

Desde pequenina que nunca gostara de começar assuntos novos nas páginas do lado esquerdo de um caderno. Não que preferisse o lado direito ao esquerdo, mas simplesmente porque não gostava de começar assuntos novos nas costas da folha onde já havia assuntos anteriores. Muitas vezes tinha ouvido os protestos da mãe por causa daquele tipo de desperdícios “Não nos podemos dar ao luxo de desperdiçar!... pensas que cavamos o dinheiro?!”. Ainda tentou explicar, mas o único que conseguiu foi um taxativo “Se tens espaço livre tens de o usar! Quando ganhares o teu próprio dinheiro logo fazes como te apetecer!”. E assim tinha acontecido, desde que saíra da casa dos pais que se permitia este pequeno desperdício, esta violação da sua rigorosa consciência ecológica.

Pelo sistema de som da sala de espera ouve-se uma voz feminina em tom monocórdico:

Senhor Joaquim Gomes, Senhor António Parente, Senhora Dona Ana Marques, Senhor Manuel Gaspar, Senhora Dona Arminda Aires, dirijam-se à sala de triagem…

Tomou nota dos nomes, sem esquecer o “Senhor” e a “Senhora Dona”. Esboçou um breve sorriso pelo facto de os Senhores não terem o direito de ser Dons.

Há vários anos que tinha este hábito de frequentar salas de espera, apenas para poder ouvir os nomes das pessoas que são chamadas. Nunca tinha entendido a razão deste fascínio pelos nomes anunciados, mas já tinha desistido de tentar encontrar uma explicação, da mesma forma que também já tinha deixado de se achar louca por causa disso. O que importava era que aquilo lhe dava prazer e isso era quanto lhe bastava. E deste seu prazer nada de mal poderia resultar, quer para ela quer para qualquer outra pessoa, por isso há muito que tinha deixado de se sentir culpada ou envergonhada consigo própria, embora sempre tivesse escolhido manter aquele segredo apenas para ela.

Não, não lhe bastava tomar conhecimento dos nomes, pois se fosse esse o caso bastaria abrir uma lista telefónica ao acaso. Não, os nomes tinham de ser pronunciados por alguém, anunciados em voz alta, expostos…

… Menina Joana Melo, gabinete de pediatria, Senhor Rui Peres, sala quatro…

Este fascínio tinha começado quando era ainda uma adolescente, num dia em que a mãe a levou ao hospital para fazer um curativo num corte que, na sua inexperiência em matéria de tarefas domésticas, tinha feito enquanto descascava umas batatas para o jantar. Ali na sala de espera a enfermeira de bata branca, que de tempos a tempos vinha à sala para chamar três ou quatro nomes, tinha-a feito esquecer as dores do corte e o mau humor da mãe.

Mas só anos mais tarde, numa ocasião em que teve de ir a um tribunal testemunhar a favor do patrão numa disputa com um fornecedor, é que, ao ouvir a chamada à porta da sala de audiências, se decidiu a explorar melhor aquele fascínio.

Começou então a frequentar todo o tipo de salas de espera e a tomar nota dos nomes num caderno idêntico aquele que agora tinha em cima do colo. Passou incontáveis horas em hospitais, clínicas, tribunais, conservatórias de registo civil, bancos, etc.

… Senhora Dona Margarida Janeiro, Senhor Artur Pereira, Senhora Dona Alice Coelho, Senhora Dona Armanda Lopes, é favor dirigirem-se ao balcão de atendimento central…

A princípio era bastante mais fácil. Não faltavam as salas de espera onde as pessoas eram sempre chamadas pelo nome. Além disso, o exercício da sua actividade profissional levava-a com alguma frequência a serviços públicos onde tinha de esperar pela sua vez antes de ser atendida.

Nessa altura ainda considerou arranjar um emprego num local daqueles, mas rapidamente desistiu da ideia, não só porque aquele tipo de funções era muito mal pago, mas também porque achou que a atenção dedicada a ouvir os nomes, à medida que fossem sendo chamados, a impediriam de se concentrar no trabalho propriamente dito.

… Senhora Dona Ana Fernandes, sala dois, Senhora Dona Fernanda Nunes, sala um…

Depois começaram a aparecer aqueles sistemas de senhas em que as pessoas passavam a ser tratadas como um mero e insignificante número. Até mesmo a voz de chamamento tinha sido substituída por um mostrador electrónico. Detestava aquele tipo de sistemas!

Agora estava limitada a um reduzido número de locais onde ainda se chamavam as pessoas pelo nome. Além disso, as novas tarefas e as responsabilidades acrescidas que a promoção no trabalho lhe tinha trazido mantinham-na presa ao escritório o dia inteiro. Por isso tinha de se contentar com estas saídas ocasionais ao final do dia.

