quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O viajante – parte IX

(Continuação de O viajante – Partes I, II, III, IV, V, VI, VII e VIII)

Sabia que a leitura daquela carta lhe traria sofrimento, mas lentamente, ainda indeciso sobre o que fazer, foi rasgando um dos lados do envelope. Depois, já com o envelope aberto, hesitou de novo mais alguns segundos antes de meter dois dedos dentro do envelope para alcançar a folha de papel e puxá-la para fora. Fez uma nova hesitação e abriu, finalmente, a folha e olhou para aquelas linhas manuscritas.

A carta pareceu-lhe estranhamente curta. Pensou que ela não tivera, talvez, a coragem para se alongar muito em explicações que sabia que ele teria obrigação de compreender. Na verdade não eram necessárias muitas palavras para dizer que se vira obrigada a procurar uma nova felicidade e para lhe pedir que entendesse a decisão dela e não a procurasse... e o fecho da carta, desejando-lhe que fosse feliz, também não necessitaria mais de duas ou três linhas de texto.

Com a carta aberta na mão olhou pela janela para contemplar aquela belíssima paisagem durante mais alguns segundos. Depois fez uma inspiração profunda e dispôs-se, finalmente, a ler a carta.

“Meu amor, passam-se hoje exactamente seis meses desde a data em que tu não regressaste. Têm sido tempos muito difíceis para mim e para as nossas meninas. Não que elas tenham consciência do que se passa, mas têm imensas saudades tuas e não param de perguntar por ti.”

Os olhos encheram-se-lhe repentinamente de lágrimas. Parou de ler, largou a carta em cima da mesa, recostou-se na cadeira com as mãos nos olhos e chorou como chora um homem. Um choro silencioso, mas um choro abundante, arrancado não do fundo dos olhos mas do mais profundo das entranhas. Tinha estado a tentar conter aquelas lágrimas desde que tomara consciência da situação em que se encontrava, mas agora não podia aguentar mais, por isso deixou de lutar, deixou de engolir em seco, e deixou que elas corressem livremente.

Claro que tinham saudades, aquelas duas meninas adoravam-no, e ele adorava-as a elas. Mas a saudade delas já estaria curada por esta altura, enquanto a dele lhe ardia agora no peito com uma intensidade avassaladora.

Perdeu a noção de quanto tempo ficou ali, e perdeu a noção da quantidade das lágrimas libertadas. Finalmente retirou lentamente as mãos dos olhos, e voltou a olhar para a sala e para a paisagem exterior, ainda com a visão perturbada pelas últimas lágrimas que tinham ficado prisioneiras nos olhos, impedidas de seguir o caminho das restantes.

Pegou num dos guardanapos de papel e limpou os olhos, a boca e o nariz, e bebeu mais um pouco água para limpar o gosto salgado que sentia nos lábios e na boca. Depois respirou fundo e voltou a pegar na carta abandonada em cima da mesa.

“O mundo inteiro não tem parado de falar no teu caso, o que só contribuiu para agravar este sofrimento meu. Os primeiros quatro meses foram os mais difíceis, ainda aturdida pelos acontecimentos e incapaz de pensar e de raciocinar correctamente.

Depois fui recuperando um pouco a calma e o discernimento e tudo ficou mais calmo e sereno quando finalmente tomei a minha decisão.”

Claro, a tomada da decisão devia ter sido muito difícil, mas depois de tomada tudo terá ficado mais calmo. O sofrimento terá ficado ainda durante muito tempo, mas também esse terá acabado por ser ultrapassado.

“De acordo com os peritos que analisaram a cápsula de dados, recuperada junto daquele planeta de onde partiste para algum lugar incerto do universo, o sistema de teletransporte da tua nave terá tido uma falha grave. O teu regresso à Terra só poderá acontecer se tiveres tomado a decisão de usar o sistema de teletransporte alternativo, com as inevitáveis consequências que isso implica.

Os peritos não foram capazes de determinar a que local do espaço foste parar na sequência da avaria, por isso, assumindo que vais regressar, é impossível saber quando isso vai acontecer.

E assim tenho vivido nestes meses, prisioneira da incerteza de uma decisão que tu tomaste há seis meses atrás, mas que permanece escondida numa descontinuidade do tempo entre o momento em que a tomaste e um futuro que não sei quando chegará, ou se chegará.

Esta incerteza foi, precisamente, o factor de maior sofrimento para mim e o que me levou a tomar esta decisão. Simplesmente não poderia continuar a viver nesta incerteza!”

Claro que não podia... Por muito que isso lhe custasse aceitar, sabia que as coisas não se poderiam ter passado de maneira diferente. Apesar de saber aquilo com que contava, não estava preparado, por isso baixou a carta e voltou a olhar para a rua, através da janela, tentando encontrar naquela paisagem idílica a coragem necessária para ler o último parágrafo.

Respirou fundo uma vez mais e voltou a levantar a mão esquerda com a qual segurava a carta, finalmente disposto a terminar a sua leitura.

“Parto hoje com as nossas filhas. Parto numa nave não muito diferente da tua. Nela faremos pequenas viagens no tempo, voltando a uma órbita em torno da terra a cada seis meses. Em cada regresso farei uma breve comunicação com a Terra, para fazer um ponto de situação, antes de partir para nova viagem de igual duração. Interromperei esta sequência quando ouvir a tua voz. Não conseguimos e não queremos viver sem ti! Até já!...”

FIM

10 comentários:

Fenix disse...
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Lita disse...

LIndo, maravilhoso!!!!!!
Amei, que história doce!

Paula Raposo disse...

Que maravilha!! Adorei! Perfeito. Encantaste-me com esta leitura magnífica. Muitos beijos de parabéns!!

lélé disse...

Ah, que bom! Finalmente, uma história que acaba em beleza.
Confesso que sou piegas e sempre gostei dos finais felizes, mas este, apesar de ser uma ficção, soube-me pela vida!
Ainda por cima, um final cheio de humor!... Sim, porque imaginar as três criaturas de lá para cá e de cá para lá, "já chegou ou ainda temos que dar mais umas voltinhas?"... é engraçado!
E pôr o cosmonauta com "ataques de pânico" entre linhas, é muito conveniente ao suspense e à ficção!... Ou então, há gente assim, mas não sou eu...
Gostei muito de ler este conto, muitíssimo.

Rui disse...

Eu já me estava a preparar para lhe chamar (a ela) desesperançada. Afinal, chamo-lhe corajosa.

Gostei bastante.

mfc disse...

Uma história de antecipação científica onde permanecem intactos os valores e sentimentos que verdadeiramente unem as pessoas!
Muitos parabéns pela forma hábil com que nos prendeste a atenção aqui durante este tempo todo.
Um ahistória lindamente contada e que terminou de uma forma que nos faz sempre sorrir.

Fenix disse...
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ilhéu disse...

Ainda bem. Não há melhor história do que aquela que termina com esperança. Abraço

Anônimo disse...

boa, isto é o que acontece a quem não consegue esperar :P
agora anda tudo a vaguear pelo tempo

Fenix disse...
Este comentário foi removido pelo autor.