segunda-feira, 3 de novembro de 2008

O Coleccionador – parte I

Olhou à volta para procurar um local apropriado. Estudou as várias possibilidades, ponderando os ângulos de visibilidade, a proximidade das pessoas, as condições de luz e a discrição que cada local lhe proporcionaria.

Sim, aquele banco isolado na sombra do pinheiro era um local ideal. Sentou-se e começou a preparar o equipamento. Retirou e esticou o mono-pé, montou a lente no corpo da máquina e depois a máquina no mono-pé. Ligou a máquina, fez alguns ajustes e preparou-se para os primeiros disparos.

Apontou aleatoriamente, ajustando a lente e fez uma primeira foto. Estudou o resultado no mostrador da máquina para se certificar que tinha escolhido as configurações de velocidade e abertura apropriadas, depois, satisfeito com o resultado, voltou a apontar a máquina e foi disparando, captando as mais variadas expressões daquela gente anónima.

O homem que entra no parque, o funcionário que cuida de um canteiro, o jovem que corre atrás de uma bola, a mulher que discute com o homem que entra no parque, uma mulher que fala com outra, a mulher que ouve a outra que fala com ela…

Há mais de quinze anos que descobrira aquele fascínio pelo rosto humano e pelas suas inúmeras expressões. Tinha começado ainda com a sua velha máquina analógica, captando os primeiros instantâneos na película comprada a metro no fotógrafo vizinho do prédio onde vivia. Recordava com alguma saudade aquele tempo e a excitação e expectativa para ver o resultado, primeiro no negativo revelado da película, e depois no positivo impresso.

Agora, com a máquina digital, tudo era mais simples. Podia ver o resultado quase imediatamente e, dependendo da capacidade do cartão de memória, podia ficar horas e horas a disparar, sem ter de se preocupar com a troca do rolo. Depois, já em casa, a passagem das fotos para o computador abria-lhe todo um novo mundo de possibilidades, tanto no que diz respeito ao arquivo, como ao nível dos processamentos que poderia aplicar às imagens.

Lembrou-se daquele novo software que tinha deixado a executar no computador de casa… teria alguns resultados quando chegasse a casa?...

... a menina de cabelos ao vento no baloiço, um jovem que olha a sua namorada no intervalo entre dois beijos apaixonados, um velho que joga um trunfo na mesa da sueca, uma criança que atira um punhado de areia na direcção de um qualquer monstro imaginário, o pai da menina empurrando o baloiço, uma mãe que ampara o seu filhote enquanto este ensaia os primeiros passos, um beijo apaixonado…

Há muito que deixara de se sentir uma espécie de ladrão, roubando e guardando aquelas breves fracções de segundo. A princípio a falta de uma lente apropriada, obrigava-o a aproximar-se bastante das pessoas, o que normalmente dava origem às mais variadas reacções. Muitas vezes teve de fugir para evitar a fúria dos seus alvos, como se fosse um crime captar e registar aqueles breves raios de luz.

Nunca conseguira compreender aquelas reacções. Afinal, os raios de luz que captava com a sua câmara já não pertenciam a ninguém, já tinham abandonado as caras daquelas pessoas em direcção a um qualquer obstáculo, ou em direcção ao infinito. E no entanto as pessoas reagiam como se lhes estivesse a roubar algo muito precioso.

Além disso, ele gostava de captar expressões genuínas e naturais, mas as pessoas, ao aperceberem-se de que estavam a ser fotografadas, quando não reagiam violentamente, tinham a irritante tendência de fazer pose, esboçando expressões estereotipadas que eram exactamente o oposto daquilo que procurava.

Por estas razões tinha investido na compra de uma lente com uma distância focal maior, e dera por bem empregue o dinheiro gasto, pois passara a poder fotografar à vontade a uma distância muito maior, à qual ninguém dava por ele e, dessa forma, podia captar as expressões genuínas dos seus alvos.

… O pai que chama o filho com as mãos em concha em torno da boca, uma jovem de olhos fechados e auscultadores nas orelhas que aquece ao sol, um bebé que dorme no seu carrinho de rua, um filho que corre fingindo não ouvir o chamamento do pai, um velho que vê a sua manilha cair no ás do adversário de jogo, uma criança que chora a gota de sangue perdida no arranhão, um outro fotógrafo escondido num local sombrio…

(Continua)

5 comentários:

Anônimo disse...

colecciona acções/expressões?
eu faço isso sem máquina fotográfica quando estou sozinha e parada no meio da rua.
gosto imenso e tento advinhar o resto da "história" de cada pessoa

Fenix disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
mfc disse...

Fiqei estonteadoe preso à narrativa.
Viste? Estive a fotografar ao teu lado.

mfc disse...

A dislexia já não perdoa.
Aqui vai o comentário corrigido.
Fiquei estonteado e preso à narrativa.
Viste? Estive a fotografar ao teu lado.

Rui disse...

Vejo-me aflito com as pessoas. É o motivo mais difícil (para mim, claro) de fotografar. E já me aconteceu ser interpelado, em modos menos educados, por quem se julgava retratado. Ainda não desisti de ir tentando.