… Senhor Jorge Gouveia, Senhor Ricardo Amaral, Senhora Dona Margarida Martins, Senhor Luís Correia, gabinete de triagem…

Enquanto escrevia os últimos nomes que a voz tinha anunciado no sistema sonoro, foi interrompida por um clarão. Olhou à volta para ver a origem daquele súbito e fugaz impulso de luz, mas não conseguiu encontrar nada de anormal… Teria sido um relâmpago?... Não, o dia estava completamente limpo… talvez um flash de uma máquina fotográfica…

Não soube explicar porquê, mas naquele preciso instante teve a certeza de que tinha mesmo sido um flash, e que o alvo fotografado tinha sido ela própria. Sentiu-se incomodada, por isso pegou nas suas coisas, levantou-se e saiu.

(Continua)

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

O Coleccionador – parte II

(Continuação de O Coleccionador – parte I)

Ficou algum tempo a espiar aquele outro fotógrafo através da objectiva. Não era muito anormal encontrar outros fotógrafos que, tal como ele, gostavam de coleccionar fotos de gente anónima. Não que fosse muito comum, mas já por diversas vezes tinha encontrado outros, e tinha perfeita consciência de que ele não era um caso isolado.

Nunca se tinha dado ao trabalho de meter conversa com os outros coleccionadores que foi encontrando do outro lado da objectiva. Na primeira vez em que se deu conta que existiam outros fotógrafos como ele ainda considerou meter conversa, mas rapidamente desconsiderou essa possibilidade… por nenhuma razão em particular, simplesmente porque achou que nada teria a ganhar com esse contacto.

Por isso, não se surpreendeu com a descoberta deste dia. Limitou-se a fotografa-lo na certeza de que o outro também já o teria fotografado, ou ainda o iria fotografar a ele.

… a senhora que tenta, em vão, arrancar o velho da mesa de jogo, um rapaz que bebe água no bebedouro, outro rapaz que passa na sua bicicleta, a menina acabada de cair no charco de água junto ao bebedouro, o homem que espera encostado a um tronco, a mãe que beija o dedo arranhado de onde se perdeu uma gota de sangue…

Pensou no novo software que tinha instalado no computador de casa e que tinha deixado a executar.

Há algum tempo que acompanhava a evolução daquele programa, desenvolvido por uma vasta comunidade de especialistas no mundo inteiro, e disponibilizado livremente num modelo de open source. No entanto as versões disponíveis até então eram ainda muito rudimentares e, consequentemente, apenas acessíveis a especialistas, classificação na qual ele estava longe de se poder incluir. Mas esta realidade tinha mudado há alguns dias, quando a disponibilização de uma nova versão tinha tornado a instalação e utilização daquele software muito mais fácil e intuitiva.

… a menina que come um gelado, a senhora que dormita no banco de jardim, a mulher que fala exaltada sobre um qualquer problema, o sem abrigo que mendiga uma esmola, o homem mergulhado na história de um livro e completamente abstraído da agitação à sua volta, a menina com a cara suja do gelado, a mãe da menina do charco que a repreende, a menina do charco que choraminga, mais pela repreensão que pela queda…

Já por diversas vezes se tinha dado conta que tinha mais de uma foto da mesma pessoa, mas desistira de fazer uma pesquisa mais profunda na sua colecção para identificar mais repetições, pois o elevado número de fotos que tinha tornaria impraticável uma tal tarefa sem a ajuda de alguma forma de automatismo.

Mas este novo software, com as suas capacidades para identificar características distintivas em imagens de rostos, e a capacidade para comparar essas características num elevado número de imagens, poderia tornar esta tarefa muito mais fácil. Tinha apenas de esperar o tempo necessário para o programa “digerir” todo aquele grande volume de informação.

… a mãe que tenta limpar a cara suja da menina do gelado, o homem que segura o chapéu que o vento lhe quer levar, a menina que tenta fugir ao lenço molhado com que a mãe lhe quer limpar a cara, a mulher que olha o pedinte enquanto deposita uma moeda na mão estendida, a mulher que tenta compor o cabelo que uma breve e suave rajada de vento tenta descompor…

A expectativa de encontrar alguns resultados quando chegasse a casa não o estava a deixar concentrar devidamente, por isso deu por terminada a sessão do dia.

Enquanto arrumava o equipamento na mochila apercebeu-se da câmara do outro fotografo apontada na sua direcção. Sim, aquela seria certamente uma boa altura para o fotografar. Ignorou-o e levantou-se para voltar para casa.

Assim que entrou em casa dirigiu-se imediatamente, ainda com a mochila nas costas, à secretária onde tinha o computador. Mexeu ligeiramente o rato para desactivar o screen saver e ver os eventuais resultados do programa.

