segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Quase-vida – parte I

Soube naquele preciso instante que ia morrer. Assim, sem mais, de forma completamente inesperada e ainda tão jovem…

O reboque do camião deslizava, desgovernado, na sua direcção e não tinha como fugir do seu caminho antes de ficar esmagado contra a parede atrás de si. Só um grande milagre o poderia salvar desta situação, mas ele nunca acreditara em milagres, e também não se achava merecedor da misericórdia de algum deus em cuja existência nunca conseguira acreditar.

Ao menos seria tudo muito rápido, o sofrimento seria muito breve ou, quem sabe, talvez fosse tudo tão rápido que não chegaria a sentir qualquer dor. O sofrimento maior não seria o da dor física, mas o da dor de estar consciente daquele inevitável destino naqueles últimos instantes.

Sempre desejara morrer assim, de uma forma rápida, sem sofrimento, sem aquela degradação gradual tão típica do envelhecimento e, muito especialmente, sem perda de lucidez. Mas nunca imaginara que a morte chegasse assim tão cedo, ainda com tanta vontade de viver, com tantas lutas para travar e tantos sonhos para realizar…

Pensou na mulher... que seria dela, de repente com toda a responsabilidade de educar e acompanhar os três filhos órfãos de pai?... “órfãos!”… aquela palavra abateu-se sobre ele esmagando-o com uma força maior que aquela que havia de lhe tirar a vida dentro de breves instantes. Deu-se conta que não poderia acompanhar o crescimento daqueles três pequenos seres que ele amava acima de tudo na vida.

Sentiu uma repentina e intensa raiva! Não era justo! Ele que sempre vivera tão intensamente o papel de pai, via-se assim privado desse papel de uma forma tão abrupta! Que seria deles agora?!...

Esforçou-se por relembrar cada detalhe dos últimos instantes em que os tinha visto naquela mesma manhã, há pouco mais de uma hora, quando os deixara à porta da escola.

O reboque estava cada vez mais perto, esgotando aqueles breves instantes que lhe restavam…

Estranhou a velocidade com que todos aqueles pensamentos se lhe sucediam no seu cérebro, como se tudo à sua volta se desenrolasse agora em câmara lenta. Talvez fosse mesmo assim, talvez o cérebro, na percepção da proximidade do seu fim, tentasse aproveitar ao máximo os últimos instantes, trabalhando a toda a velocidade. Talvez fosse esta a justificação para as experiências de quase-morte relatadas por pessoas que tendo estado à beira da morte, lhe escaparam por muito pouco e nos últimos instantes.

Questionou-se sobre se também ele iniciaria uma viagem por um túnel azul em direcção a uma luz intensa, se se sentiria flutuar acima do seu corpo esmagado, ou se veria toda a sua vida passar-lhe em frente aos olhos.

Pensou na estrema inutilidade daquela última possibilidade… de que lhe servia rever a vida que ele próprio tinha vivido, como se não soubesse como a tinha vivido, como se não tivesse sido ele próprio a vivê-la, como se ele não soubesse o que tinha feito bem e o que tinha feito mal… seria bem melhor se pudesse usar esses tão breves, mas preciosos, instantes para rever os filhos. Daria tudo por esta troca! Não daria a vida porque essa já nada valia, mas daria a alma a um qualquer demónio… mas ele nunca acreditara em demónios!

(continua)

4 comentários:

Anônimo disse...

bahhhh. a minha esperança é que o reboque ganhe asas

Rui disse...

Vai um anjo ao volante.
Aguarda-se pelas vistas de última hora.

lélé disse...

Cantinho, tu desculpa lá, mas à velocidade a que o reboque vem... Bem, o tipo já se tinha posto a milhas!...
O bom dessas situações de morte iminente é que esses pensamentos e sentimentos todos só ocorrem depois dela... Se ocorrerem!...

Devaneante disse...

lélé,

Pelos vistos o cérebro dele, naquele momento, estava bastante mais rápido que o reboque.