quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Caridade dolorosa

Dói-me este pedinte sentado no meio do passeio…

Dói-me o chamamento do tilintar de uma ou duas moedas solitárias no fundo da lata de salsichas…

Dói-me o pedido de “aiuta!...” que me lança nesta pronúncia quase incompreensível…

Dói-me a (apenas aparente) indiferença com que passo e sigo o meu caminho…

Dói-me aquela criança que, uns passos mais adiante, repete o mesmo pedido…

Dói-me o seu olhar vago e vazio de sonhos…

Dói-me sabê-la ausente da escola e das brincadeiras que lhe poderiam alimentar esses sonhos…

Dói-me o som da moeda que alguém, (apenas aparentemente) menos indiferente do que eu, deixa cair na lata de salsichas…

Dói-me a paz com se afasta, repentinamente esquecido da realidade por que acaba de passar, como se a moeda deixada cair lhe comprasse a ilusão de viver num mundo sem miséria…

Dói-me a miséria…

Dói-me a miséria de os saber explorados…

Dói-me quando, mais tarde, me cruzo com a mesma mulher que todos os dias pede uma “ajudinha” à porta do centro comercial…

Dói-me a energia com que sucessivamente aborda todos os que vão passando…

Dói-me a possibilidade de estar enganado quando penso que esta energia poderia ser melhor investida em algo de útil e produtivo…

Dói-me este inevitável pensamento de a ver como um “parasita”…

Dói-me, de novo, a (apenas aparente) indiferença com que me desvio e sigo o meu caminho…

Dói-me, enquanto escrevo esta dor, pensar que posso estar enganado nesta minha convicção de que a melhor forma de combater esta miséria é não alimentar este modo de vida…

Dói-me pensar que posso estar enganado nesta minha convicção da caridade da minha (apenas aparente) indiferença…

4 comentários:

A Túlipa disse...

Doi, não doi?
Brincar ao faz de conta com a realidade de um mundo.
Doi, sim.
Mas decepamo-nos a nós mesmos.

RC disse...

Obrigada pelo link.

Vou voltar aqui mais vezes.

Xi.

Sao Teixeira Pereira disse...

Doem-me todas e cada uma dessas coisas...
Doi-me tanto que me oprime o peito e, ..., em momentos mais tristes me assoma uma lágrima...
Nesses momentos deixo vencer a dor, esqueço as dúvidas e, (talvez) pelo puro egoísmo de querer sentir-me melhor, dou a tal moedinha. Sei bem que uma moedinha (só) nada ajuda.
Depois afasto todas as dúvidas do meu pensamento e decido que vou sentir-me bem por ter dado. Decido que "fiz bem sem olhar a quem". Decido que fiz uma coisa boa e por isso vou sentir-me bem.

Anônimo disse...

fabuloso apesar de triste realidade