A janela principal do programa mostra-lhe algumas pastas com resultados, com a indicação do número de fotografias dentro de cada uma das pastas. A sua atenção centra-se numa pasta com a indicação de que contém onze fotografias.

Onze!?…” questionou-se em voz alta.

Abriu rapidamente a pasta e uma nova janela abriu-se para lhe mostrar as miniaturas das onze fotografias. Depois de as analisar uma a uma, não teve dúvidas em concordar serem da mesma pessoa.

(Continua)

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

O Coleccionador – parte I

Olhou à volta para procurar um local apropriado. Estudou as várias possibilidades, ponderando os ângulos de visibilidade, a proximidade das pessoas, as condições de luz e a discrição que cada local lhe proporcionaria.

Sim, aquele banco isolado na sombra do pinheiro era um local ideal. Sentou-se e começou a preparar o equipamento. Retirou e esticou o mono-pé, montou a lente no corpo da máquina e depois a máquina no mono-pé. Ligou a máquina, fez alguns ajustes e preparou-se para os primeiros disparos.

Apontou aleatoriamente, ajustando a lente e fez uma primeira foto. Estudou o resultado no mostrador da máquina para se certificar que tinha escolhido as configurações de velocidade e abertura apropriadas, depois, satisfeito com o resultado, voltou a apontar a máquina e foi disparando, captando as mais variadas expressões daquela gente anónima.

O homem que entra no parque, o funcionário que cuida de um canteiro, o jovem que corre atrás de uma bola, a mulher que discute com o homem que entra no parque, uma mulher que fala com outra, a mulher que ouve a outra que fala com ela…

Há mais de quinze anos que descobrira aquele fascínio pelo rosto humano e pelas suas inúmeras expressões. Tinha começado ainda com a sua velha máquina analógica, captando os primeiros instantâneos na película comprada a metro no fotógrafo vizinho do prédio onde vivia. Recordava com alguma saudade aquele tempo e a excitação e expectativa para ver o resultado, primeiro no negativo revelado da película, e depois no positivo impresso.

Agora, com a máquina digital, tudo era mais simples. Podia ver o resultado quase imediatamente e, dependendo da capacidade do cartão de memória, podia ficar horas e horas a disparar, sem ter de se preocupar com a troca do rolo. Depois, já em casa, a passagem das fotos para o computador abria-lhe todo um novo mundo de possibilidades, tanto no que diz respeito ao arquivo, como ao nível dos processamentos que poderia aplicar às imagens.

Lembrou-se daquele novo software que tinha deixado a executar no computador de casa… teria alguns resultados quando chegasse a casa?...

... a menina de cabelos ao vento no baloiço, um jovem que olha a sua namorada no intervalo entre dois beijos apaixonados, um velho que joga um trunfo na mesa da sueca, uma criança que atira um punhado de areia na direcção de um qualquer monstro imaginário, o pai da menina empurrando o baloiço, uma mãe que ampara o seu filhote enquanto este ensaia os primeiros passos, um beijo apaixonado…

Há muito que deixara de se sentir uma espécie de ladrão, roubando e guardando aquelas breves fracções de segundo. A princípio a falta de uma lente apropriada, obrigava-o a aproximar-se bastante das pessoas, o que normalmente dava origem às mais variadas reacções. Muitas vezes teve de fugir para evitar a fúria dos seus alvos, como se fosse um crime captar e registar aqueles breves raios de luz.

Nunca conseguira compreender aquelas reacções. Afinal, os raios de luz que captava com a sua câmara já não pertenciam a ninguém, já tinham abandonado as caras daquelas pessoas em direcção a um qualquer obstáculo, ou em direcção ao infinito. E no entanto as pessoas reagiam como se lhes estivesse a roubar algo muito precioso.

Além disso, ele gostava de captar expressões genuínas e naturais, mas as pessoas, ao aperceberem-se de que estavam a ser fotografadas, quando não reagiam violentamente, tinham a irritante tendência de fazer pose, esboçando expressões estereotipadas que eram exactamente o oposto daquilo que procurava.

Por estas razões tinha investido na compra de uma lente com uma distância focal maior, e dera por bem empregue o dinheiro gasto, pois passara a poder fotografar à vontade a uma distância muito maior, à qual ninguém dava por ele e, dessa forma, podia captar as expressões genuínas dos seus alvos.

… O pai que chama o filho com as mãos em concha em torno da boca, uma jovem de olhos fechados e auscultadores nas orelhas que aquece ao sol, um bebé que dorme no seu carrinho de rua, um filho que corre fingindo não ouvir o chamamento do pai, um velho que vê a sua manilha cair no ás do adversário de jogo, uma criança que chora a gota de sangue perdida no arranhão, um outro fotógrafo escondido num local sombrio…

(Continua)