sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Encontros de olhares

Queria ir para casa, já não suportava mais aquele vai e vem de loja em loja com a mãe sempre a puxar-lhe pela mão.

“Mãe, vamos para casa!...”

“Tem calma, amanhã é o teu primeiro dia de escola e ainda nos falta comprar muita coisa!”

Sim, ia para a escola… há vários dias que não parava de pensar como seria esse dia, como seriam os colegas… como seria o professor… a mãe tinha-lhe dito que na escola todos os meninos e meninas tinham de se portar sempre muito bem, que tinham de estar todos com muita atenção ao que o professor dizia... tinha medo!...

De repente o seu olhar cruzou-se com outro olhar... sem saber porquê vieram-lhe à memória imagens difusas... tudo muito branco... um berço... lençóis frios... chorou no seu choro de bebé recém-nascido... uma voz calma sussurrou-lhe uma melodia ao ouvido e aconchegou-lhe o lençol... parou de chorar... ouvem-se vozes, vozes que não consegue entender... algum reboliço e depois o silêncio... o seu olhar cruza-se com outro olhar num berço ali ao lado... o mesmo olhar que agora está à sua frente e que olha com igual medo e igual perplexidade!...

“Vamos, vamos... valha-me Deus, ainda temos de ir comprar as batas brancas!...”

...

Enquanto espera na paragem pelo autocarro, recorda aquele medo que antecedeu o primeiro dia de escola... não é muito diferente o medo de hoje!... o primeiro dia de trabalho!... quase não conseguiu dormir na expectativa desse novo futuro que hoje começava...

Entra no autocarro e aconchega-se num lugar junto à janela, mesmo por detrás do motorista. Pouco depois o autocarro imobiliza-se no final de uma fila de carros que esperam impacientemente pelo verde do semáforo. Do outro lado da rua, numa fila de espera para um autocarro que tarda em chegar, o seu olhar cruza-se com outro olhar...

Vêm-lhe à memória as imagens da azafama das compras na véspera do primeiro dia de escola, e logo de seguida as imagens difusas do branco, do berço, dos lençóis frios, do choro de bebé, da melodia, do outro olhar vindo do berço ali ao lado... o mesmo olhar que agora está à sua frente e que olha com igual expectativa e igual perplexidade!...

A impaciência da espera pelo verde do semáforo dá lugar à pressa de passar antes do regresso do vermelho...

...

Deteve-se inconscientemente em frente da montra de uma loja de artigos para crianças. O seu olhar foi percorrendo a montra até se deter no seu próprio reflexo. Estava verdadeiramente feliz... uma felicidade que podia ser vista, mesmo no difuso reflexo da montra... Há menos de quatro meses que tinham decidido ter um filho, mas só hoje, após a confirmação da análise feita na farmácia, tinham realmente começado a entender a importância dessa decisão.

Pouco depois, enquanto espera na estação pelo comboio do metro que porá fim aquela interrupção da rotina normal de um dia de trabalho, outro comboio faz a paragem obrigatória do outro lado da linha colocando à sua frente um outro olhar...

Vêm-lhe à memória as imagens de uma viagem de autocarro, as imagens da azafama das compras na véspera do primeiro dia de escola, as imagens difusas do outro olhar do berço ali ao lado... o mesmo olhar que agora está à sua frente e que olha com igual felicidade e igual perplexidade!...

...

Alguém lhe diz “não se preocupe, vai correr tudo bem”... já na maca olha para o lado e vê o que resta do carro acidentado... interroga-se se será mesmo possível ter saído dali com vida... enquanto a maca avança em direcção à ambulância, surge-lhe no campo de visão, numa outra maca, um outro olhar...

Vêm-lhe à memória as imagens de um comboio numa estação de metro, as imagens de uma viagem de autocarro, as imagens da azafama de um dia de compras, as imagens difusas do outro olhar do berço ali ao lado... o mesmo olhar que agora está ao seu lado e que olha com igual sofrimento e igual perplexidade!...

...

Tinha finalmente cedido aos incessantes argumentos dos filhos para se reformar... que devia aproveitar o resto da vida para se divertir, para passear, para conviver com os netos... que já tinha dado contributo mais do que bastante à sociedade... E assim se tinha resignado à condição imposta pela idade...

Em frente do edifício da Segurança Social, onde acabara de tratar das últimas burocracias, fez sinal a um táxi que passava. Do outro lado da rua alguém sai de outro táxi e começa a atravessar a rua. Nos breves instantes em que o taxista leva a interpretar a morada de destino pretendida e o início da viagem, o seu olhar cruza-se com aquele outro olhar...

Vêm-lhe à memória as imagens ensanguentadas de uma maca que entra para uma ambulância, as imagens de uma estação de metro, as imagens de um autocarro, as imagens de um dia de compras, as imagens difusas do outro olhar do berço ali ao lado... o mesmo olhar que agora está ao seu lado e que olha com igual resignação e igual perplexidade!...

...

Um cortejo passa o portão e segue em marcha lenta. O silêncio é apenas perturbado pelo distante chilrear de alguns pássaros e pelo som dos passos lentos no caminho, no mais profundo contraste entre a alegria dos primeiros e o luto dos segundos.

À porta do cemitério outro cortejo espera pela sua vez.

9 comentários:

Shelyak disse...

Uma vida traduzida em meia dúzia de linhas... magistral que achei...
Recordações que voam nas nossas tão complexas mentes e nos acompanham durante uma vida, catapultdas por razões que a ciência dificilmente conseguirá decifrar...
Muito bom!
Abraço

Anônimo disse...

adoreiiiiiiiiiiiiiiii
eu tentei que o meu filho não sentisse esse stress do primeiro dia de escola, como eu senti ... não sei se consegui totalmente
pelo menos eu mantive a adrenalina ao máximo no primeiro dia de escola dele :)

MARIA MERCEDES disse...

No fim, o clip da nossa vida, passa na televisão privada que existe dentro de nós.

beijinho

Anônimo disse...

E o futuro é já ali...

A Túlipa disse...

Tambem eu tinha saudades dos teus textos. e vejo que começas a ganhar.lhe experiencia e o gosto.. ja que os textos sao cada vez maiores e inovadores =]...

e pelo vi ja perdi muita coisa, que espero e irei, por em dia =]

'

Rui disse...

Dizem que os olhos são o espelho da alma. Eu não consigo ver bem ao longe, mas acredito que sejam.

Fico a pensar se ele se terá arrependido de nunca ter atravessado a estrada, de apeadeiro.

Devaneante disse...

Rui,

Talvez sim, talvez se tenha arrependido de nunca ter atravessado a estrada... Ou talvez essa oportunidade sempre lhe tenha fugido...

Já agora, referes-te a "ele", mas será que era mesmo "ele" ou seria "ela"?... ou, quem sabe, talvez não seja importante saber...

Anônimo disse...

Muito bom.

Mas assustador.

Sao Teixeira Pereira disse...

Eu julgo que era uma "ela"... em frente à montra, grávida de 4 meses...
Estas coincidências são intrigantes, arrepiantes e, ..., um pouquinho irritantes. Sorry.
Eu teria atravessado a rua, logo na 2ª troca de olhares, quando ia para o trabalho...
Mas o autor é que manda, claro!
Gostei.